Penso que sou pecador demais para ser salvo, perverso demais para merecer o favor de Deus, não tendo mérito algum para ter qualquer relacionamento com Ele.

Ouça bem! Talvez existam milhares no inferno que se julgam bons demais para se "perderem", até que provaram a amarga realidade dessa palavra terrível, além do ocaso de seu dia da graça. Mas é certo que entre as incontáveis miríades dos remidos na glória, não se pode encontrar um que diga, "Estou aqui gozando o céu porque na terra fui suficientemente bom para ser salvo". O apóstolo Pedro lá se encontra, mas ele se declara um homem "pecador", indigno de estar na presença do Mestre.

Paulo confessou ser "o principal dos pecadores" e assim todos os outros. "Pela graça" e só por ela, cada um deles foi salvo.

O fato é que o pensamento de merecer a salvação é tão natural ao coração humano quanto as ervas daninhas ao seu jardim; e Satanás sabe muito bem como tirar proveito disto, ocultando de seus olhos o caráter amoroso da "multiforme graça de Deus", através da qual ele recebe a salvação. Satanás odeia a história da graça de Deus, pois ela não pode ser contada sem registrar a glória redentora de Cristo. É a "graça" que reina através da justiça — uma justiça declarada na cruz, onde o castigo devido ao pecado recaiu sobre o Substituto voluntário. Só por causa desse sangue precioso derramado é que o perdão livre e imerecido poderia ser pregado aos pecadores culpados.

O mérito é então todo dEle, e a culpa nossa. Nós, suficientemente perversos para merecer o juízo: e Ele, bom o bastante para vir e livrar-nos da morte, suficientemente bondoso para beber a taça do juízo por nós. Ele bebeu-a até o fim e disse, "Está consumado". Deus só tem dois métodos para tratar com os homens culpados. Ele lhes dará (com base em seus próprios méritos) tudo o que merecem, até a última gota; ou, achegando-se a Cristo como culpados e perdidos, Ele lhes dará, completamente, aquilo que Cristo merece. Felizes, portanto, os que podem cantar:

Sou salvo por seu mérito, não há outro mais fiel, Nem mesmo onde a glória habita, na terra de Emanuel".

Se o leitor tivesse apenas um vislumbre do que é a graça, ele jamais falaria de ser perverso demais para receber a salvação.

Suponhamos que alguém tivesse de colocar sobre a sua porta estas palavras (vamos chamar essa porta de No. 2):

CAFÉ DA MANHÃ NESTA CASA.

BILHETES ENTREGUES NA PORTA AO LADO (No. 1) SÓ PARA NEGROS. NINGUÉM PODE ENTRAR DEPOIS DAS NOVE HORAS.

Qual o negro, velho ou jovem, escravo ou livre, que seria tão tolo a ponto de ficar tremendo do lado de fora daquela porta até passar do horário de entrar, com medo de ser "negro demais" para conseguir um bilhete grátis para o café da manhã? Nada disso, quanto mais negra a pele, tanto mais inegável seu direito à entrada.

Suponhamos, entretanto, que um certo negro, tendo-se recusado a pedir o bilhete na porta No. 1, vá até a porta No. 2 e peça o café sem ele. Deveria surpreender-se ao descobrir que ela não se abre? De que valeria se argumentasse: "Vocês acabaram de receber um homem menos negro do que eu" "Tem razão", seria a resposta, "mas não foi por causa da cor preta, ou branca, que foi admitido."

A cor de sua pele deu-lhe a melhor recomendação possível para a entrega do bilhete, se fosse mais branco seu direito a ser chamado de negro poderia ter sido posto em dúvida, mas é o bilhete que lhe confere o direito ao café, e foi isto que você recusou. Vá-se embora."

Existem igualmente muitos que parecem pensar que o fato de sermos todos pecadores e por ouvirem que Deus vai levar alguns destes ao céu, com certeza julgam que só irão os melhores dentre eles; essas pessoas raciocinam então, se fulano e fulano chegarem lá, eu certamente terei uma boa possibilidade de ser admitido.

Grave porém isto, caro leitor, o fato de ser pecador não lhe dá direito à glória, mesmo que pudesse afirmar ser o melhor dentre a raça arruinada de Adão. O fato de ser pecador lhe confere a melhor recomendação possível para o Salvador, mas é este Salvador que lhe dá o direito à glória.

"Este recebe pecadores" (Lc 15.2) é a inscrição colocada sobre a porta do Salvador e nenhum deles será perverso demais. Leia de novo, "Ninguém vem ao Pai, senão por mim". "O que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora" (Jo 14.6, 6.37). Outra vez, "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu os aliviarei" (Mt 11.28). "Se. Alguém entrar por mim, salvar-se-á" (Jo 10.9).

"Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra" (Is 45.22).

"Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo" (Rm 10.13).

