O JOIO DO CAMPO

Chegamos agora à primeira das semelhanças do reino dos céus. A parábola do semeador era a obra preparatória de nosso Senhor sobre a terra. “Propôs-lhes outra parábola, dizendo: O reino dos céus é semelhante ao homem que semeia boa semente no seu campo; mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou o joio no meio do trigo, e retirou-se” (vers. 24, 25) ─ exatamente o que aconteceu com a pública confissão cristã. Existem duas coisas necessárias para a entrada do mal entre os cristãos. A primeira é a falta de vigilância dos próprios cristãos. Eles caem em um estado de descuido, dormem, e o inimigo vem e semeia o joio. Isso começou numa época remota da cristandade. Encontramos o seu germe já em Atos dos Apóstolos, e ainda mais nas epístolas. 1 Tessalonicenses é a primeira epístola inspirada que o apóstolo Paulo escreveu; e a segunda foi escrita logo depois. E ele já lhes dizia que o mistério da iniquidade estava já operando; que havia outros desdobramentos disto, tais como a apostasia e o homem de pecado; e que quando a iniquidade estivesse plenamente manifesta (ao invés de operar sorrateiramente), o Senhor poria um fim ao iníquo e a tudo o que estivesse relacionado com ele. O mistério da iniquidade parece estar relacionado com a semeadura do joio de que é falado aqui. Após algum tempo, “quando a erva cresceu e frutificou” ─ quando o cristianismo começou a progredir a passos largos sobre a terra, “apareceu também o joio”. Mas é evidente que o joio foi semeado quase que imediatamente após a boa semente. Não importa qual seja a obra de Deus, Satanás estará sempre vindo logo atrás. Quando o homem foi criado, ele deu ouvidos à serpente e caiu. Quando Deus deu a lei, ela foi transgredida antes mesmo de chegar às mãos de Israel. Essa tem sido sempre a história da natureza humana.

Portanto o dano é feito no campo e nunca mais reparado. Não é agora o momento de se arrancar o joio ─ não há um juízo determinado para ele agora. Será que isto significa que devemos permitir o joio na igreja? Se o reino dos céus fosse o mesmo que igreja, então esta passagem autorizaria a inexistência de qualquer tipo de disciplina na igreja: deveria se admitir nela qualquer tipo de impureza da carne ou do espírito, bem como blasfemos, bêbados, adúlteros, hereges, anticristos, bem como aqueles que promovem divisões e outros. Aqui vemos a importância de se enxergar a distinção entre a igreja e o reino. O Senhor proíbe que o joio seja arrancado do reino dos céus: “Deixai crescer ambos juntos até à ceifa” (vers. 30), ou seja, até que o Senhor venha para julgar. Se a expressão reino dos céus tivesse o mesmo significado que igreja, volto a insistir, a consequência seria nada mais nada menos do que esta: nenhum mal, por mais flagrante ou evidente que fosse, deveria ser colocado fora da igreja antes do dia do juízo. Vemos, portanto, a importância de se fazer esta distinção, a qual é desprezada por muitos. Ela é da maior importância para a verdade e a santidade. Não há uma única palavra dada por Deus que possamos dispensar.

O que significa, então, esta parábola? Ela não tem nada a ver com o assunto de comunhão na igreja. Trata-se do “reino dos céus” ─ a esfera de confissão pública de Cristo, seja ela verdadeira ou falsa. Sendo assim, gregos, coptas, nestorianos, católicos romanos, tanto quanto protestantes, encontram-se no reino dos céus; não apenas aqueles que realmente creem, mas também pessoas más que apenas professam ser cristãos. Uma pessoa, não sendo judeu nem pagão, que professe o nome de Cristo está no reino dos céus. Ele pode ser até um imoral ou herege, mas ele não é para ser colocado fora do reino dos céus.

Mas seria certo recebê-lo à mesa do Senhor? Absolutamente não! Igreja (isto é, assembleia de Deus) e reino dos céus são duas coisas completamente diferentes.

Se uma pessoa que estiver na igreja cair abertamente em pecado, deve ser colocada fora; mas não deve ser excluída do reino dos céus. Na verdade, a única maneira de excluí-la do reino dos céus seria tirando a sua vida, que é o que significa arrancar o joio. E foi neste erro que o cristianismo mundano caiu não muito tempo depois que os apóstolos se foram. Punições civis foram introduzidas como disciplina; leis foram elaboradas com o propósito de entregar os infratores ao governo civil submisso ao clero. Aqueles que não honravam a, assim chamada, “Igreja”, não eram considerados dignos de continuarem vivos. Dessa maneira, o próprio mal do qual o Senhor guardava os Seus discípulos veio a acontecer, e o imperador Constantino usou da espada para reprimir os que se opunham ao poder eclesiástico. Ele e seus sucessores estabeleceram punições seculares para tratar com o joio, procurando arrancá-lo.

