A Assembleia Local
A primeira referência à assembleia local na Palavra de Deus está em Mateus 18:15-20. Conforme já vimos, quando existisse a necessidade de resolver problemas que porventura surgissem entre os santos estes deveriam dizer à igreja ou assembleia (Mt 18:17).
Após falar da autoridade que foi delegada à assembleia, o Senhor seguiu definindo o que é a assembleia, ao dizer: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”. Portanto, está muito claro que nenhum outro além do Senhor é quem nos diz que a assembleia local é formada pelos santos reunidos ao Seu Nome. A sabedoria do Senhor fica evidente quando Ele menciona o número mínimo de santos (dois ou três) que poderiam compor uma assembleia local. Prevendo a grande ruína que viria sobre o testemunho cristão, Ele sabia que as condições seriam de uma fraqueza tal que talvez restassem apenas dois ou três reunidos assim em uma localidade. E ainda que só existissem dois ou três, mesmo assim seria “a igreja” ou assembleia.
Quando vemos as várias referências à assembleia local feitas na Palavra de Deus aprendemos que ela está fisicamente reunida e funciona na prática em uma cidade ou localidade (1 Co 11:18). Aprendemos que ela está reunida para adoração e ministério etc. (1 Co 11:20-26, 14:3-5), e que nela as irmãs devem permanecer caladas (1 Co 14:34-35). Além disso, o apóstolo Paulo falou da assembleia como algo em que as pessoas poderiam entrar e sair em diferentes ocasiões. Ele também disse que ele próprio nem sempre estava ministrando na assembleia, pois quando saía em campo para pregar ele falava mais idiomas do que eles, porém na assembleia preferia usar cinco palavras para fazer-se entender do que ficar falando em alguma língua estrangeira (1 Co 14:18-19). E em 1 Coríntios 14:23-24 Paulo demonstra que até mesmo incrédulos poderiam entrar na assembleia! E tem mais: o apóstolo João falou da assembleia local como sendo algo de onde alguém poderia ser expulso! (3 João 10). Tudo isso demonstra claramente que a assembleia local é mais que um mero conceito abstrato de um conjunto de todos os cristãos em uma determinada localidade.
Ora, se fosse correta a ideia de que a assembleia local não passaria do conjunto de todos os cristãos em uma cidade, o apóstolo João não poderia tê-la chamado de “a igreja” ou assembleia quando certas pessoas fossem expulsas dela, como ele disse estar acontecendo (3 Jo 10). Também vemos que Paulo se dirigiu aos santos em Corinto como “a igreja” ou assembleia naquela cidade (1 Co 1:2), todavia mais adiante na epístola ele admitiu o fato de que talvez existissem outros cristãos na cidade (os “indoutos” ou “infiéis”) que viviam entre eles, que poderiam ir às suas reuniões para assisti-las (1 Co 14:16, 23-24 — conforme a tradução de J. N. Darby, “aquele que ocupa o lugar de um simples cristão”). Se existiam cristãos assim na cidade de Corinto, então fica claro que Paulo não partilhava da ideia de que todos precisassem estar presentes para que ela fosse chamada de “a igreja” ou assembleia em Corinto. Mais uma vez, na segunda epístola de Paulo aos Coríntios, ele se dirigiu aos santos ali como “a igreja” ou assembleia em Corinto (2 Co 1:1), apesar de existir pelo menos um deles que não estava, na prática, entre os santos, por ter sido excomungado (1 Co 5:12-13). O ponto é que aqueles a quem Paulo endereçava sua epístola não formavam o conjunto de todos os cristãos em Corinto, e ainda assim ele os chamou de “igreja” ou assembleia.
