CAPÍTULO 16
O capítulo 16 vai mais longe do que a simples revelação da graça de Deus. Jesus revela o que devia formar-se nos desígnios dessa graça onde Ele era reconhecido, mostrando que os orgulhosos do povo de Deus são rejeitados, que Deus os aborrece (Zacarias 11), do mesmo modo como eles O aborrecem. Fechando os olhos (devido à perversidade da vontade deles) aos maravilhosos e beneficentes sinais do Seu poder, que constantemente Ele empregava a favor dos pobres que O procuravam, os Fariseus e Saduceus—surpreendidos com essas manifestações, embora incrédulos de coração e determinação — pedem um sinal do Céu. O Senhor censura-os pela sua incredulidade, mostrando-lhes que eles sabiam bem distinguir a aparência do céu (versos 2-3), mas que os sinais dos tempos os não despertavam. Eram uma geração má e adúltera que estava na Sua frente — e deixa-os: Expressão bem significativa do que se passava então em Israel.
O Senhor Jesus adverte os Seus discípulos da subtileza destes adversários da verdade e d'Aquele que Deus tinha enviado para revelar essa verdade (versos 5-12). Israel, como povo, é abandonado nas pessoas dos seus chefes. Ao mesmo tempo recorda em paciente graça aos discípulos a explicação que lhes havia dado.
Em seguida Jesus pergunta aos Seus discípulos o que era que os homens diziam d'Ele, como lemos nos versos 13 e seguintes. Tratavase de toda a sorte de opiniões, e não de fé; isto é, da incerteza que pertence h indiferença moral, com ausência daquela necessidade cônscia de uma alma que só pode descansar na verdade, no Salvador que se tem encontrado.
Depois Jesus pergunta aos discípulos o que era que eles próprios diziam d'Ele. Pedro, a quem o Pai Se tinha dignado revelar-Se, declara a sua fé, respondendo-Lhe: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo».
Não há nenhuma incerteza aqui, nem simples opinião, mas sim o poderoso efeito da revelação feita pelo próprio Pai, da pessoa de Cristo, ao discípulo que Ele havia escolhido para gozar de um tal privilégio.
Aqui a condição do povo manifesta-se de uma maneira notável, não acerca da lei, como no capítulo precedente, mas a respeito de Cristo, que lhe tinha sido apresentado.
Vemo-la em contraste com a revelação da Sua glória àqueles que O seguiam. Deste modo temos três classes distintas: em primeiro lugar os Fariseus arrogantes e incrédulos; em seguida, as pessoas que sentiam e reconheciam haver em Cristo um poder e uma autoridade divinos, mas que continuavam indiferentes; finalmente, a revelação de Deus e a fé divinamente concedida.
No capítulo 15, a graça para com aquela que só nessa mesma graça tem esperança, é posta em contraste com a desobediência e com a perversão hipócrita da lei, pela qual os Escribas e os Fariseus procuravam ocultar essa desobediência sob o pretexto de piedade.
O capítulo 16, julgando a incredulidade dos Fariseus a respeito da Pessoa de Cristo, e pondo de lado esses homens perversos, apresenta a revelação da Sua pessoa como fundamento da Igreja, que devia substituir os Judeus como testemunha de Deus sobre a Terra; e anuncia os desígnios de Deus acerca do seu estabelecimento.
Juntamente com isto, mostra-nos a administração do reino, tal como era agora estabelecido na Terra.
Consideremos primeiramente a revelação da Pessoa de Cristo. Pedro confessa que Jesus é o Cristo, o cumprimento das promessas feitas por Deus e das profecias que anunciavam a sua realização. Ele era Aquele que devia vir, o Messias que Deus tinha prometido. Além disso, Ele era o Filho de Deus. O Salmo 2 tinha anunciado que, apesar dos conluios dos chefes perversos do povo e da orgulhosa inimizade dos reis da Terra, o Rei de Deus seria consagrado sobre o monte de Sião.
