CAPÍTULO 1 - UM EVANGELHO DE PODER PARA O HOMEM MORIBUNDO

(Romanos 1)

"PAULO, servo de Jesus Cristo." (Rm 1:1) Ele não era um servo ligado a qualquer sociedade ou partido, mas um servo de Jesus Cristo. Quão poucos podem repetir, juntamente com Paulo, estas simples palavras! E quão importante é que possam fazê-lo, isto se a intenção for de servir de um modo que agrade a Cristo. Será que você já analisou este aspecto em relação a toda a sua vida e ao seu serviço para Deus? É isto o que fará diferença no dia da recompensa. "Chamado para apóstolo" seria melhor traduzido como "apóstolo por chamado". Quando o Senhor Jesus chamou a Paulo, não foi para que ele fosse aos outros apóstolos para ser ensinado ou preparado por eles, ou ainda ordenado para ser um apóstolo; não, ele foi constituído apóstolo imediatamente, e sem que se fizesse uso de qualquer autoridade humana; ele foi chamado a atuar e pregar como um apóstolo por ser um apóstolo, e não para se tornar um. (Veja também Atos 26:15-19; Gálatas 1:10-16.) Foi assim que Paulo foi "separado para o evangelho de Deus". (Rm 1:1) Bem sabia o Espírito que na própria Roma tudo isso seria invertido. Sim, este primeiro versículo é de grande significado para nós, se quisermos fazer a vontade de Deus. Lembre-se: Paulo já era apóstolo há algum tempo quando, em Atos 13.1-4, o Espírito o separou e o enviou, com a aprovação dos anciãos, em uma viagem especial de serviço.

Vemos aqui, então, Paulo como servo de Jesus Cristo, um apóstolo por chamado ou vocação, separado para o evangelho de Deus. Esta palavra, "separado", é bastante abrangente. Separado do mundo, do judaísmo e da lei, para as gloriosas boas novas de Deus. Não é a igreja o assunto desta epístola, mas o evangelho de Deus. A igreja não era o assunto da promessa, mas o evangelho sim: "O qual antes havia prometido pelos Seus profetas nas Santas Escrituras". (Rm 1:2) Sim, as Escrituras, desde Gênesis 3, contém abundantes promessas do evangelho de Deus, "acerca de Seu Filho", Jesus Cristo, nosso Senhor. (Rm 1:3) Cada promessa tinha em vista a descendência, que é Cristo. É bom que guardemos isto: O evangelho não é algo acerca de nossos feitos ou sentimentos, mas "acerca de Seu Filho", Jesus Cristo, nosso Senhor. Que esta bendita Pessoa seja sempre o princípio e o fim do evangelho de Deus que pregamos!

Há, então, só duas partes no verdadeiro evangelho: a obra consumada por Jesus na carne; e Sua ressurreição de entre os mortos. "Que nasceu da descendência de Davi segundo a carne." (Rm 1:3) Nele, como Filho de Davi, foi cumprida toda a promessa. Que manifestação do amor de Deus -- o Santo de Deus ter sido feito carne; tornando-se verdadeiramente Homem e descendo de Sua eterna glória para o meio de uma raça caída, culpada, sob pecado e juízo, e, naquela condição de humanidade sem pecado, ter ido até a cruz! Ele próprio, tão puro e, no entanto, ser feito pecado, para ir até a morte carregando o juízo extremo que o pecado merecia. Sim, ir até a morte, livrando-nos do direito e poder que ela tinha sobre nós -- ser entregue por causa de nossas iniquidades.

