OS TALENTOS

Agora só falta considerarmos aquela parte do discurso de nosso Senhor na qual Ele volta a tratar do assunto tão solene da responsabilidade do ministério durante o tempo de Sua ausência. Que isto está intimamente ligado à esperança de Sua vinda é evidente pelo fato de que, tendo concluído a parábola das dez virgens com a forte expressão, "vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora", Ele segue dizendo: "Porque isto é também como um homem que, partindo para fora da terra, chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens".

Existe uma diferença essencial entre a parábola dos talentos e a do servo em Mateus 24:45-51. na última, temos o ministério dentro da casa. Na primeira, por outro lado, temos o ministério no exterior, no mundo. Mas em cada uma encontramos um grande fundamento para todo ministério, a saber, o dom e a autoridade de Cristo. "Chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens". os servos são dEle, e os bens são dEle. Ninguém além de Cristo, o Senhor, pode colocar um homem no ministério, do mesmo modo como ninguém pode conceder dons espirituais. É totalmente impossível para qualquer um ser ministro de Cristo a menos que Ele próprio o tenha chamado e preparado para a obra. Trata-se de algo tão claro que não admite um questionamento sequer. Um homem pode ser ministro de uma religião, pode pregar as doutrinas do evangelho e ensinar teologia, mas não pode ser um ministro de Cristo a menos que o próprio Cristo o chame e o prepare com dons para a obra. Se fosse uma questão de ministério dentro da casa, a questão seria "que o seu senhor constituiu sobre a sua casa". Caso se trate de uma questão de ministério exterior, no mundo, nos é dito que Ele "chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens".

Este grande e primordial princípio do ministério está poderosamente incorporado nestas palavras de um dos maiores ministros que já existiu, quando ele diz: "Dou graças ao que me tem confortado [var. "me fortaleceu"], a Cristo Jesus Senhor nosso, porque me teve por fiel, pondo-me no ministério" (1Tm 1:12). Assim deve ser em todos os casos, não importa qual seja a medida, o caráter ou a esfera do ministério. Somente Cristo, o Senhor, pode colocar alguém no ministério e capacitá-lo para o cumprir. Se não for assim, o caso ou será, ou de algum homem se colocando a si mesmo no ministério, ou de algum seu semelhante fazendo isso, ambos agindo igualmente de forma contrária à vontade de Deus e contra todos os princípios do verdadeiro ministério, conforme o ensino da Palavra. Se quisermos ser guiados pelas Escrituras, devemos ver que todo ministério, dentro ou fora da casa, deve ser uma designação divina e por capacitação divina. Se não for assim, é pior do que nada. Um homem pode declarar a si mesmo ministro ou ser feito um por seus colegas, mas é tudo em vão. Não é algo vindo do céu — não provém de Deus — não é feito por Jesus Cristo; e, no porvir, isso ficará manifesto e será julgado como uma das piores e mais ousadas formas de usurpação.

É da maior importância que o leitor cristão agarre totalmente este grande princípio do ministério. Ele é tão simples quanto solene. E, além do mais, trata-se de algo sobre um fundamento verdadeiramente divino que não pode ser questionado por todo aquele que se submete — como todo cristão deveria se submeter — com absoluta e irrestrita submissão, à autoridade da divina Palavra. Que o leitor pegue sua Bíblia e leia cuidadosamente cada linha nela que trata do assunto do ministério. Se abrir na parábola do servo na casa, lerá: "Que o seu Senhor constituiu sobre a Sua casa". O servo não constitui a si mesmo e nem é ordenado por seus companheiros. A ordenação é divina.

O mesmo acontece na parábola dos talentos, o mestre chama seus próprios servos e dá a eles os seus bens. O chamado e o aparelhamento são divinos. Temos outro aspecto da mesma verdade em Lucas 19. "Certo homem nobre partiu para uma terra remota, a fim de tomar para si um reino e voltar depois. E, chamando dez servos seus, deu-lhes dez minas, e disselhes: Negociai até que Eu venha". A diferença entre Lucas e Mateus parece ser esta: em Lucas, trata-se da responsabilidade humana; em Mateus o que está em destaque é a soberania divina. Mas em ambos o grande princípio essencial é claramente mantido e inquestionável, a saber, que todo ministério é por ordenação divina.

