CAPÍTULO 8

Aqui, o Senhor começa no meio de Israel a Sua paciente vida de testemunho, que findou com a Sua rejeição pelo povo que Deus havia preservado durante longo tempo para Si, e para sua própria benção.

O Senhor tinha anunciado o reino, posto em evidência em todo o país o Seu poder, declarado o Seu caráter, bem como o espírito dos que deviam entrar no reino. Mas os Seus milagres (1) bem como todo o Evangelho, são sempre caracterizados pela Sua posição entre os Judeus e os desígnios de Deus com eles, até ser rejeitado. Ele é Jeová, mas é homem obediente à lei, deixando antever a entrada dos Gentios no reino (o seu estabelecimento em mistério no mundo), predizendo a edificação da Igreja ou Assembleia sobre o reconhecimento de ser o Filho do Deus vivo, e o reino em glória; e, ao mesmo tempo que revela como efeito da Sua presença a perversão do povo (2) leva sobre o Seu coração, com perfeita paciência, o fardo de Israel. É Jeová, presente em bondade, aparentemente um deles mesmo: espantosa verdade!

(1) Os milagres de Cristo tinham um caráter particular. Não se tratava apenas de atos de poder, mas sim de atos do poder de Deus, visitando este mundo em bondade. Este poder tinha sido frequentemente manifestado, sobretudo a partir de Moises, mas não raro em Julgamento. Todos os milagres de Cristo livravam os homens das funestas consequências que o pecado tinha trazido. Houve apenas uma exceção, a maldição da figueira, mas ela representava unia sentença judicial contra Israel, isto é, contra o homem sob a antiga aliança, quando tinha uma bela aparência, mas não dava fruto.

(2) Acrescento aqui algumas notas manuscritas, tomadas ao reler o Evangelho segundo S. Mateus, depois de preparado este estudo. Elas lançarão, penso eu, luz sobre a estrutura desse Evangelho. Os capítulos 5 a 7 indicam o caráter requerido para entrar no reino, caráter que devia marcar o Remanescente reconhecido, estando Jeová então em caminho com a nação, para o Julgamento. Os capítulos 8 e 9 mostram o outro lado da questão: a graça e a "bondade introduzidas, Deus manifestado, o Seu caráter e os Seus atos — essa coisa nova que não podia meter-se entre as velhas; e ainda a bondade em poder, mas rejeitada, o Filho do homem (não o Messias) nos tendo onde repousar a cabeça. O capítulo 8 apresenta a intervenção atual de Deus, em bondade temporal com poder. Este capítulo ultrapassara Israel por causa da bondade que atuava em graça a respeito do que era excluído do campo de Deus em Israel.

Compreende o poder de Deus acima de todo o poder de Satanás, das enfermidades e dos elementos, e isto por Cristo, tomando o fardo sobre Si próprio, mas numa rejeição de que Ele tinha plena consciência. Os versos 17 a 20 do capitulo 8 levam-nos a Isaias 53:3-4, e um estado de coisas que exige que O sigamos plenamente, renunciando a tudo o mais. Isto conduz a este triste testemunho; Se o poder divino expulsa a Satanás, a presença divina, que assim se manifesta, é insuportável para o mundo. Os porcos representam Israel, O capítulo 9 mostra o lado religioso da presença do Senhor em graça, o perdão, e o testemunho de que Jeová eslava ali, segundo o Salmo 103, mas para chamar os pecadores — e não os justos. Eis, sobretudo, o que na» podia convir aos velhos odres... Finalmente, exceto a paciência em bondade, este capítulo põe praticamente fim à história.

Ele veio para salvar a vida de Israel. Quando Ele veio era, realmente, a morte! ... Somente, por toda a parte onde havia fé, no meio da multidão circunvizinha, havia curas. Os Fariseus mostram a blasfémia dos chefes, mas a paciência da graça subsisto ainda, desenvolvida para com Israel, no capítulo 10. No capítulo 11 todas as coisas foram achadas como não servindo para nada. O Filho revelava o Pai e isto permanece em nós e dá descanso.

O capítulo 12 desenvolve plenamente o Julgamento e a rejeição de Israel.