Quão diferente isso é do aspecto universal da assembleia. Se alguém tentasse aplicar as referências mencionadas aqui à assembleia em seu sentido universal, acabaria tirando toda sorte de conclusões errôneas. E ficaríamos igualmente confusos se tentássemos aplicar estas referências à definição incompleta de assembleia como se fosse meramente o conjunto de todos os cristãos em uma cidade ou localidade. Por exemplo, como alguém poderia ser lançado fora do conjunto de todos os cristãos em uma localidade? Eles teriam que literalmente expulsá-lo da cidade ou localidade onde vivessem! Ou como poderia um incrédulo entrar no conjunto de todos os cristãos em uma cidade e ainda assim continuar incrédulo? Se ele entrasse na assembleia nesse sentido, ele teria de ser um crente. Ou, como poderíamos entender a injunção feita por Paulo às irmãs para que ficassem em silêncio? Teriam elas de ficar em silêncio em qualquer lugar em que estivessem na cidade? Ou como as instruções dadas pelo Senhor para resolver as disputas entre os santos poderiam ser resolvidas? Ele disse: “dizei-o à igreja” ou assembleia. A quem ou aonde eles iriam levar suas dificuldades? Seria quase impossível ir a todos os cristãos naquela cidade. Com certeza podemos deduzir destas poucas referências que existe uma falha na ideia que alguns têm do que seja a assembleia local.
Concluímos, portanto, que a assembleia local abrange todos os verdadeiros crentes em uma localidade, mas pode não envolver na prática todos os que estão naquela localidade. Se, por um lado, a maioria em uma determinada localidade não está congregada ao nome do Senhor, por outro, aqueles que estão neste terreno moral e se comportam na prática como a assembleia naquela cidade ou localidade, são reconhecidos por Deus como tal pela presença de Cristo em seu meio.
Alguém poderia indagar: E o que dizer da cidade ou localidade onde não existam cristãos congregados de forma bíblica sobre o terreno da assembleia, mas onde mesmo assim existam cristãos? Nesse caso, mesmo que existam cristãos reunindo em suas denominações naquela localidade, eles não estão congregados sobre o terreno da verdade da assembleia. Assim eles não têm uma posição administrativa reconhecida por Deus, conforme a que é mostrada em Mateus 18:18. Poderíamos dizer que os cristãos nessa localidade fazem parte do aspecto universal da assembleia, mas que não existe ali uma assembleia local que seja reconhecida por Deus.
William Kelly escreveu: “Onde existissem apenas três congregados sobre os princípios divinos [Isto é, sobre o terreno da igreja], aquilo seria, se posso dizer assim, igreja, quando não a igreja. Se existissem três mil santos genuínos congregados, mas não sobre os princípios divinos, eles não seriam a igreja” (W. Kelly, “Lectures on Matthew”, p. 327). J. N. Darby escreveu: “Fica claro que os cristãos de uma determinada localidade, quando estivessem congregados, eram verdadeiramente a assembleia naquela localidade; todavia aquela não era meramente a assembleia que reconhecia a Deus, mas a que era reconhecida por Ele, e a única que desfrutava dos privilégios que Ele poderia garantir a ela por ser a Sua assembleia” (J. N. Darby, “Collected Writings”, vol. 1, p. 260). Ele também escreveu: “A assembleia de Deus é identificada por possuir a verdade. Uma assembleia que não tenha a verdade como condição de sua existência não é a assembleia de Deus” (J. N. Darby, “Collected Writings”, vol. 3, p. 380). Ele também disse que as diferentes reuniões de cristãos são uma assembleia, mas não uma assembleia de Deus, reconhecida como tal por Ele próprio.
Talvez uma ilustração nos ajude a compreender isto. Quando o Senado dos Estados Unidos se reúne em Washington para aprovar alguma lei, não há a necessidade de que todos os 100 senadores estejam presentes para que aquela reunião seja chamada de Senado e tome decisões como tal. Desde que exista um quórum de senadores reunidos em Washington (algo em torno de 51%), aquilo é reconhecido como o Senado. Sua autoridade para decidir não depende de todos estarem presentes, mas de existirem senadores presentes reunidos como Senado, conforme determinam as leis do Congresso. Aqueles presentes no Senado reconhecem que os outros, que não estão presentes, são igualmente Senadores e a falta deles certamente será sentida por não estarem ali trazendo sua contribuição. Mesmo assim, tal ausência não invalidaria o fato de que a autoridade para agir como Senado foi delegada apenas aos que estivessem reunidos no Senado, contanto que exista um quórum.
