“Qualquer coisa”
W. Potter escreveu um breve artigo sobre as ações da assembleia no qual ele diz que a expressão “qualquer coisa” de Mateus 18:19 é incondicional. Uma assembleia pode ligar erroneamente algo, e nosso dever é nos sujeitarmos até que seja feita uma retificação de forma pacífica e ordenada. Independente do que Potter diz, para alguns a interpretação de “qualquer coisa” como incondicional parece tirada do papismo católico romano. A opinião desses é que isso tornaria a assembleia infalível em suas ações administrativas, o que não é verdade. Tais pessoas argumentam que se a expressão “qualquer coisa” for incondicional, então a assembleia poderia ligar qualquer coisa que quisesse, e ela automaticamente seria ligada no céu. Em seu modo de pensar isso deixaria o céu sujeito às ações da igreja na terra, e se a assembleia cometesse um erro, o céu estaria se colocando em comunhão com o mal, algo que Deus jamais faria. A princípio, um argumento assim pode parecer bem lógico, mas por trás dele está uma tentativa do inimigo de criar confusão na assembleia e minar suas ações. Para isso bastaria alguém declarar que uma determinada ação da assembleia foi injusta, para concluir que ela não teria o respaldo do céu. E se o céu não a endossasse ninguém estaria obrigado a aceitá-la e nem se submeter a ela. Esta é uma maneira conveniente de se desprezar aquelas ações da assembleia que não nos agradem. Se os Atos administrativos de uma assembleia só devessem ser obedecidos sob a condição de estarem corretos, toda e qualquer ordem seria subvertida. [Ver nota]
[Nota: “Isto é confundir autoridade com infalibilidade. Em uma centena de situações a obediência pode ser compulsória sem que exista infalibilidade. Se não fosse assim, não poderia existir qualquer ordem no mundo, como você pode facilmente constatar...
Se não existisse obediência a menos que existisse infalibilidade; se não existisse qualquer concordância com o que fosse decidido, não haveria limites para a vontade própria, e a ordem comum desapareceria.” “Letters of J. N. Darby”, vol. 1, p. 421.]
O grande problema dessa ideia errônea é que os julgamentos da assembleia ficariam sujeitos ao nosso julgamento pessoal. A assembleia já não seria a corte da autoridade mais elevada nesses assuntos, e sim nosso próprio juízo. Toda a ordem se perderia assim. Todos ficariam livres para fazer o que parecesse “reto aos seus olhos” (Jz 21:25). Muitos têm sido enganados com a ideia de que, a menos que uma ação da assembleia trouxesse o inconfundível carimbo da Palavra de Deus, ela não ligaria pessoa alguma na terra e não seria ratificada no céu. Em outras palavras, a decisão da assembleia somente teria validade quando fosse uma decisão correta. Ora, se fôssemos nos sujeitar a uma decisão da assembleia apenas quando a considerássemos correta, o triste resultado de cada vez que a assembleia agisse seria que alguns se sujeitariam à decisão, e outros não, simplesmente por causa de suas diferenças de opinião. Nos dias atuais, quando a igreja está em um estado generalizado de ruína, estaríamos sujeitos a encontrar alguns que pensam ser mais sábios que seus irmãos, e cujo julgamento pessoal irá diferir do julgamento da assembleia. O inimigo logo se aproveitaria disso para dividir os santos, e desta forma abalar a unidade. Certamente não é este o modo de Deus garantir a ordem em Sua casa. Nossa responsabilidade é nos submetermos, mesmo quando acharmos que a decisão está errada, e depois esperarmos no Senhor para que ela seja corrigida. É assim que a ordem é mantida. J. N. Darby escreveu: “Mesmo que eu ache que uma assembleia se enganou em seu julgamento, meu primeiro passo é aceitá-lo e agir conforme for determinado” (“Letters of J. N. Darby”, vol. 2, p. 132).
Na tentativa de negar a força da expressão “qualquer coisa” em Mateus 18:18, e querer provar que ela não poderia ser incondicional, alguns erroneamente presumiram que o versículo 19 seria de uma reunião de oração, concluindo assim que, se a expressão “qualquer coisa” nas orações da assembleia estiver sujeita à aprovação do céu (pois Deus somente responde às nossas orações quando elas estão de acordo com a Sua vontade), então as questões relacionadas à expressão “qualquer coisa” para as decisões de “ligar” deveriam também estar sujeitas à aprovação do céu. Muitos cristãos bem intencionados tiram o versículo 19 de seu contexto e acreditam que se alguns crentes se reunirem para orar sobre uma questão suas orações serão respondidas, pois o Senhor assim prometeu. A passagem não fala de indivíduos orando juntos, mas daqueles congregados ao nome do Senhor e reunidos como tais, agindo dentro de suas responsabilidades administrativas. Mas é um engano pensar que os versículos 19-20 estejam se referindo estritamente a uma reunião de oração. O contexto indica que se trata de uma reunião para disciplina, apesar de o princípio estabelecido nestes versículos ser amplo o suficiente para incluir todas as reuniões da assembleia em uma aplicação secundária. (Por isso Mateus 18:20 é às vezes lido no partir do pão). Em 1 Coríntios5:4-5 Paulo refere-se a essa mesma reunião em nome do Senhor no sentido da disciplina. Se o assunto de Mateus 18 fosse uma reunião de oração, então o Senhor teria mudado de assunto bem no meio de seu discurso sobre as ações administrativas da assembleia para mais tarde, no versículo 20 e seguintes, voltar ao assunto, ao falar da necessidade de se ter um espírito voltado para o perdão de um irmão que estivesse arrependido de seu pecado (vers. 21-35). Se assim fosse, estaria fora de ordem. O ponto do versículo 19 é que a assembleia se reúne com o Senhor no meio (vers. 20) para invocar a Deus com o objetivo de ratificar sua decisão de “ligar”. A promessa é clara: “isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus”.