Tomemos, mais uma vez, a Igreja de Roma onde é tão abrangente a confusão entre igreja e reino dos céus. Eles alegam que se uma pessoa é herege, deve ser levada aos tribunais deste mundo para ser queimada; e eles nunca confessaram ou corrigiram esse erro, pois se consideram infalíveis. Mesmo se supormos que suas vítimas fossem joio, fazer isso equivaleria a arrancá-las do reino dos céus. Se você arranca um joio do campo, você o mata. Podem existir pessoas que exteriormente professam ser cristãos, mas que na verdade estão profanando o nome de Deus; mesmo assim devemos deixá-las para que Deus cuide delas.

Isto não elimina a responsabilidade cristã para com aqueles que estão à mesa do Senhor. Você encontrará instruções a este respeito nas passagens que foram escritas com referência à igreja. “O campo é o mundo” (vers. 38); a igreja abrange somente aqueles adequadamente aceitos como membros do corpo de Cristo. Tomemos 1 Coríntios, onde encontramos o Espírito Santo mostrando a verdadeira natureza da disciplina eclesiástica. Suponhamos que existam cristãos professos, culpados de qualquer pecado que se possa imaginar; tais pessoas não devem ser recebidas como membros do corpo de Cristo, pelo menos enquanto permanecerem naquele pecado. Até mesmo um santo verdadeiro pode cair abertamente em pecado, mas é dever da igreja, ao saber disso, intervir com o propósito de expressar o julgamento de Deus com respeito ao pecado. Se deliberadamente permitirem que tal pessoa participe da mesa do Senhor, estarão, na realidade, envolvendo o Senhor naquele pecado. Não se trata da questão de ser a pessoa convertida ou não; mesmo que seja alguém convertido, o pecado não deve ser consentido. Quanto àqueles que não são verdadeiramente convertidos, nada têm a ver com a igreja.

O ensino da Palavra de Deus é, dessa forma, o mais claro possível quanto a estas verdades. É um erro se valer de punições seculares para tratar com um hipócrita, mesmo quando ele é descoberto. Ainda que se busque o bem de sua alma, não há razão para tal tipo de punição. Mas se um cristão é culpado de pecado, a igreja, embora exortada a ser paciente no julgamento, não deve jamais aceitá-lo. Quanto aos inconversos culpados (o joio), devemos deixá-los para que sejam julgados pelo Senhor em Sua vinda. É isto o que nos ensina a parábola do joio; dá-nos uma visão bastante solene do cristianismo. Tão certo como o Filho do homem semeou boa semente, Seu inimigo semearia má semente que cresceria junto com as outras: e não se pode ficar livre desse mal, ao menos no tempo presente. Há uma solução para o mal que entra na igreja, mas ainda não existe uma para o mal que está no mundo.

Este é o único Evangelho contendo a parábola do joio. Lucas fala do fermento. Mateus tem também a parábola do joio que ensina particularmente paciência no tempo presente, em contraste com a forma judaica de julgamento, além de atender à justa expectativa de um campo limpo do mal quando chegar o milênio sob o reino do Messias. Os judeus poderiam dizer: ─ Por que deveríamos admitir inimigos, hereges e infiéis? Até mesmo quando nosso Senhor esteve aqui, e alguns Samaritanos não o receberam, Tiago e João quiseram ordenar que caísse fogo dos céus para consumi-los. Eles tinham o pensamento natural de tratar logo com o joio, mas o Senhor os repreendeu por isto. “Vós não sabeis de que espírito sois”, e acrescentou, “Porque, o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las”. Isto ilustra qual é o desejo de nosso Senhor com respeito ao joio. Matá-los é ir contra o cristianismo, cujo verdadeiro poder procede do Espírito Santo e não da força bruta. A espada fica do lado de fora.

Contudo, temos ainda mais instruções. “Deixai crescer ambos juntos até à ceifa; e, por ocasião da ceifa, direi aos ceifeiros: Colhei primeiro o joio, e atai-o em molhos para o queimar; mas o trigo ajuntai-o no meu celeiro.” (vers. 30) Assim os santos celestiais estão para ser reunidos ao celeiro do Senhor; tirados desta terra e levados para o céu. Porém a “ocasião da ceifa” se refere a um certo período de tempo quando transcorrerão os vários processos de ajuntamento. Nesse cenário de colheita o Senhor dirá aos ceifeiros: “Colhei primeiro o joio, e atai-o em molhos para o queimar”. Não diz que o trigo deva ser atado em molhos para ser levado aos céus. Não é dada qualquer instrução no sentido de que seja preciso algum trabalho especial de preparação dos santos antes que sejam levados para os céus. Mas há algo assim com respeito ao joio. Os anjos devem arrumá-los de um certo modo antes que o Senhor os leve do campo. Não pretendo dizer como isso acontecerá, ou se os diversos sistemas ou associações que vemos no presente ão estejam, de certa forma, preparando o caminho para a ação final do Senhor para com o joio. Mas o princípio de associação a nível mundial está ganhando espaço. Quando se aproximar o tempo do juízo dos vivos, haverá um trabalho preliminar, confiado aos anjos, para amarrar os ímpios em feixes para serem queimados. Não pretendo especular em como isso será feito, preferindo ficar tão somente dentro daquilo que me é mostrado neste capítulo.