Era o Filho, gerado de Deus. Os reis e os juízes da Terra (1) são chamados a submeterem-se Lhe, para não serem feridos com o ceptro do Seu poder, quando Ele tomar as nações por Sua herança. Assim o verdadeiro crente esperava o Filho de Deus, nascido na plenitude dos tempos sobre a Terra.
(1) O estudo dos Salmos fez-nos compreender o que está em relação com o e estabelecimento em bênção do Remanescente Judeu nos últimos dias.
Pedro confessou que Jesus era o Filho de Deus. Natanael também o tinha feito: «Tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel» (João 1:49).
E, mais tarde, Marta diz a mesma coisa, No entanto Pedro, especialmente instruído pelo Pai, acrescenta à sua confissão uma palavra simples, mas –muito poderosa: «Tu és o Filho do Deus vivo».
Jesus não é apenas Aquele que cumpre as promessas e responde "às profecias; é do Deus vivo que Ele é Filho, d'Aquele em Quem está a vida e o poder vivificante.
O Filho herda desse poder de vida em Deus, que nada pode vencer nem destruir. Quem é que pode vencer o poder d'Aquele — desse Filho—que era procedente de «Aquele que vive»? Satanás tem o poder da morte; é ele que mantém o homem sob o domínio dessa terrível consequência do pecado; e isto pelo justo Juízo de Deus, que faz a força desse domínio. A expressão do verso 18: «as portas do inferno», do lugar invisível, refere-se a esse reino de Satanás.
E, pois, sobre esse poder, que deixa sem força a fortaleza do Inimigo, que a Igreja é edificada. A vida de Deus não será destruída. O Filho do Deus vivo não será vencido. Portanto, aquilo que Deus edifica sobre a rocha do poder imutável de vida em Seu Filho não será derrubado pelo império da morte. Se o homem sucumbiu e se caiu sob o poder desse império, Deus, o Deus vivo não será vencido por ele. É sobre este fundamento que Deus edifica a Sua igreja. Ela é a obra de Cristo, fundada sobre Si como Filho do Deus vivo—e não do primeiro Adão nem baseada nele, fundada sobre a Sua obra, consumada segundo o poder que esta verdade revela. A Pessoa de Jesus, o Filho do Deus vivo, é a sua força. A ressurreição é a demonstração dessa força. Ali, Ele é declarado Filho de Deus em poder. Consequentemente, não é durante a Sua vida, mas sim quando ressuscitado de entre os mortos que Jesus começa esta obra. A vida estava n'Ele; mas é após o Pai ter quebrado as portas do próprio Inferno (é Ele que, pelo Seu divino poder, tinha feito isso e ressuscitado) que, subido às alturas, Ele começa, pelo Espírito Santo, a edificar aquilo que o poder da morte ou o poder daquele que o detinha — agora já vencido — nunca poderá destruir. É a Sua Pessoa que está em vista aqui e é sobre Ela que tudo é fundado. A ressurreição é a prova de que Ele é o Filho do Deus vivo, e de que as portas do Inferno nada podem contra Ele; o poder delas é destruído pela Sua ressurreição. Por isso nós vemos que a Igreja (embora formada sobre a Terra) é muito mais do que uma dispensação; mas o reino não o é.
A obra da Cruz era necessária; mas aqui não se trata de saber o que o justo Juízo de Deus exigia, ou da justificação de um indivíduo, mas daquilo que anulava o poder do Inimigo.
Era dado a Pedro reconhecer a Pessoa d'Aquele que vivia segundo o poder da vida de Deus. Era uma revelação particular e direta do Céu, da parte do Pai. Sem dúvida, Cristo tinha dado provas bastantes do Quem Ele era; mas as provas não tinham produzido qualquer efeito no coração do homem. A revelação do Pai era o meio de saber Quem Ele era, e isso ia muito além das esperanças de um Messias.
Aqui, o Pai tinha revelado diretamente a verdade da própria Pessoa de Cristo, revelação que ultrapassava toda a questão de relação com os Judeus. Sobre este fundamento, Cristo edificaria a Sua Igreja. Pedro, já assim chamado pelo Senhor, recebe, nesta ocasião, uma confirmação desse título.