Devemos encontrar nisto o grande tema de nossa epístola -- a morte expiatória de Jesus em seu duplo aspecto, de propiciação e substituição. Mas, apesar de haver Se tornado homem em aparência de carne pecaminosa -- mas sem possuir uma humanidade caída ou pecaminosa -- Ele não Se corrompeu. Ele sempre foi o Santo de Deus, e foi deste modo, determinado, ou "declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de santificação, pela ressurreição dos (ou "dentre os") mortos". (Rm 1:4) Contemplemos, então, o Filho de Deus, puro e imaculado, em toda a extensão de Seu andar aqui; Santo não apenas em Seus benditos atos, mas em Sua natureza, segundo o Espírito de Santidade. Assim, embora cercado pelo mal, Ele andou em amor, compartilhando conosco de toda a tristeza decorrente do pecado; sendo tentado de fora para dentro em todos os aspectos que também o somos, muito embora, em Si mesmo, a Sua santa natureza fosse inteiramente separada do pecado. Isso tudo ficou expresso pelo fato de que, após completar nossa redenção, Ele foi, por Deus, ressuscitado de entre os mortos. A própria morte não tinha nenhum direito sobre Ele -- Ele não podia ser retido por ela.

Uma vez que Ele era Santo segundo o Espírito de Santidade, era mister que Deus, em justiça, O ressuscitasse de entre os mortos e O recebesse em glória. Ele glorificou a Deus na natureza humana e agora, como Homem, está ressuscitado de entre os mortos segundo o Espírito de santidade; está agora no céu como o Homem que glorificou a Deus. É bom que se entenda claramente o que Ele é em Si mesmo, para que então se possa compreender melhor o que Ele fez por nós e o que Ele é para nós agora, ressuscitado de entre os mortos. Esperamos poder apresentar estas verdades de forma detalhada mais adiante. Foi deste Santo ressuscitado de entre os mortos que Paulo veio a receber "graça e o apostolado, para a obediência da fé entre todas as gentes pelo Seu nome". (Rm 1:5) Isto é algo importante de se ressaltar: por mais que Paulo fosse um apóstolo, tudo era por graça recebida. Porventura não tinha sido o Senhor Quem brilhara no caminho de Paulo, em puro e livre favor, justamente quando este se encontrava furioso -- sim, excedendo-se em fúria -- contra Cristo? Acaso não havia sido Ele Quem, em um gratuito e imerecido favor, chamara a Paulo, fazendo dele Seu apóstolo escolhido para ir aos gentios? E não é este o mesmo princípio que vale para todos os casos? Não importa qual seja o serviço que possamos estar fazendo para Cristo -- acaso não se trata da mesma graça, do mesmo livre favor?

Era assim que o apóstolo via os santos em Roma; a mesma graça havia sido demonstrada a eles. "Entre as quais sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo." (Rm 1:6) Assim brilha a graça em todo o seu esplendor. Aquele que encontrou Saulo em seu caminho para Damasco, o próprio Jesus Cristo, como Senhor, havia chamado a cada crente em Roma. "A todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados santos: Graça e paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo." (Rm 1:7)

A simples introdução, pelos tradutores, de duas palavras em algumas versões, "chamados para serdes santos", muda completamente o significado desta importante passagem, e tem sido a causa de sérios enganos no que se refere à santidade. O significado aqui é o mesmo da palavra que é usada no primeiro versículo: "chamado (para ser) apóstolo"; ou, "um apóstolo por chamado". Assim como a palavra "santo" significa "santificado", também a expressão significa "santificado por chamado". Não "chamados" para procurar alcançar santidade -- o que é um engano comum -- mas, da mesma forma como Paulo foi constituído um apóstolo pelo Senhor que o chamou, assim também todos os crentes em Roma foram feitos santos por chamado. Foi essa a base sobre a qual eles foram exortados a caminhar: em conformidade com aquilo que já eram. Todo crente é santo por chamado, santificado por chamado. É nascido de Deus, participante da natureza divina, a qual é santa. O cristão é santo pelo novo nascimento. Ele está morto com Cristo, ressuscitado em Cristo -- sim, Cristo, que passou através da morte, e que é a ressurreição e a vida, é a vida do cristão. "Quem tem o Filho tem a vida." (1 João 5:12) E se tem a vida do Santo de Deus, esta vida, da qual o crente é agora participante, é uma vida tão santa quanto eterna. Todos os crentes têm a vida eterna e, por conseguinte, todos têm uma vida santa. Tentar alcançar, por quaisquer meios, uma ou outra coisa por merecimento é não compreender em sua totalidade a nossa vocação e nossos elevados privilégios.