A parábola do campo de trigo provou plenamente que, à semelhança da dispensação que terminava, aquela que estava para começar viria a ser também um completo fracasso no que diz respeito à responsabilidade do homem em manter a glória de Deus. Isso deve ter sido um golpe inesperado para os pensamentos dos discípulos. Israel havia desonrado a Deus; eles não haviam trazido a liberdade, mas sim a vergonha e confusão sobre na face da terra. Eles falharam em guardar a lei e haviam de rejeitar a graça tão completamente que o Rei seria obrigado a enviar os Seus exércitos para destruir aqueles assassinos e queimar sua cidade. Mas talvez o que não tenha sido entendido com clareza era que, se por um lado estava para começar uma nova obra que iria tomar a forma de uma reunião de discípulos ao nome de Jesus, pela Palavra que lhes seria pregada, por outro, essa nova obra acabaria por se tornar uma ruína nas mãos dos homens.

Quando se trata de salvação de almas, isto jamais depende da criatura, cujos esforços Deus considera, e sempre considerou, um completo fracasso. O homem foi destituído da glória de Deus no Paraíso, e fora dele corrompeu os seus passos enchendo a terra de violência. Depois de tudo, Deus ainda escolheu um povo para prová-los, e eles falharam. E agora veio a nova prova. O que seria dos discípulos que professaram o nome de Cristo? A resposta foi dada: Enquanto os homens dormiam, o inimigo semeou o joio. E um solene aviso declara que nenhum zelo por parte deles poderia remediar o mal que fora feito. Eles próprios podiam ser fiéis e sinceros, mas o mal que havia sido feito pela introdução do joio ─ falsos cristãos professos ─ nunca seria erradicado.

O Senhor evidentemente fala do vasto campo de confissão cristã, e do triste fato de que o mal estava para ser introduzido desde o seu princípio. E uma vez introduzido, nunca mais seria tirado até que o próprio Senhor viesse para julgar e, por meio de Seus anjos, atá-los em feixes para serem queimados. Enquanto isso, o trigo encontra-se reunido no celeiro. Vimos, assim, que o joio estava para ser misturado ao trigo desde o princípio, ─ não necessariamente misturado à igreja, pois o campo não é a igreja, mas o mundo. A conclusão é que podem existir aqueles que estão levando o nome de Cristo embora sejam pessoas declaradamente ímpias. Sabemos que tal classe de pessoas tem conseguido obter, e até mesmo manter, uma posição dentro de um grande círculo que professa o nome do Senhor, mas o campo ─ marque bem ─ não é a assembleia, mas a esfera de uma adesão exterior a Cristo.

Se por um momento pensarmos na igreja como sendo o que encontramos em Mateus 13, é certo que jamais entenderemos o capítulo. “O campo é o mundo”, a esfera onde o nome do Senhor é confessado, e se estende muito além daquilo que poderia ser considerado a igreja. Deve haver ─ e com certeza há ─ muitas pessoas que não sejam nem pagãos e nem judeus ou muçulmanos, que se autodenominam cristãos, enquanto demonstram, por seu caminhar, que não há neles uma fé real. Estes são chamados de “joio”. Não são necessariamente hipócritas conscientes. Podem ser ou não, mas são professantes degenerados do “um só Senhor” e da “uma só fé”, tratando-se de pessoas batizadas que não têm nenhum apreço por Cristo e nem cuidado com Sua glória. São, consequentemente, destituídos de vida ─ não são nascidos da água e do Espírito, embora levem o nome de Cristo e talvez até mesmo tenham, exteriormente, zelo pela fé. Atualmente são encontrados em todos os lugares do mundo ocidental, como já o foram no mundo oriental. Há muitos que, muito embora ninguém acreditaria que pudessem ser nascidos de Deus, ficariam chocados se fossem taxados de infiéis. Reconhecem a Cristo como o Salvador do mundo e como o verdadeiro Messias, mas é algo totalmente sem efeito sobre suas almas, assim como aqueles que na Jerusalém de outrora creram em Cristo quando viram os milagres que Ele fizera. (João 2) Jesus não confia nestes de agora, tanto quanto não confiava naqueles de então.