Tome cuidado, portanto, para não ignorar, como o negro a porta No. 1 e supor que pode, através daquilo que é, reclamar a bênção necessária Na No. 2. Só seremos salvos em vista daquilo que Cristo é e da Sua obra a nosso favor. Mesmo que você tivesse feito tantos Atos meritórios quantos grãos de areia existem nas praias do oceano e seus pecados fossem tão poucos e tão raros como os poderosos submarinos que singram através dos mares, ou tão ocultos quanto os torpedos mortais que se escondem em seu leito, sem Cristo você não teria direito algum, exceto ao lago de fogo. Um só pecado seria a sua ruína, uma palavra impensada, uma idéia maldosa, um único ato de obstinação bastaria. Ele fecharia as portas do céu para você com tanta força quanto o primeiro ato de desobediência de Adão bastou para expulsá-lo do paraíso.

Não perca tempo precioso "tentando melhorar" antes de achegar-se a Cristo. O próprio fato de necessitar de reforma prova que o seu passado não foi bom e se você pensa em basear-se em seu próprio mérito, lembre-se de que "DEUS PEDE CONTA DO QUE PASSOU" (Ecl 3.15).

Dizer que é "perverso demais" é diminuir a glória da graça toda abundante de Deus, limitar o poder de purificação total do sangue de Jesus. O mar sustenta com a mesma facilidade o navio de cinco mil toneladas e a pena macia de uma gaivota. Desde que Ele busca os nossos corações e desde que aqueles a quem muito é perdoado muito amam, tenha a certeza de que Ele está tão disposto a acolher os mais perversos quanto é capaz de salvar os maiores pecadores.

Há alguns anos o autor visitou um próspero homem de negócios a fim de ver sua filha que estava morrendo. Ela estava doente sem esperança e sabia disso. A pobre mãe tentara por todos os meios aliviar o medo da filha, dizendo-lhe não haver uma verdadeira causa de alarme quanto ao futuro; que embora tivesse passado o verão anterior na terra em meio a toda a alegria da "temporada londrina", continuara no entanto uma "moça de mente pura" em meio de tudo.

Depois de considerável relutância por parte dos pais, o autor teve finalmente permissão para subir ao quarto da doente.

A enfermeira foi dispensada pelo pai afetuoso e o visitante ajoelhou-se aos pés do leito e clamou do fundo de sua alma para que a moça agonizante fosse abençoada. Depois de levantar-se, ele leu alguns versos de Romanos 5, demorando-se um pouco no v.8, "Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores".

Neste ponto aquela infeliz criatura exclamou, "Ah! o senhor não sabe o que fui, ou não estaria falando comigo sobre o amor de Deus. Não pode haver misericórdia para mim!"

O autor replicou a isto, "Srta. ..............., acredito que se visse a si mesma através dos olhos de Deus, se julgaria dez mil vezes pior do que se acha agora. Mas cometeu um grande erro hoje, a meu ver".

O pai idoso levantou os olhos inquiridores, através das lágrimas, como se dissesse: "Qual o erro cometido?"

"Olhe", continuou o autor, "não viajei tanto para perguntar se você acha que possui mérito suficiente para que Deus tenha confiança na sua pessoa, mas para trazer-lhe as novas benditas de que Deus acha seu Filho suficientemente digno para que você confie nEle. A sua bênção para a eternidade depende disto."

No momento seguinte a fisionomia dela mudou, como se um raio de luz celestial acabasse de entrar.

Não pode também haver dúvida de que isso aconteceu; pois o pai dela escreveu pouco depois para falar da bênção de sua filha, dizendo que ela em breve estaria onde nuvem alguma surgiria para escurecer o seu céu, ou para ocultar por um momento sequer de seus olhos o Seu Senhor.

O Senhor também envia raios de glória da sua graça para entrarem no seu coração, caro leitor, e fazer com que veja que Deus não está procurando mérito em sua pessoa quanto ao passado, nem qualquer decisão de que será digno no futuro; mas Ele tem muito a dizer-lhe sobre o mérito de Jesus, seu Filho amado.

Ele é o "prego" colocado em "um lugar seguro" e sobre Ele você pode apoiar-se com toda tranqüilidade e confiança. Se o "prego" cair, tudo que estava pendurado nele cairá, sejam utensílios de ouro polido ou o barro mais grosseiro. A segurança não depende da qualidade dos utensílios, mas da estabilidade do "prego". (Veja Isaías 22:23, 24.) Creia nEle, então, porque é digno, aceitando a promessa de sua própria palavra, de que a bênção é sua. "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16).

Tentei reconciliar-me com Deus, mas jamais me senti tranquilo nesse sentido. Penso que não tentei da maneira certa.