O Pai tinha revelado a Simão, filho de Jonas, o mistério da Pessoa de Jesus; e Jesus anuncia também, por meio do nome que lhe dá (1), a estabilidade, a firmeza, a duração, a força prática do Seu servo favorecido pela graça.
(1) A passagem (capítulo 16:10) deve ser lida: «Também eu te digo».
O direito de dar um nome pertence a uma superior que pode marcar àquele que o usa o seu lugar e o seu nome na família ou na posição em que esse inferior se encontra. Este direito, quando é real, supõe o discernimento, compreensão daquilo que se faz: Adão dá nomes aos animais (Gênesis 2:19-20). Nabucodonosor dá novos nomes aos Judeus cativos (Daniel 1:7); o rei do Egito a Eliaquim, que tinha colocado no trono e a quem passou a chamar Jeoaquim (2 Reis 23:34).
Jesus toma, pois, este lugar, dizendo a Pedro: Meu Pai to revelou; e eu também te dou um lugar e um nome relacionado com esta graça. É sobre aquilo que o Pai te revelou que eu vou edificar a minha Igreja (1), contra a qual (fundada como é sobre esta lida que vem de Deus) as portas do império da morte não prevalecerão nunca; e eu que edifico, e que edifico sobre este fundamento inabalável, eu te dou o lugar de uma pedra (Pedro) em relação com este templo vivo.
(1) É importante distinguir aqui a Igreja que Cristo edifica, ainda não acabada, mas que Ele mesmo edifica, e que, manifestada como um todo no mundo, é edificada, sob responsabilidade, pelo homem. Em Efésios 2:20-21, e era 1 Pedro 2:4-5 temos esta construção que cresce e é edificada. Não é feita nenhuma menção do trabalho do homem, quer numa quer noutra dessas passagens; é um trabalho divino, em 1 Coríntios 3, Paulo é um sábio arquiteto; outros podem edificar de madeira, feno ou palha. Á confusão daí resultante tem sido a base do Papado e de outras corrupções que se encontram naquilo que se chama a Igreja. A igreja de Deus, vista na sua realidade, é uma obra divina que Cristo realiza e na qual Ele habita.
Pelo dom de Deus, tu pertences já por natureza ao edifício — pedra viva e tendo o conhecimento desta verdade que é o fundamento e que faz de cada pedra uma parte do edifício Pedro era por excelência uma pedra, por causa daquela confissão; era-o por antecipação pela eleição de Deus. 0 Pai, na Sua soberania, fez-lhe esta revelação.
O Senhor assina-lhe ao mesmo tempo o seu lugar como tendo, Ele, direito de administração e autoridade no reino que ia estabelecer.
Eis o que nos é dito acerca da Igreja, nomeada aqui pela primeira vez, tendo os Judeus sido rejeitados por causa da sua incredulidade, e o homem convencido de pecado.
Um outro assunto se apresenta ligado àquele da Igreja que o Senhor ia edificar; a saber, o reino que devia ser estabelecido. Este reino devia ter a forma do reino dos céus; era-o assim nos desígnios do Deus. Mas tendo o Rei sido rejeitado sobre a Terra, o reino ia estabelecer-se agora de uma maneira especial.
Aliás, embora fosse rejeitado, o Senhor tinha as chaves desse reino; a autoridade pertencia-Lhe. Mas confiá-las-ia a Pedro que, quando Ele, Cristo, tivesse partido, abriria as portas do reino, primeiramente aos Judeus c depois aos Gentios. Pedro devia exercer também a autoridade no reino, da parte do Senhor; de modo que o que ele ligasse na Terra em Nome de Cristo (o verdadeiro Rei, embora assumpto ao Céu) teria sido ligado no Céu; e se desligasse alguma coisa na Terra em Nome de Cristo, isso teria sido desligado no Céu. Numa palavra, Pedro tinha o poder de comando no reino de Deus na Terra, e este reino tinha agora o carácter de reino dos céus, porque o seu Rei estava no Céu, e o Céu marcaria com a sua autoridade os atos de Pedro. Mas o Céu sancionaria os seus atos terrestres, e não o fato de ligar ou desligar para o Céu. A Igreja, relacionada com o carácter do Filho do Deus vivo e edificada por Cristo, embora formada sobre a Terra, pertence ao Céu; o reino, embora dirigido de Céu, pertence à Terra — tem aqui o seu lugar e o seu serviço (1).