Toda a Escritura proclama esta verdade. A exortação quanto a ser santo está baseada neste princípio: "Como filhos obedientes... como é Santo Aquele que Vos chamou sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver, porquanto escrito está: Sede santos, porque Eu sou Santo". (1 Pd 1:14-16). Sim, é por terem sido introduzidos em uma viva esperança -- mantidos pelo poder de Deus por serem nascidos de Deus -- que os crentes, como filhos, têm purificado suas almas em obediência à verdade. Em suma, já que eles eram santos por chamado e por natureza, e possuíam o Espírito Santo, deviam procurar ser santos em suas vidas e em seu proceder.

João revela a santidade da nova natureza como nascida de Deus. "Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado." (1 João 3:9) Em cada epístola será encontrado, em primeiro lugar, a vocação santa, vindo depois o andar santo como resultado (compare 1 Tessalonicenses 1:1 com 5:23). É importante notar o lugar que a palavra ocupa, aplicada pelo Espírito Santo, tanto no novo nascimento como na santidade prática. "Segundo a Sua vontade, Ele nos gerou pela palavra da verdade." (Tg 1:18) "Santifica-os na verdade: a Tua palavra é a verdade." (Jo 17:17) Quão triste é vermos tudo isso colocado de lado em nossos dias, e os homens, aos milhares, tentando se tornar santos por meio de sacramentos e cerimônias. E não somente eles, mas muitos dos que escrevem e ensinam sobre santidade ignoram totalmente aquilo que todo cristão é feito por vocação e novo nascimento, e por ser feito habitação do Espírito Santo. Não há dúvida de que seja isso a causa de grande fraqueza, engano e de um andar que deixa muito a desejar. Não nos deixemos vagar indiferentes também por cima destas preciosas palavras: "Graça e paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo". (Rm 1:7) Que mudança do judaísmo! -- o livre favor de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, e paz a todos os amados de Deus em Roma. Será que nossas almas penetram nisto? Ao invés da lei exigindo, com justiça, a perfeita obediência da parte do homem, temos agora perfeita paz com Deus, fundamentada no princípio do livre e imerecido favor. Israel, se tivesse sido fiel, tão somente teria conhecido a Deus como Jeová; nós O conhecemos como Pai. Veremos, nesta epístola, como Sua graça e paz podem fluir livremente para nós em perfeita justiça.

Como esta epístola revela o terreno onde o pecador encontra-se diante de Deus, podemos notar que a primeira coisa pela qual o apóstolo dá graças a Deus, por intermédio de Jesus Cristo, por eles todos, é esta: "Por todo o mundo é anunciada a vossa fé". (Rm 1:8) A fé tem, assim, o primeiro lugar. Amado leitor: será que a sua fé é bem evidente, ou será que ainda não ficou bem claro se você realmente crê em Deus? Este é o primeiro ponto que deve ficar claro; tudo o mais será uma consequência disto. Vemos que, se você crê em Deus, então é capaz de dizer: "Sendo, pois justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo". (Rm 5:1) Pode você dizer isto com inteira confiança? Se assim for, então beba daquele manancial de graça e paz que flui perene de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.

Que exercício de coração era aquele para Paulo! Ele diz: "Porque Deus, a Quem sirvo em meu espírito, no evangelho de Seu Filho, me é testemunha de como incessantemente faço menção de vós, pedindo sempre em minhas orações". (Rm 1:9,10) Que profundo amor para com aqueles que ele nunca havia visto! Não se tratava de um mero serviço exterior, mas "em meu espírito". Tudo feito para Deus no evangelho de Seu Filho. Será que é assim também conosco, ou, em nosso caso, tudo não passa de mera e fria imitação? Porventura não era esse o segredo do sucesso de Paulo? E se faltar isso em nós, não é certo que fracassaremos?