O capítulo 13 apresenta Cristo como um semeador, não procurando fruto na sua vinha; apresenta também a forma atual do reino dos Céus.

Em primeiro lugar encontramos a cura do leproso. Só Jeová, em Sua bondade soberana, podia curar a lepra; (veja-se Levítico 14). Aqui Jesus faz o mesmo. «Se quiseres», diz o leproso, «podes» «Quero», responde o Senhor (capítulo 8:2-3). Mas, ao mesmo tempo, enquanto manifesta em Sua própria Pessoa o que repele toda a possibilidade de contaminação — o que está acima do pecado—mostra a mais perfeita condescendência para com aquele que estava contaminado. Ele toca o leproso, dizendo: «Quero, sê limpo» (verso 3). Vemos a graça, o poder, a santidade incontaminável de Jeová, descendo na Pessoa de Jesus, à maior proximidade do pecador, tocando-o, por assim dizer.

Era, na verdade, «o Senhor que te cura» (Êxodo 15:26) (1). Ao mesmo tempo Jesus esconde-Se, e ordena ao homem, que acabava de ser curado, que vá mostrar-se ao sacerdote, em conformidade com as ordenanças da lei, e que fizesse a sua oferta.

(1) Aquele que tocasse num leproso tornava-se ele próprio impuro, mas o nosso adorado Salvador aproximou-Se mesmo assim do homem e limpou-o sem contudo contrair a impureza dele. O leproso conhecia o poder do Senhor, mas não estava seguro da sua bondade. O «Quero» manifesta-a, mas com o direito que só Deus tinha de dizei: «Quero».

Não sai da esfera do Judeu em sujeição à lei; mas Jeová estava ali em bondade.

Porém, no caso seguinte, encontramos (versos 5 e seguintes) um Gentio que, pela fé, desfruta o pleno efeito daquele poder que a sua fé atribui a Jesus, dando ao Senhor ocasião para revelar a verdade solene de que muitos destes pobres gentios virão e se assentarão no reino dos céus com os pais, honrados pelos Judeus como progenitores dos herdeiros da promessa, enquanto que os filhos do reino seriam lançados nas trevas exteriores. De fato, a fé do centurião reconhecia um poder divino em Jesus que, devido à glória d'Aquele que o possuía, não abandonaria Israel, mas abriria a porta aos Gentios e enxertaria na oliveira da promessa ramos da oliveira brava no lugar daqueles que seriam cortados. A forma como essas coisas se cumpririam na Assembleia não estava agora em questão.

Jesus não abandona ainda Israel. Entra em casa de Pedro e cura a sogra dele. E, passado o sábado, faz o mesmo a todos os enfermos que se juntam em redor da casa. Os enfermos são curados, os demónios expulsos, de modo que a profecia de Isaías tem o seu cumprimento: «Verdadeiramente Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si» (Isaías 53:4), Jesus tomou de Sua livre vontade o peso de todas as dores que oprimiam Israel a fim de os aliviar e curar, li ainda Emanuel que sente a sua miséria e Se aflige com as aflições deles, mas que vem com esse poder que demonstra que Ele é capaz de os libertar.

Estes três casos de cura de que acabamos de falar mostram o caráter do Seu ministério de um modo claro e notável. Esconde-Se porque, até ao momento de mostrar o JUÍZO aos Gentios, não levanta a Sua voz nas praças públicas.

É a pomba que está sobre Ele. As demonstrações do Seu poder atraem a Si os homens; mas isso de modo nenhum O ilude, e nunca, em espírito, Se afasta do lugar que tomou. É desprezado e rejeitado pelos homens; não tem onde reclinar a cabeça. As raposas e as aves do céu têm mais lugar sobre a Terra do que Ele—Ele, a Quem vimos aparecer um momento antes como sendo o Senhor Deus, o Eterno, reconhecido ao menos pelos infelizes, a cujas necessidades Ele nunca deixou de responder. Portanto, se alguém O quer seguir, tem de deixar tudo para ser companheiro do Senhor, que não teria vindo à Terra se tudo tivesse estado em ordem; nem sem absoluto direito, embora fosse ao mesmo tempo com amor; que só podia ser manifestado pela Sua missão e as necessidades que O trouxeram.