É exatamente a mesma coisa com a assembleia local. Mesmo que existam muitos cristãos em uma localidade que não estejam congregados ao Nome do Senhor sobre o fundamento da verdade, isso não altera o fato de que aqueles que estão sobre esse terreno são moralmente a assembleia naquela localidade e são reconhecidos por Deus como tal. O quórum, por assim dizer, é o mínimo divino de dois ou três divinamente congregados (Mt 18:20).
Tendo deixado claro este ponto, nos apressamos em dizer que certamente está totalmente fora do caráter do cristianismo que aqueles que estejam verdadeiramente reunidos ao Nome do Senhor se denominem a si mesmos “a assembleia” em tal e tal lugar. Quão inadequado seria, em um dia de ruína, para aqueles assim congregados saírem por aí proclamando que eles são a assembleia em uma determinada cidade ou localidade, ainda que creiam estar moralmente nesse terreno. J. N. Darby escreveu: “Fica claro que se dois ou três estão reunidos, isso é uma assembleia, e se estiverem biblicamente reunidos, é uma assembleia de Deus; e se não, o que seria? Se for a única naquela localidade, então é a assembleia de Deus naquele lugar, ainda que eu tenha objeções em adotar este título na prática, pois a assembleia de Deus em qualquer localidade verdadeiramente abrange todos os santos naquele lugar. Existe um perigo real, para as almas que assumem tal título, perderem de vista a ruína e se considerarem como se fossem alguma coisa... Mas, se existir uma assim [em uma localidade], enquanto outra tiver sido estabelecida pela vontade do homem e independente da primeira, somente a primeira é, moralmente e aos olhos de Deus, a assembleia de Deus. A outra não, pois foi estabelecida em independência da unidade do corpo” (“Letters of J. N. Darby”, vol. 1, p. 424). J. N. Darby também escreveu: “Permita-me dizer que as assembleias dos assim chamados ‘Irmãos de Plymouth’, longe de se denominarem a si mesmas ‘a assembleia’ ou ‘a igreja de Deus’ em um determinado lugar, sempre se opuseram formalmente ao título... A pretensão de ser a igreja de Deus em um determinado lugar seria uma falsa pretensão” (J. N. Darby, “Collected Writings”, vol. 20, p. 296-297).
Todavia, há alguns que se opõem totalmente a isto, chamando tal posição de sectária. Eles insistem que a assembleia local são todos os cristãos em uma cidade — nem mais, nem menos. Nossa pergunta é: Por que esses querem colocar a definição da assembleia local da forma mais abstrata possível? Por que defendem tanto essa definição? Parece que o que está por detrás desse argumento é um esforço em manter a porta aberta para caminharem pelo caminho largo — para terem comunhão com todos os cristãos de sua comunidade. Temos observado que muitos que falam assim também buscam comunhão com aqueles das igrejas denominacionais em sua comunidade. Parece que se conseguirem negar a ideia de que Deus possui um centro de reunião na prática, isso lhes dará a liberdade que tanto almejam de frequentar diferentes lugares de comunhão. Parece que mantendo as coisas relacionadas à assembleia da forma mais abstrata possível facilita o atendimento a esse desejo.
Concluímos, portanto, que existem duas maneiras de se estar na igreja (assembleia). Estamos nela no sentido universal, por termos sido salvos pela fé na obra consumada de Cristo na cruz e por sermos habitados pelo Espírito Santo. Em segundo lugar, podemos estar nela no sentido local, por sermos parte de sua expressão local e por participarmos de suas reuniões para adoração, ministério e comunhão. Se, por um lado, todos os cristãos estão na igreja em seu sentido universal, nem todos podem estar nela na prática, em seu sentido local.