(1) Note-se bem isto, de que, aliás, já falei noutro lugar: Não há chaves nenhumas do ou para a Igreja ou Assembleia. Pedro tinha as chaves da administração do reino. Mas a ideia de chaves em relação com a Igreja, ou o poder das chaves na Igreja é puro sofisma. Não há nada de semelhante.
A Igreja é edificada; os homens não edificam com chaves, e é Cristo (e não Pedro) quem a edifica. Por outro lado, os atos assim sancionados eram atos de administração neste mundo. O Céu sancionava esses atos; mas têm relação com o Céu, mas apenas com a administração terrestre do reino. Além disso, forçoso é notar que o que é conferido aqui é individua! e pessoal. Era um nome e uma autoridade conferidos Simão, filho de Jonas.
Algumas outras notas ajudar-nos-ão a melhor compreender o alcance destes capítulos. Na parábola do semeador (capítulo 13), a Pessoa do Senhor não nos é apresentada; trata-se apenas de semear e não de ceifar. Na primeira analogia do reino, Ele é Filho do homem, e o campo é o mundo.
Jesus está inteiramente fora do Judaísmo. O capitulo 14 mostra-nos o estado das coisas, desde a rejeição de João Batista até ao tempo em que o Senhor, por Seu lado, for reconhecido ali mesmo, onde foi rejeitado. No capítulo 15, é a luta moral, e Deus vê-Se a Si próprio ali em graça, como estando acima do mal. Não me deterei mais sobre este assunto, Mas no capítulo 16, temos a Pessoa do Filho de Deus, o Deus vivo, depois a Igreja e Cristo o construtor; no capítulo 17, temos o reino com o Filho do homem vindo em glória. As chaves (embora o Céu sancione o uso que Simão delas faça) eram, como vimos, as do reino (e não da Igreja); e isso — a parábola do Joio o demonstra — devia corromper-se e destruir-se, irremediavelmente. Cristo — e não Pedro — edifica a Igreja (comparar 1 Pedro 2:4-5).
Portanto, quatro coisas são assinaladas pelo Senhor nesta passagem: Primeira, a revelação feita pelo Pai a Simão; Segunda, o nome dado a Simão por Jesus, que ia edificar a Sua Igreja sobre o fundamento revelado naquilo que o Pai tinha comunicado a Simão; Terceira, a Igreja edificada pelo próprio Cristo, ainda incompleta, sobre o fundamento da Pessoa de Jesus» reconhecido como 'Filho do Deus vivo; Quarto, as chaves do reino destinadas a Pedro, isto é, a autoridade no reino, dada a Pedro, como administrando-o da parte de Cristo, ordenando nele o que era da Sua vontade e que teria sido ordenado no Céu. Mas tudo isto está relacionado com Simão pessoalmente, em virtude da eleição do Pai (que, em Sua sabedoria, o tinha escolhido para receber esta revelação), e em virtude da autoridade de Cristo (que lhe tinha dado o nome que o distinguia pessoalmente no gozo deste privilégio).
Tendo o Senhor, deste modo, dado a conhecer os propósitos de Deus acerca do futuro — propósitos que se cumpririam na Igreja e no reino — já não havia lugar para a Sua apresentação é os Judeus como Messias. Não é que Ele abandonasse esse testemunho, cheio de graça e de paciência para com o povo, testemunho que Ele tinha prestado durante todo o Seu ministério, não! Esse testemunho continuava, de fato, mas os Seus discípulos deviam compreender que já não era obra deles anunciá-Lo ao povo como sendo o Cristo. Desde então Ele começou também a fazer compreender aos Seus discípulos que devia sofrer, ser morto e ressuscitar (versos 21 e seguintes).