O Senhor tinha de ser sobre a Terra ou tudo ou nada.

Isto devia ser, com efeito, sentido moralmente nos seus efeitos na graça que, agindo pela fé ligava o fiel com Ele por um inefável elo.

Sem isto o coração não poderia ter sido moralmente posto à prova.

Mas isto não era menos verdade, porquanto as provas estavam bem presentes: O vento e as ondas, aos quais, no parecer humano, Ele estava exposto, obedeciam à Sua voz — notável prova para a incredulidade que O tinha despertado do Seu sono, e havia suposto que era possível que as ondas O tragassem e com Ele os desígnios e o poder de Quem criou os ventos e as ondas! É claro que aquela tempestade foi permitida a fim de experimentar a fé deles e manifestar a dignidade da Sua Pessoa.

Se o Inimigo era o instrumento que a produziu, apenas conseguiu que o Senhor manifestasse a Sua glória. Tal é sempre o caso para Cristo e para nós, quando a fé existe.

Ora a realidade deste poder e o modo como ele operava são grandemente demonstrados pelo que se segue (versos 28 e seguintes).

O Senhor desembarca no país dos Gergesenos ou Gadarenos.

Ali o poder do Inimigo mostra-se em todos os seus horrores. Se o homem, para quem o Senhor tinha vindo em graça, não O conhecia, os demónios conheciam o seu Juiz na Pessoa do Filho de Deus. O homem estava possesso deles. O temor que eles tinham do tormento aquando do Juízo Final é aplicado no espírito do homem à presença imediata do Senhor: «Vieste aqui atormentar-nos antes de tempo?».

Os demónios atuam nos homens pelo terror do seu poder; não têm realmente nenhum, a não ser que sejam temidos. Mas semente a fé pode tirar este medo ao homem.

Não falo da concupiscência mediante a qual eles atuam, nem dos ardis do Inimigo, mas sim do seu poder. «Resisti ao Diabo e ele fugirá de vós». Aqui, os demónios desejam mostrar » realidade do seu poder, e o Senhor permite-o a fim de tornar bem claro que neste mundo não é meramente o homem que está em causa, quer seja bom ou mau, mas sim o que é mais forte do que o homem- Os demónios entram nos porcos e estes perecem nas águas. Existe realidade, plenamente demonstrada! Não se tratava nem de simples enfermidade nem de concupiscência pecaminosa, mas de demónios! Mas, graças a Deus, tratava-se também de Alguém que, embora homem na Terra, era mais poderoso do que eles. São obrigados a reconhecer esse poder e apelam para ele. Não existe a ideia de resistência. Na tentação do deserto Satanás fora vencido. Jesus liberta completamente o homem a quem eles haviam oprimido com o seu poder satânico. O poder dos demônios não era nada perante Ele. Podia ter libertado o mundo de todo o poder do Inimigo, se essa fosse a única questão, e de todos os males da Humanidade. O valente fora manietado e o Senhor dispunha do despojo. Mas a presença de Deus, de Jeová, perturba o mundo mesmo mais do que o poder do Inimigo que avilta e domina sobre a mente e o corpo.

O poder do Inimigo sobre o coração—tão pacífico, tão modesto e infelizmente tão pouco sentido — é mais poderoso do que a sua própria força. Este poder sucumbe ante a Palavra de Jesus, mas a vontade do homem aceita o mundo tal como ele é, governado pela influência de Satanás.

A cidade, que tinha visto a libertação do endemoninhado e o poder de Jesus entre eles, pede-Lhe que se retire.

Triste história, a deste mundo! O Senhor veio com poder para libertar o mundo — o homem — de todo o poder do Inimigo; mas o mundo não o quis. O homem estava moralmente afastado de Deus, e não apenas submetido à escravidão do Inimigo. Submetera-se ao seu jugo, habituara-se a ele, e não quis a presença de Deus.

Não duvido de que o que aconteceu aos porcos seja uma figura do que aconteceu aos Judeus ímpios e profanos que rejeitaram o Senhor Jesus. Nada mais impressionante do que a maneira como a Pessoa divina, Emanuel, embora homem em graça, é manifestado neste capítulo.