Será que não posso cair da graça e perecer no final? Não é "perigosa" a doutrina que ensina outra coisa?

Perecer? Um verdadeiro crente perecer? Que a Pessoa mais capacitada responda a essa importante pergunta. Ele diz, "Jamais!" "E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer; e ninguém as arrebatará da minha mão" (Jo 10.28). O objetivo de Deus ao dar seu Filho para ser levantado, não era "para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna"? (Jo 3.16).

Se o Grande e Bom Pastor empenhou sua santa palavra que ovelha alguma de seu rebanho jamais perecerá os incrédulos é que não são das ovelhas dele, veja João10.26), por que não honrar a sua santa palavra e consolar sua alma perturbada com essa segurança? Dizemos mais ainda: afirmar outra coisa seria manchar a fidelidade dEle! Vamos explicar, pois muitos podem ter passado isto por alto. Eles cantam com a maior sinceridade essa linha do hino, "Tenho um depósito a guardar," e desconsideram inteiramente o fato de que existe um outro lado a observar; a saber, que o Senhor Jesus Cristo, em dedicação amorosa à vontade do Pai, tem um "depósito a guardar", precioso e solene. Não foi Ele que disse: "E a vontade do Pai que me enviou é esta: que nenhum de todos aqueles que me deu se perca"? (Jo 6.39).

Como falar então sobre a possibilidade de um dos "seus" se perder, sem sugerir ao mesmo tempo a possibilidade de Cristo ser infiel à perfeita execução da vontade do Pai? Pensamentos tão desonrosos em relação a Cristo jamais deveriam ter lugar no coração daqueles que conhecem e amam o Senhor bendito, o "Santo" e "Verdadeiro". Impossível. Ouçam as palavras dele ao Pai: "Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se cumprisse" (Jo 17.12).

E de novo: "Dos que me deste nenhum deles perdi" (Jo 18.9). Absolutamente não. O grande Autor da nossa salvação está "trazendo muitos filhos à glória", nada menos que isso é o propósito do Pai para eles, e quando eles o cercarem ali. Ele irá, sem exceção, dizer: "Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu" (Hb 2.13). Nenhum deles, nem mesmo o mais fraco estará faltando, e Ele terá toda a glória por tê-los levado até lá.

Mas, as Escrituras não dizem que poderemos decair da graça? Sim, da graça como um princípio de bênção em contraste com a lei. O apóstolo escreve aos Gálatas: "Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei: da graça tendes caído" (Gl 5.4).

Graça significa favor sem merecimento, a graça de Deus representa favor ilimitado por parte dEle, sem qualquer traço de mérito do nosso lado. Talvez não exista nada na palavra de Deus, de que Ele se mostrasse mais zeloso do que a transgressão da sua graça, abandoná-la, inutilizar suas esplêndidas características introduzindo alguma razão meritória em nós pela qual Ele devesse abençoar-nos.

Vejamos o caso de Geazi, nos dias de Eliseu. Quanta graça representou a ida do comandante-em-chefe do exército do poderoso inimigo de Israel, apresentando-se ao profeta israelita para ser curado e purificado e, quando foi humilhado em seu orgulho, curvar-se à forma escolhida por Deus para abençoá-lo e receber aquilo que tanto buscara. Como essa graça redobra de valor ao considerarmos que justamente o elo entre o homem e a bênção, foi aquela pequena escrava hebreia que servia em sua casa. Israel fora roubada de uma de suas filhas, isso era evidente, todavia a própria testemunha do mal sofrido tornou-se o vínculo com o bem necessário.

Aconteceu porém mais que isso. O profeta do Deus de Israel não quis receber qualquer pagamento por essa bênção, nem em moedas nem roupas. O que todos os bens do leproso, seja em dinheiro ou glória, não poderiam ter comprado em outra parte, ele iria receber de graça na terra de Israel. Que "graça sobre graça" isso representou! E verdade, pensou Elias (o profeta da graça de Deus), este Naamã voltará à Síria e dirá, "TUDO RECEBI SEM PAGAR NADA! e justamente da nação que ajudei a oprimir e saquear! Tudo o que levei como um meio de obter a bênção foi desnecessário. Minha carta de recomendação do rei de nada valeu. Meus dez talentos de prata, minhas 6.000 peças de ouro, minhas dez mudas de vestidos, tiveram de ser trazidos de volta. De fato, a única coisa que tive de deixar foi a minha lepra; tendo esta ficado nas profundezas do rio Jordão.Tudo de graça. Que maravilha!"

Veja porém agora o que se seguiu. Infeliz Geazi! Ele conseguiu estragar tudo isso. Com um golpe rude ele rouba este doce fruto da graça celestial de toda a sua beleza. Uma única sentença mesquinha e egoísta bastou. "Dá-lhes, pois, um talento de prata e duas mudas de vestido." Ele dá uma idéia falsa de seu senhor; mutila o testemunho da graça; e Deus mostra seu desgosto infligindo um dos castigos mais severos incluídos nos registros, quase comparável à morte. "A lepra de Naamã se pegará a ti e à tua semente para sempre" (2 Rs. 5.27).

No Novo Testamento, os Gálatas foram repreendidos com mais severidade do que talvez qualquer dos santos dignos da censura a quem foram dirigidas cartas. Eles haviam começado com a graça e estavam voltando ao mérito. "Sois vós tão insensatos?" escreve o apóstolo, "que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?" (Gl 3.3). É necessário que seja sempre pela graça. Não se pode misturar "lei' com "graça"'. O Sinai jamais se tornará um subúrbio da Jerusalém lá do alto. "De modo algum o filho da escrava herdará com o filho da livre." (Gl 4.30).