Ora, por muito abençoado e honrado que Pedro fosse pela revelação que o Pai lhe tinha feito, o seu coração ainda se inclinava de um modo carnal para a glória humana do seu Mestre (e, para dizer a verdade, para a sua própria), e estava longe de se elevar à altura dos pensamentos de Deus. Mas, ai! Ele não está só! ... Ser convencido das mais elevadas verdades, e até mesmo desfrutá-las sinceramente como verdades, é algo muito diferente de ter o coração formado para os sentimentos e para andar no mundo de harmonia com essas verdades.
Não á a sinceridade no gozo da verdade que faz falta. O que é preciso é ter a carne, o ego mortificados, é estar morto para o mundo.
Podemos desfrutar sinceramente da verdade tal como Deus a ensina, e, no entanto, não termos a carne mortificada nem o coração num estado que seja segundo essa verdade em que Ele se move neste mundo.
Ped.ro (há pouco tão honrado pela revelação da glória de Jesus, e constituído, de maneira muito particular, o depositário da administração do reino confiada ao Filho — tendo um lugar destacado no estado de coisas que devia seguir-se à rejeição de Cristo pelos Judeus), Pedro faz agora a obra do Inimigo a respeito da perfeita submissão de Jesus ao sofrimento e à ignomínia que deviam introduzir essa glória e caracterizar o reino.
Infelizmente, a coisa era simples demais: Pedro pensava nas coisas do homem —e não nas de Deus. Mas o Senhor, na Sua fidelidade, repeleo, e ensina aos Seus discípulos que a Cruz é o único caminho, o caminho assente, necessário; e quem quisesse segui-Lo devia entrai nesse caminho que Ele tomava. Aliás, que aproveitaria ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Porque era disso que se tratava (1), e não da glória exterior do reino.
(1) Na primeira Epístola de Pedro encontramos frequentemente estes pensamentos — as palavras «esperança», «pedra viva» — aplicados primeiramente a Cristo e depois aos Cristãos. E, concordando com isto» a salvação pela vida cia Cristo, o Filho do Deus vivo, encontramos ainda aqui: «Alcançando o fim da vossa fé, a salvação das almas». Veja-se também todos os versos em que o apóstolo apresenta as suas instruções.
Após ter examinado este capítulo, como sendo a expressão da transição do sistema Messiânico para o estabelecimento da Igreja fundada sobre a revelação da Pessoa de Cristo, desejo chamar também a atenção para os caracteres de incredulidade que -ali se desenvolvem, quer entre os Judeus, quer nos corações dos discípulos. Ser-nos-á útil observarmos um pouco as formas dessa incredulidade: Em primeiro lugar cia toma uma forma mais grosseira, pedindo um sinal do Céu.
Os Fariseus e os Saduceus unem-se para mostrarem a sua insensibilidade a tudo o que o Senhor tinha feito. Pedem uma prova para os sentidos naturais, ou seja, para a sua incredulidade. Não querem crer em Deus, quer escutando as Suas palavras, quer considerando as Suas obras. Seria necessário que Deus satisfizesse a vontade deles, o que não seria nem a fé nem a obra de Deus. Eles tinham inteligência para as coisas humanas bem menos claramente manifestadas, mas não tinham nenhuma inteligência para as coisas de Deus. Por isso não lhes seria dado outro sinal senão o de um Salvador perdido para eles, como Judeus sobre a Terra. Teriam de se submeter, quer quisessem quer não, ao Juízo da incredulidade que manifestavam. O reino ser-lhes-ia tirado; o Senhor deixa-os.
O sinal de Jonas está ligado com o assunto de todo o capítulo.
Vemos em seguida a mesma falta de atenção para com o poder manifestado nas obras de Jesus; mas já não se trata da oposição da vontade incrédula: a preocupação do coração pelas coisas presentes subtrai-o à influência dos sinais já dados. Mas isto é fraqueza, e não má vontade.