"Tentar da maneira certa" é coisa que não existe. Em primeiro lugar não há necessidade, mesmo que pudesse. Em segundo, você não poderia mesmo que quisesse. Reconciliar-se com Deus em relação a seus pecados, seria satisfazer as reivindicações justas dEle quanto aos mesmos, suportar seu justo juízo por causa deles. Quem teria coragem de fazer tal transação? Claro que ninguém. Graças a Deus, não foi pedido a ninguém que o fizesse. Essa obra pertence a Outro. Cristo "havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz" e, pelo Espírito Santo, enviado pelo grande Pacificador, o Deus da paz, está agora "pregando a paz por Jesus Cristo". É crendo no que Ele fez que a paz com Deus se estabelece.

"Justificados, pois, mediante a fé, tenhamos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.1).

O que a maioria das pessoas indica com a frase "fazer as pazes com Deus" é a idéia de apazigüá-lo fazendo algo que as recomende junto a Ele, como Jacó tentou abrandar a ira esperada de Esaú, o irmão roubado e frustrado. "Eu o aplacarei com o presente que me antecede, depois o verei; porventura me aceitará a presença" (Gn 32.20). Eles esperam, mas não passa de um "porventura" afinal de contas, que em consideração aos erros corrigidos, Ele esquecerá os pecados da vida que passou e os leve para o céu. Mas, será que o pecado e a expiação são coisas assim tão superficiais? Estão certos em considerá-los leves, como disse alguém: "se da mesma forma que meu sopro apaga a vela ou uma gota d'água a extingue, uma oração, um suspiro penitente, ou algumas lágrimas derramadas, puderem extinguir a ira de Deus". Tais pessoas devem saber muito bem que uma simples expressão de tristeza, um pequeno arrependimento, jamais seriam aceitos como pagamento de uma dívida entre homem e homem; no entanto, são suficientemente cegos para pensar que isso poderia satisfazer as exigências de um Deus santo em relação a uma vida inteira de pecado!

Não se trata também apenas de considerar levianamente o pecado, mas de desprezar o que Deus é, tanto como "luz" ou como "amor". Se o pecado tiver de ser castigado, nem todas as lágrimas de todos os arrependidos que este pobre mundo jamais conheceu poderiam servir para isso. É necessário que sangue seja derramado e não lágrimas. Pois "sem derramamento de sangue não há remissão". Mas, quais são então as boas novas do evangelho? São estas: "Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus" (1 Pe 3.18). Tome nota, Ele "morreu", pois o sofrimento (a morte) era a penalidade devida pelos nossos pecados.

Em lugar de nossas obras nos recomendarem ao amor de Deus, "Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rm 5.8). Quando uma dívida tem de ser paga, um mar de lágrimas não irá cancelá-la. Nem os remorsos por Atos passados, embora sinceros, nem promessas para o futuro, por mais autênticas que sejam, acertariam esta conta. Mas se o devedor soubesse que um amigo tinha interferido e pago o débito inteiro, toda idéia de "tentar um acordo" como credor seria afastada.

Toda alma ansiosa sem dúvida começa com o pensamento certo quando diz a si mesma: "Com todos os meus pecados diante de mim, se quiser colocar-me algum dia na posição reta à frente de um Deus santo, alguma coisa precisa ser feita."

Nesse ponto é que Satanás encontra justamente uma brecha para murmurar: "É verdade, você vai descobrir que Deus é duro e exigente. O melhor é começar logo", embora ninguém saiba melhor que Satanás que isso não está contido no evangelho. Não se trata de alguma coisa ter que ser feita e portanto eu devo fazê-la, mas sim: O que precisa ser feito já foi feito. CRISTO O FEZ: por isso Deus o exaltou tanto. O apóstolo, mediante o Espírito de Deus, chama a atenção do crente para Ele como Salvador entronizado e diz, "Ele é a nossa paz". (Ef 2.14)

"E seus ferimentos no céu declaram que a obra de expiação está feita."

Alguém contou esta história: Do mesmo modo que os soldados de um exército vitorioso exibem sua bandeira manchada de sangue e perfurada por balas, assim como seus vários troféus e despojos de guerra, confirmando o preço pago pela derrota do inimigo e para garantir a paz em seu país, Jesus também, triunfante e ressurreto, voltando do lugar de conflito e morte, anuncia a paz que Ele assegurou para os que lhe pertencem (Jo 20. 19, 20); ao mesmo tempo, Ele exibe suas mãos e lado feridos para lembrá-los do alto preço pago pela sua paz, silenciando Satanás para sempre.

Será possível então, contemplar esse Vencedor coroado de glória sobre " o trono da Majestade nos céus" e ainda falar de fazer paz com Deus? Não devemos em vez disso cantar, "O Senhor triunfou gloriosamente" e "nos deu a vitória"?

"Dele seja a vitória; Pois veio só Ele Reinar.

Aos santos triunfantes resta a glória Da conquista com Cristo gozar"