Paulo desejava muito ver os santos em Roma, mas até então tinha sido impedido. Vemos aqui uma prova da sabedoria e antecipação de Deus. Se Paulo ou Pedro tivessem fundado a assembléia em Roma, que desculpa não teria sido isto para a, assim chamada, sucessão apostólica! Não há evidência quanto a quem o Espírito Santo possa ter usado na formação daquela importante assembléia. Não há evidência de que qualquer apóstolo tenha estado ali naquela ocasião, muito embora a fé daquela assembléia, ou melhor, de todos os chamados santos, era anunciada e bem conhecida de todos. É também notável que não sejam chamados de igreja em Roma, como acontece nas outras epístolas.

Paulo desejava ter mútua comunhão com eles, e colher algum fruto entre eles, fosse pela conversão de almas ou pela comunicação de algum bem espiritual àqueles que já tivessem sido levados a Cristo. Com tamanho tesouro, como é o evangelho, colocado em suas mãos, ele se sentia devedor em compartilhá-lo com todos, tanto judeus como gentios. Ele chegava a dizer: "Quanto está em mim, estou pronto para também vos anunciar o evangelho, a vós que estais em Roma". (Rm 1:15) Que completa prontidão e, ainda por cima, na mais real dependência de Deus somente. Se ele tivesse sido servo de homens, teria sido preciso receber uma convocação dos mesmos para pregar em Roma, ou então ter algum tipo de autorização humana. Mas não há tal idéia aqui. E por que não poderia ser assim também agora? Paulo podia dizer: "Estou pronto". Sim, sim, com o mundo atrás de si, podia dizer: "Estou pronto tão logo meu Deus abra o caminho". Oh, onde encontraremos hoje pessoas como Paulo? Que Deus possa nos despertar, enquanto pensamos no andar daquele devoto servo de Deus.

Começamos agora a nos aproximar da questão: O que é o evangelho? "Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego." (Rm 1:16).

A razão pela qual ele não se envergonha do evangelho é colocada de forma clara. A lei mandava, mas não tinha nenhum poder para libertar do pecado; não, ela fora dada para que abundasse, não o pecado, mas a ofensa. Mas, em contraste direto, o evangelho é o poder (não do homem, mas) de Deus, para a salvação. Há um enorme significado nisto. Vamos tentar tornar isto claro aos nossos jovens leitores, usando alguns exemplos.

Você já deve ter lido e escutado muitas coisas que debilitam esta verdade, pois há muita pregação que fala ao pecador que ele deve abandonar seus pecados e separar-se deles antes de ir a Deus e receber o perdão dos pecados e a salvação. Isto pode parecer bem razoável e plausível. Tome este exemplo: Vamos nos colocar um pouco acima das cataratas do Niágara. Repare como o rio corre tranquilo! Plano como um vidro, e quanto mais perto das quedas, mais plano ele fica. Um barco é visto descendo pela corrente. Há dois homens nele. Eles escutam o crescente bramido das pavorosas quedas. Um está consciente de seu perigo: mais alguns minutos e o barco despencará. O outro parece estupefato. Ambos estão igualmente perdidos; ambos estão no mesmo barco navegando tão suavemente rumo à completa destruição. Agora chame-os; tente anunciar-lhes o evangelho do homem. Diga a eles que abandonem aquele barco; que deixem aquele poderoso rio; que venham para a margem antes que despenquem, e que, se fizerem assim, você irá ajudá-los!

Homem, você está lhes dizendo para fazer o impossível. Porventura não será isto zombar deles? Porventura não é cruel zombar deles desse jeito? Em um ou dois minutos eles estarão acabados. O que é preciso é poder para salvá-los.