No entanto, os discípulos são culpados, e Jesus chama-os «homens de pouca fé», mas não «hipócritas» nem «geração perversa e adúltera».
Vemos depois a incredulidade manifestar-se sob a forma de uma opinião indolente, que mostra que o coração e a consciência daqueles de que se trata não se interessam por um assunto que deveria dominálos — assunto de tal ordem que se o coração pensasse realmente na sua verdadeira importância, não teria descanso enquanto não tivesse tido inteira certeza a seu respeito. Neste caso a alma não sente necessidade de nada e por isso não tem discernimento.
Quando a alma sente necessidades, uma só coisa pode satisfazê-la—e não pode haver descanso enquanto a não encontrar, A revelação de Deus que criou essas necessidades não deixa a alma tranquila até que ela possua com toda a certeza o que a despertou. Os que não sentem necessidades, podem permanecer nas probabilidades, cada um segundo o seu caráter natural, a sua educação e as suas circunstâncias.
Existem muitas coisas para despertar a curiosidade — a mente está ocupada com elas e faz o seu juízo. A fé tem necessidades, e, em princípio, tem compreensão do objeto que responde a essas necessidades; a alma e exercitada até encontrar o que precisa. O fato é que Deus está presente.
É o caso de Pedro. O Pai revela-lhe o Seu Filho. Embora fosse fraco, encontra-se nele uma fé viva, e reconhece-se o estado da sua alma quando diz: «Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna, e nós temos visto e crido que tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo» (João 6:68-69). Feliz o homem a quem Deus revela tais verdades! em quem desperta tais necessidades! Pode haver lutas, muita coisa para aprender, muito que mortificar; mas o plano de Deus está ali com a vida que com isso se relaciona. Vimos o seu efeito no caso de Pedro. Cada crente tem o seu lugar no templo do qual Simão era uma pedra tão destacada. Segue-se então que o coração esteja, na pratica, à altura da revelação que lhe foi feita? Não; a carne, ao fim e ao cabo, pode não estar mortificada do lado onde a revelação toca a nossa posição terrestre.
Com efeito, a revelação feita a Pedro implicava a rejeição do Cristo neste mundo — levava necessariamente à humilhação de Cristo e à Sua morte. Esse era o ponto essencial.
Substituir a revelação do Filho de Deus, da Igreja e do reino celeste pela manifestação do Messias na Terra — o que isso significava, senão que Jesus devia ser entregue aos Gentios, ser crucificado, e depois ressuscitar? Mas Pedro não havia prestado moralmente atenção a tudo isso.
Pelo contrário, o seu coração carnal aproveitava-se da revelação que lhe linha sido feita e do que o Senhor lhe tinha dito, para se elevar aos seus próprios olhos. Ele via, pois, a glória pessoal de Jesus, sem lhe apreender as consequências morais. Põe-se a repreender o próprio Senhor e procura afastá-lo do caminho da obediência e da submissão.
O Senhor, sempre fiel, trata-o então como um adversário.
Infelizmente, quantas vezes temos nós gozado, gozado sinceramente de uma verdade, e, no entanto, faltado às consequências práticas que daí decorriam para nós sobre a Terra! Um Salvador celeste, glorificado, que edifica a Igreja — isso implica a Cruz sobre a Terra.
A carne não compreende isto. Ela elevará o seu Messias ao Céu, por assim dizer; mas tomar a sua parte da humilhação que necessariamente se segue não é a sua ideia de um Messias glorioso.
A carne tem de ser mortificada para tomar esse lugar. Para isso é-nos necessária a força de Cristo pelo Espírito Santo.
Um crente que não está crucificado para o mundo não é senão uma pedra de tropeço para todo aquele que procura seguir a Cristo.
Tais são as formas de incredulidade que precedem a verdadeira confissão de Cristo e que, infelizmente, se encontram naqueles que sinceramente O têm confessado e conhecido (não estando a carne mortificada de maneira a fazer andar a alma à altura daquilo que ela aprendeu de Deus, e estando a inteligência espiritual obscurecida pelo pensamento das consequências que a carne rejeita).