Para aqueles que porventura têm dúvidas se a expressão “qualquer coisa” se refere efetivamente a qualquer coisa que a assembleia decida julgar, sugiro a leitura de 2 Coríntios2:10. Ali vemos que quando o assunto é “ desligar” uma ação de “ligar ”, Paulo diz: “E a quem perdoardes alguma coisa...”. Se eles são vistos perdoando “alguma coisa”, necessariamente devem ter ligado a mesma “coisa”. Isto não deveria ser difícil de entender para aqueles que têm o desejo de obedecer. Mas é aí que está a questão. Será que desejamos realmente fazer a vontade do Senhor? A verdade é para aqueles que desejam fazer Sua vontade (Jo 7:17). Às vezes as pessoas criam tamanha confusão por acharem que a assembleia talvez tenha tomado uma decisão errada, que é de se perguntar aonde elas querem chegar. Mas a pergunta é: com que frequência coisas as-sim acontecem? Raramente. W. Potter também comenta no mesmo artigo que em 50 anos ele não soube de qualquer ação tomada entre os irmãos à qual não fosse possível alguém se submeter.
C. D. Maynard escreveu: “Uma assembleia, quando congregada ao Nome de Cristo, tem a Ele em seu meio, e possui Sua autoridade para agir em “ligar” ou “desligar” os pecados de um irmão ofensor (Mt 18:18-20). Tal ação é ratificada no céu. Não existe como apelar de tal decisão, a não ser a Cristo na glória; do mesmo modo como Jesus ‘entregava-se [ou entregava a Sua causa] Àquele que julga justamente’ (1 Pd 2:23)... Pode ocorrer a alguns que se uma assembleia local viesse a julgar erroneamente (segundo a opinião desses) poderia ser feito um apelo a outra assembleia local. Por exemplo, para restaurar alguém que tivesse sido erroneamente excluído. Não existe mais fundamento bíblico para isso que para a corrupção do romanismo. O seu sentido é negar a unidade prática das duas assembleias. Imaginar tal coisa é negar que exista um só corpo e um só Espírito. Se a mesa do Senhor for uma, ambas as assembleias estão sujeitas à ação de uma delas, portanto é impossível um apelo desse tipo. Se uma assembleia puder revisar o julgamento da outra, não existe unidade do Espírito ali, mas as duas não passam de reuniões independentes” (C. D. Maynard, “Various Papers on Assembly Principles”, A Local Assembly, p. 72). A falta de entendimento deste importante princípio nas questões da assembleia está por trás de todas as tristes divisões que ocorreram entre aqueles reunidos ao Nome do Senhor ao longo dos anos. Portanto faremos bem em ponderar cuidadosamente estas coisas.
Outra ideia errônea que alguns têm é que se a assembleia tomar uma decisão errada (e pode ser que seja errada apenas na opinião desses), então ela não pode mais ser considerada uma assembleia reconhecida por Deus, e, portanto, os que não concordassem deveriam abandoná-la. Isso pode ser uma desculpa para essas pessoas agirem na vontade própria, e talvez irem congregar em outro lugar. Todavia, é um engano pensar que uma assembleia perca sua posição como assembleia biblicamente congregada ao Nome do Senhor caso ela tome uma decisão errada. Esta ideia revela a ignorância em confundir autoridade com infalibilidade. Acreditar que uma assembleia tenha autoridade, e não infalibilidade, inclui presumir a possibilidade de ela cometer um erro. Ao cometer um erro a assembleia não perde seu status de estar biblicamente reunida, do mesmo modo como os pais em uma família não deixam de ser pais por terem cometido um erro ao disciplinarem um filho. A assembleia em Corinto continuava sendo reconhecida pelo apóstolo como a igreja em Corinto, e era assim que ele endereçava suas cartas, apesar de existirem ali problemas sérios. Se uma assembleia assim se recusasse a corrigir os erros existentes em seu meio, depois de ter sido admoestada muitas vezes e com muita paciência, ela estaria sujeita a ser desligada ou deixar de ser reconhecida, mediante uma ação de outra assembleia tomada em nome das assembleias como um todo que permanecessem sobre o verdadeiro terreno da igreja.