O FERMENTO
Em seguida vem a terceira parábola, novamente de uma natureza diferente. Não se trata de uma semente, boa ou má. Tampouco nos fala do que é pequeno e se torna grande e poderoso neste mundo; e para que! Mas aqui encontramos aquilo que seria a disseminação de doutrina internamente, assimilando para si qualquer coisa que lhe cruzasse o caminho. “Fermento” é usado no Evangelho de Mateus, assim como ocasionalmente em outras passagens, com o significado de doutrina. Por exemplo, temos a “doutrina dos Fariseus e Saduceus” que é chamada de “fermento”. (Mateus 16:6) Sem dúvida alguma o Senhor se refere ali à doutrina hipócrita. O pensamento aqui não é tanto no sentido de caracterizar o tipo de doutrina, seja ela boa ou má, mas sim, ao que parece, simbolizar aquilo que se espalha e penetra em tudo o que entra em contato consigo.
“O reino dos céus é semelhante ao fermento que uma mulher toma e introduz em três medidas de farinha, até que tudo esteja levedado.” (vers. 33) As três medidas de farinha não devem ser interpretadas como o mundo inteiro. Suponho que representem uma determinada área entregue à ação do fermento doutrinário, por meio do qual a doutrina efetivamente se espalha. Seja o resultado um estado de coisas bom ou mau após o todo ter sido impregnado com a doutrina, devemos julgar segundo a Palavra de Deus de uma maneira geral, e não meramente por uma figura ou expressão em particular. Normalmente não encontramos a verdade estabelecida de tal maneira. Sabemos o que há no coração do homem e disto deduzimos que a doutrina que é espalhada de forma tão vasta, usando o nome de Cristo, deve estar bem distante de sua pureza original quando passa a ser benquista por uma grande multidão. Além do mais, temos visto o joio, que não significa nada de bom, ser misturado ao trigo. Vimos também a semente de mostarda que cresceu ao ponto de se tornar uma árvore que estranhamente acolheu as aves do céu, as mesmas que antes haviam roubado a semente que Cristo plantou. E então vemos o fermento que, onde quer que apareça simbolicamente na Palavra de Deus, nunca tem outro significado além de caracterizar aquilo que corrompe, se espalhando e trabalhando rapidamente. Portanto devemos assumir que aqui não se trata da expansão do evangelho.
Não tenho dúvida de que o significado é um sistema doutrinário que toma toda uma massa humana, deixando nela a sua marca. Quanto ao tipo de doutrina, isso é algo que exige outras considerações, mas, sem dúvida alguma, seria muito estranho se o fermento significasse algo de bom. Por outro lado, o evangelho é a semente ─ a semente incorruptível ─ da vida, sendo o testemunho de Deus quanto a Cristo e Sua obra. Ele pode ser alvo de rapina ou mesmo pisado, mas onde quer que encontre abrigo em um coração, ali ele emana, pela graça, uma nova natureza. O fermento nunca, e em lugar nenhum, tem a ver com Cristo e tampouco dá vida, mas expressa justamente o contrário. Portanto, não existe a menor analogia entre a ação do fermento e o recebimento de vida em Cristo por meio do evangelho.
Creio que o fermento demonstra aqui a propagação dos dogmas e credos, após a cristandade haver se tornado um grande poderio sobre este mundo, cumprindo assim a parábola da árvore. Foi assim que ocorreu, historicamente falando, no tempo de Constantino, o Grande, e sabemos que o resultado disso foi um abandono da verdade. Quando o cristianismo se tornou grande e respeitável neste mundo, ao invés de ser perseguido e reprovado, levas de pessoas foram a ele acrescentadas. Todo um exército foi batizado com uma só palavra de ordem. A espada passou a ser então utilizada para defender, ou fortalecer, o cristianismo; com uma frequência cada vez maior as recompensas terrenas e o favor imperial aceleravam a decadência do paganismo. Tudo isso, sem dúvida alguma, abriu caminho para a disseminação do fermento, e não para a sã verdade de Deus e tampouco para Sua graça.
Observe também que desta maneira a interpretação flui harmoniosamente. Temos parábolas aplicadas a coisas distintas, que podem ter uma certa medida de analogia umas às outras, além de estabelecer diferentes verdades em uma ordem que não pode deixar de se mostrar idônea a uma mente espiritual e livre de preconceitos. Tudo depende de uma correta compreensão do que significa “reino dos céus”. Não devemos esquecer que se trata simplesmente da autoridade do Senhor nos céus, reconhecida sobre a terra. Quem quer que a reconheça, seja nascido de Deus ou não, encontra-se no reino dos céus. Alguns são verdadeiramente renascidos enquanto outros meramente adotaram o cristianismo como um bom credo e um código moral salutar. Quando o cristianismo passou a ser algo reconhecido pelo mundo como um verdadeiro poder civilizatório sobre a terra, tendo sido avaliado como tal pela balança da sabedoria humana, deixou de ser simplesmente o campo semeado com a boa semente e poluído pela má semente lançada pelo inimigo. Transformou-se, porém, em frondosa árvore e em fermento de ação ampla e profunda (pois é esta a surpreendente revelação que o Senhor faz). Isso era algo que as multidões poderiam admirar, mas que somente os sábios seriam capazes de compreender. Se os discípulos estavam esperando por algo que fosse evoluir segundo a mente de Cristo, estavam bem enganados. Eles foram informados de que seria uma situação completamente diferente daquela que eles esperavam com base nos profetas, que discorreram abundantemente acerca de uma época de paz, bênção e glória universal sobre a terra. Aqui eles descobrem que, embora o Messias tivesse vindo, Ele estava indo embora; que enquanto Ele estivesse nos céus, o reino seria estabelecido em perseverança e não em poder ─ misteriosamente, e não como algo visível; e que nele, consequentemente, seria permitido que o diabo trabalhasse tanto quanto antes, valendo-se, como era de se esperar, da recém-revelada verdade de Deus.
Até aqui, portanto, estas parábolas mostram o gradual crescimento do mal. Primeiro há a mistura de um pouco de mal com uma grande quantidade de bem, como era o caso do campo de trigo. Então há o surgimento daquilo que é alto, poderoso e influente, a partir da insignificante origem do cristianismo primitivo. Ao invés de padecer tribulação no mundo, o corpo de cristãos se transforma em feitor a exercer a sua autoridade, e desde então passa a ser o lugar em que se colocam os mais ambiciosos deste mundo a fim de satisfazerem suas próprias pretensões. Segue-se uma vasta propagação de doutrina, quando a insensatez do paganismo e as limitações do judaísmo tornam-se por demais evidentes, e à medida que os interesses destes também os levam a buscar um lugar no cristianismo.