Acaso não está o pecador, na correnteza do tempo, despencando para uma destruição muito pior? Sim, ele dirá, o poder do pecado me carrega. Ele desperta para seu perigo, para a morte e o juízo ao alcance da mão. Ele escuta o bramido; mas será que pode salvar-se a si próprio? Será que pode sair do rio? Se puder, não precisa de um salvador. Uma boa notícia, para aquele homem descendo pela correnteza fatal, seria chamá-lo e assegurar-lhe que há Alguém pronto e capaz de salvá-lo completamente. Sim, e é assim que Deus fala ao pecador que está perecendo perdido e culpado, conforme iremos ver mais adiante: "Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo". (Rm 10:13) Tome outro exemplo. Você escuta o súbito clamor de "Fogo, Fogo!" Você não anda mais que poucos metros e vê um prédio incendiando-se. As chamas saem de todas as janelas do andar de baixo. Sabe-se que há algumas pessoas no quarto andar, as quais encontram-se dormindo ou desmaiadas pela fumaça. Se elas tiverem poder para escapar, não há necessidade de se tentar um resgate. Mas a escada é colocada de forma a alcançar a janela. Veja agora aquele hábil e corajoso bombeiro. O que é que ele faz? Será que meramente diz aos de dentro que devem primeiro sair da casa incendiada que, então, irá salvá-los? Não; ele sobe pela escada, quebra a janela, e entra na cena do perigo. Ele os traz para fora: estão salvos. O mesmo acontece em uma tempestade no mar. O navio avariado está afundando rapidamente para sua final destruição, levando consigo sua pobre tripulação. De que serviria um barco que fosse salvá-los, se o capitão deste permanecesse, de longe, gritando para aqueles homens que perecem, que devem primeiro abandonar o navio destroçado e nadarem até a praia, para, então, serem salvos pelo salva-vidas? Assim é o evangelho do homem. O homem deve primeiro salvar-se a si próprio; e então Cristo o salvará. E o mais estranho é que os homens adorem e aceitem uma tolice como essa.

Todavia, o evangelho de Deus é totalmente oposto a isso: Ele enviou Seu Filho amado para buscar e salvar o que estava perdido. Sim, PERDIDO, assim como aqueles no barco, tão perto das ensurdecedoras cataratas. PERDIDOS, como os moradores do prédio incendiado. PERDIDOS, como aqueles marinheiros afundando com os escombros de seu navio. Sim, se os homens tão somente soubessem, e reconhecessem sua condição de perdidos e incapazes, eles reconheceriam que o evangelho do homem é uma completa tolice que ordena que eles se salvem a si mesmos e que, só então, Deus irá salvá-los.

Tome mais esta ilustração. Um homem foi julgado e considerado culpado. Ele está agora preso e condenado. Será que você iria dizer-lhe para sair daquela cela; para abandonar seus pecados, suas algemas, a prisão, e a sentença que já lhe foi dada; e então, mas só então, ele seria perdoado? Não seria isto uma cruel zombaria para um homem naquelas condições? Todavia é esta a verdadeira condição do pecador e, portanto, "não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê". (Rm 1:16) A pergunta no coração daquele que descobre que está navegando em direção à queda, ou aos recifes, ou que é um pecador culpado sob o juízo e sem forças para suportá-lo, é esta: Como posso ser salvo? Como eu, um pecador condenado, posso ser justificado? É esta, portanto, a verdadeira questão que é tratada e explicada na primeira parte da epístola. Sim, é esta a própria razão de Paulo não estar envergonhado do evangelho. "Porque NELE se descobre a justiça de Deus de fé" (ou, sobre o princípio da fé) "em fé, como está escrito: Mas o justo viverá da fé." (Rm 1:17) Não se trata da justiça do homem, pois este não tem nenhuma. E como poderia tê-la se é alguém culpado e sob o juízo? E mesmo que a tivesse, seria justiça do homem e não de Deus.