Não se pode começar apoiado nos méritos de outro e terminar firmando-se nos próprios méritos. Não se pode obter a bênção pela graça e retê-la pelo mérito. Vejamos um exemplo simples: Um rico mercador decide levar para a sua casa um menino pobre que vivia na rua. Ele o veste segundo sua nova posição e faz o possível para torná-lo feliz e à vontade em seu novo ambiente, tendo êxito nisso.

Certo dia o rico mercador ficou espantado ao encontrar o menino no porão, sem paletó e de avental, ocupado em engraxar sapatos!

O que você está fazendo aqui, filho?

Alguém me disse, senhor, que se eu apreciasse devidamente minha nova posição deveria começar a fazer alguma coisa a fim de mantê-la, e se falhasse iria ser posto para fora um dia, tornando-me novamente um garoto de rua. Eu não queria que isso acontecesse, pensei que seria melhor então fazer alguma coisa para que me conservasse em sua casa.

O garoto caíra da graça, no que respeita à ilustração. A graça o colocara como filho, sem um único direito ou mérito, na sala de visitas, e ele agora descera ao porão e tomara o lugar do servo a fim de reter suas bênçãos valiosas.

Era justamente isso que os Gálatas estavam fazendo. A graça os chamara às bênçãos mais elevadas, dando-lhes o lugar de "filhos", com a alegria proporcionada pelo "Espírito de seu Filho'" enviado aos seus corações, e com esta também a posição de herdeiros. Em lugar de se apegarem à liberdade concedida através de Cristo, eles estavam no entanto buscando a perfeição na carne, sendo "justificados pela lei" (veja Gálatas 3.3; 5.1-4).

Três motivos podem ser atribuídos à realização de boas obras.

O primeiro é a fim de obter a bênção.

segundo, é retê-la depois de recebida.

terceiro (e este é o motivo do evangelho) é servir, com gratidão cheia de amor, Àquele que morreu para assegurar a bênção para mim, e que vive para guardar-me para a bênção.

escritor deste livro notou uma inscrição surpreendente gravada no final de uma fileira de bonitos chalés em Leicester-shire. Ela dizia:

PARA OS PARENTES POBRES DE THOMAS C__________

O BOM COMPORTAMENTO APENAS DÁ DIREITO À

POSSE.

DEPOIS DE ESTAR DE POSSE, O MAU COMPORTAMENTO PODE PROVOCAR

REMOÇÃO INSTANTÂNEA

Este é um exemplo dos dois primeiros motivos citados acima e um deles ou ambos são encontrados aos milhares hoje em dia.

Mas, qual o motivo em tal serviço? E o "EU". Se estou trabalhando para obter a salvação, para quem trabalho? Para mim mesmo.

Se estiver trabalhando para mantê-la quando a tiver recebido, para quem estou trabalhando? Para mim mesmo, para garantir-me, com toda certeza.

Que tipo de serviço devo eu então prestar? "E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Co 5.15). Qual o motivo para este tipo de serviço? E o amor, como o versículo precedente mostra; "Porque o amor de Cristo nos constrange"(v. 14).

Um dos marinheiros da rainha da Inglaterra foi certa vez inquirido sobre a razão de usar um cordão branco no pescoço. Ele imediatamente enfiou a mão no peito e puxou um canivete que se achava preso no cordão. Este cordão disse ele, é chamado de colhedor. A seguir, estendendo o braço, ele disse: "Veja, o cordão é suficientemente comprido para o canivete ser usado por nós com o braço estendido. Os marinheiros dizem às vezes que uma de nossas mãos serve à rainha e a outra a nós mesmos. Com uma delas, temos de agarrar-nos ao cabo do navio nos dias de tempestade, a fim de salvar a nossa vida, enquanto com a outra servimos nossa soberana.

Isso pode ser muito adequado no serviço da rainha, mas não se aplica ao trabalho de nosso Mestre. Todavia, quantos milhares de cristãos confessos fazem isso! Ou seja, eles estão se apegando à salvação com uma das mãos e, por assim dizer servindo o Senhor com a outra; Poderiam, no entanto, perguntar: "Como fazer então? Não é certo apegar-se, manter-se firme?"Claro que sim. Mas apegar-se a quê e por quê? Agarrar-nos a fim e não nos perdermos? Não. Mas "tendo recebido um reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente com reverência e piedade" (Hb 12.28.) Esteja certo disto, nenhum serviço é aceitável quando não é produzido por um sentimento de gratidão pela graça em que estamos firmados. No momento em que o "eu" se torna o meu motivo, tudo se torna inútil. Não preciso agarrar-me à salvação com uma das mãos e servir a Ele com a outra. Devo, porém, gozar a verdade abençoada que Ele me segura com ambas as mãos e me ama de todo o coração, a fim de que eu possa ficar livre para servi-lo com as duas mãos e de todo o coração. Essa não é também uma doutrina perigosa, como supõem aqueles que não conhecem o constrangimento do amor.

Pergunte a um pai a quem preferiria entregar o cuidado de seu filho pequeno durante um mês de ausência: à mãe ou a uma babá, e ele vai responder que essa pergunta não precisa de resposta.

Por que? A mãe não tem medo de ser mandada embora em vista do relacionamento existente, ela é sua esposa; ele não teme pelo bem-estar do filho porque ela é a mãe. A empregada pode temer tal coisa, mas a mãe serve instintivamente, e com a ternura e paciência incansáveis de seu amor materno. Isto faz toda a diferença. É pena que alguém queira reduzir o serviço cristão aos limites e servidão de um simples empregado!

Você irá entristecer o coração do Senhor e roubar a si mesmo de um dos maiores privilégios de sua peregrinação nesta terra se fizer isso. Perderá a felicidade de servi-lo mediante a gratidão de um coração tocado pelo discernimento da graça preciosa que recebeu dEle.