Mas se a Cruz é a entrada do reino, a glória não tardará a produzir-se.
Sendo o Messias rejeitado pelos Judeus, um título mais glorioso e de mais profundo alcance é revelado: o Pilho do homem virá na glória de Seu Pai (porque Ele é Filho de Deus) e dará a cada um segundo as suas obras (verso 27). Alguns mesmo dos que ali estavam não provariam a morte (pois era dela que falavam) antes de terem visto a manifestação da glória do reino, que pertencia ao Filho do homem.
Podemos notar aqui o título de «Filho do homem» posto como fundamento; o título de Messias é abandonado, em quanto testemunho prestado nesse tempo, e substituído pelo de «Filho do homem», que Jesus toma ao mesmo tempo que o de Filho de Deus, e que tinha uma glória que Lhe pertencia de pleno direito. Jesus devia vir na glória de Seu Pai, como Filho de Deus, e no Seu reino, como Filho do homem.
É interessante recordar aqui a instrução que nos é dada no princípio do Livro dos Salmos. O justo, distinguido da congregação dos ímpios, foi apresentado no sl 1. No Salmo 2 encontramos a revolta dos reis da Terra e dos príncipes contra o Eterno e contra o Seu Ungido (quer dizer, o Seu Cristo). Ora, a este respeito é declarado o decreto do Eterno. Adonai, o Senhor, rir-Se-á deles desde o Céu. Além disso o Rei de Jeová será estabelecido no Monte de Sião. Eis o decreto: «O SENHOR me disse: Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei» (1). E é ordenado aos reis e aos juízes da Terra que beijem o Filho.
(1) Vimos que Pedro ia mais longe. Aqui. Cristo é considerado como o Filho, nascido sobre a Terra no tempo, e não como Filho eternamente no seio do Pai. Pedro, será receber a plena revelação desta verdade, vê-O como Filho segundo o poder da vida divina na Sua própria Pessoa; Pessoa sobre a qual a Igreja, por conseguinte, podia ser edificada. Mas aqui consideramos o que se reporta ao reino.
Nos Salmos seguintes, toda esta glória é obscurecida.
A angústia do Remanescente, na qual Cristo tem uma parte, é-nos relatada. Depois, no Salmo 8, Cristo é proclamado Filho do homem.
Herdeiro de todos os direitos conferidos em soberania ao homem pelos desígnios de Deus. O nome de Jeová torna-se excelente em toda a Terra. Estes Salmos não vão além da parte terrestre destas verdades, exceto na passagem: «Aquele que habita nos céus se rirá deles» (Salmo 2:4); enquanto que em Mateus 16 a relação do Filho de Deus com isto e a Sua vinda com os anjos (para não falar da Igreja) são postas sob os nossos olhos.
Isto é, vemos que o Filho do homem virá na glória do Céu.
Não é que a Sua estadia no Céu seja a verdade anunciada nesta passagem, mas sim que o Filho do homem, vindo para estabelecer o Seu reino sobre a Terra, está revestido da mais elevada glória do Céu.
Ele vem no Seu reino.
O reino está estabelecido sobre a Terra, mas Ele vera com a glória do Céu para o tomar. É o que o capítulo seguinte nos vai mostrar, segundo a promessa do verso 28 deste.
Nos Evangelhos que falam do reino, a transfiguração segue-se imediatamente à promessa de se não provar a morte antes de ver o reino do Filho do homem. E não somente isso, mas Pedro (na sua segunda Epístola 1:16), falando desta cena, declara que era uma manifestação do poder e da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Diz ele que a palavra profética lhes tinha sido confirmada pela revelação da Sua majestade; de sorte que os apóstolos sabiam do que falavam anunciando o poder e a vinda de Cristo, por terem visto a Sua majestade. É, efetivamente, nesse sentido que o Senhor fala dela aqui, como temos visto.
A transfiguração era uma demonstração da glória em que Ele viria depois para confirmar a fé dos Seus discípulos na perspectiva da Sua morte, a qual lhes acabava de anunciar.