Veremos que a justiça de Deus está em direto contraste com a justiça do homem. Ela nem poderia ser pela lei, pois Deus não pode estar sujeito à lei. Foi Ele quem deu a lei. Se o assunto fosse a "justiça de Cristo", então seria uma outra verdade. Mas trata-se da justiça de Deus revelada, no evangelho, sobre o princípio da fé, "de fé em fé". Ela foi repetidamente anunciada no Antigo Testamento, mas foi agora explicada, ou revelada. "E não há outro Deus senão Eu; Deus Justo e Salvador não há fora de Mim. Olhai para Mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra." "De Mim se dirá: Deveras no Senhor há justiça e força." (Is 45:21-24) "Em Teu nome se alegrará todo o dia, e na Tua justiça se exaltará." (Sl 89:16) Devemos ter em mente que a justiça de Deus é a primeira, e principal, questão tratada nesta epístola. Este é o assunto tratado em primeiro lugar; então vem o amor de Deus. Isto porque o amor de Deus não apaga a ira de Deus. A questão da justiça é imediatamente levantada, "porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detém a verdade em justiça". (Rm 1:18) Essa ira ainda não foi derramada, mas não se pode ter dúvidas quanto à ira que há, da parte de Deus, contra toda a impiedade dos homens -- contra o pecado. Ela pode ser vista no dilúvio, na destruição de Sodoma e no Santo de Deus tendo sido feito pecado por nós. Ela é também revelada no fato de que Ele virá em juízo, tomando vingança. O ímpio certamente será lançado no lago de fogo.

E será que sou um pecador culpado? Se assim for, de que proveito me seria contar só com o amor de Deus no dia da justa ira contra toda a impiedade? Deve, assim, ficar evidente que a primeira grande questão é a justiça de Deus em justificar o pecador que nEle crê. Como é que Deus pode ser Justo em reputar um tamanho pecador como eu como justo diante dEle? Que tremenda questão!

Esta questão da justiça de Deus é tratada novamente no capítulo 3.21. Então, qual é o objetivo do Espírito nesta grande porção das Escrituras, que vai do capítulo 1.17 até o 3.21? Acaso não é, principalmente, descartar completamente toda a pretensão de justiça no homem, esteja ele sem lei ou sob a lei? Isto é algo que precisa ser feito, pois não existe nada a que o homem se apegue mais do que os esforços para estabelecer sua justiça-própria. Assim, cada alegação do homem é examinada.

O eterno poder de Deus foi manifestado na Criação e, uma vez mais, no dilúvio.

Com certeza, Deus era conhecido de Noé, e também de seus descendentes. Estes, "tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças". (Rm 1:21) Pelo contrário, mergulharam na idolatria. Apostataram de Deus, até que Deus os entregou, ou abandonou. Por três vezes isto é repetido: "Pelo que também Deus os entregou às concupiscências..." (Rm 1:24); "Pelo que Deus os abandonou às paixões infames..." (Rm 1:26); "Deus os entregou a um sentimento perverso..." (ou "pervertido") (Rm 1:28). Leia a terrível lista de impiedades nas quais mergulhou todo o mundo gentio. Onde é que havia justiça no homem? Abandonar é o ato judicial de Deus em juízo. Ele assim abandonou os gentios, e vemos em que se tornaram.

Sabemos também que quando os judeus rejeitaram completamente o testemunho do Espírito Santo, Deus os abandonou, no presente momento, como povo. Este será também o fim da cristandade professa, "porque não receberam o amor da verdade para se salvarem. E por isso Deus enviará a operação do erro, para que creiam a mentira; para que sejam julgados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer na iniquidade". (2 Ts 2:10) Portanto, o fato de Deus haver abandonado os gentios aos terríveis desejos de seus corações, prova sua completa apostasia de Deus. E toda a história secular corrobora esta descrição inspirada da impiedade humana.

Pode-se perguntar: Porventura não existiram legisladores, reis e magistrados, que tenham decretado leis contra a impiedade e punido os crimes? "Os quais, conhecendo a justiça de Deus (que são dignos de morte os que tais coisas praticam), não somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem." (Rm 1:32) Assim, tanto então, como agora, a maior impiedade é encontrada nos legisladores ou chefes. Como prova disto basta lermos qualquer dos historiadores da antiguidade. Se o homem é deixado a seu bel-prazer, quanto maior for o poder que tiver em suas mãos, maior será a sua maldade. É surpreendente vemos o grau de crueldade e horrível impiedade do paganismo. Tal era o mundo ao qual Deus, em misericórdia, enviou Seu Filho. A justiça era algo que não podia ser encontrado no mundo gentio. As multidões, como um só homem, corriam aos anfiteatros para saciar seus olhos com a cruel impiedade.