A mesma verdade vem ao nosso encontro em Atos dos Apóstolos. Quando alguém precisou ser escolhido para preencher o lugar de Judas, apelaram para Jeová: "Tu, Senhor, conhecedor dos corações de todos, mostra qual destes dois [Tu] tens escolhido, para que tome parte neste ministério e apostolado".

E até mesmo quando se trata de uma questão de responsabilidade local, como a dos diáconos em Atos6, ou de anciãos, em Atos 14, trata-se de algo feito por ordenação direta dos apóstolos. Em outras palavras, é algo divino. Um homem não poderia ordenar a si mesmo diácono e muito menos ancião. No caso do primeiro, enquanto os diáconos cuidavam dos bens das pessoas, estes últimos deviam, segundo a ordem em graça e ternura moral do Espírito, selecionar homens em quem pudessem confiar; mas a ordenação era divina, tanto dos diáconos como dos anciãos. Assim, seja ela uma questão de dom ou de responsabilidade local, tudo permanece sobre uma base puramente divina. Este é o ponto de suma importância.

Além disso, se abrirmos nas epístolas veremos que a mesma grande verdade irá brilhar em pleno e radiante fulgor diante de nós. Assim, no início de Romanos 12 lemos: "Porque pela graça que me é dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, Assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada..." Em 1 Coríntios 12 lemos: "Mas agora Deus colocou os membros no corpo, cada um deles como quis" (versículo 18). E, mais uma vez, "a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos..." (versículo 28). O mesmo em Efésios 4: "Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo".

Todas estas passagens, e muitas outras que poderiam ser citadas, sevem para estabelecer a verdade que nós desejamos muito mostrar a nossos leitores, a saber, que o ministério em todas as suas áreas é divino — provém de Deus, vem do céu e é por Jesus Cristo. Não existe absolutamente coisa alguma no Novo Testamento relacionada a algum tipo de autoridade humana para ministrar na Igreja de Deus. Onde quer que procuremos entre as páginas sagradas, só encontraremos a mesma bendita doutrina que está contida naquela breve sentença de nossa parábola: "Chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens".

Toda a doutrina do Novo Testamento relacionada ao ministério está incorporada aqui; e insistimos sinceramente com o leitor cristão que permita que esta doutrina domine completamente sua alma e exerça toda sua influência sobre o seu caráter, andar e conduta.*

[* Não restringimos, de forma alguma, a aplicação dos "talentos" a alguns dons espirituais específicos. Cremos que a parábola se aplica a um amplo espectro do serviço cristão, do mesmo modo que a parábola das dez virgens abrange um amplo espectro da profissão cristã.]

Mas talvez a pergunta que se faça seja esta: Não ocorre uma adaptação do vaso para o dom espiritual que é depositado nele? Sem dúvida alguma, e esta mesma adaptação é claramente apresentada nas palavras de nossa parábola: "E a um deu cinco talentos, e a outro dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade". Este é um ponto do mais profundo interesse e jamais deve ser perdido de vista. O Senhor conhece o uso que pretende fazer de um homem. Ele conhece o caráter do dom que pretende depositar no vaso, e assim Ele dá forma ao vaso e molda o homem adequadamente. Não podemos duvidar que Paulo era um vaso especialmente formado por Deus para o lugar que depois iria ocupar, e para a obra que iria fazer. E assim acontece em todos os casos. Se Deus designa um homem para ser um orador em público, Ele lhe dá pulmões, dá a ele uma voz, proporciona uma estrutura física adaptada para a obra que pretende que ele faça. O dom vem de Deus; mas há sempre uma referência muito clara à habilidade do homem.

Se isto for perdido de vista, nossa compreensão do verdadeiro caráter do ministério certamente será bastante imperfeita. Jamais devemos nos esquecer de duas coisas, a saber, do dom divino e do vaso humano no qual o dom é depositado. Existe a soberania de Deus e existe a responsabilidade do homem. Quão perfeitos e belos são todos os caminhos de Deus! Mas, oh!, o homem estraga tudo e o mero toque do dedo humano só serve para turvar o brilho da obra divina. Mesmo assim, jamais nos esqueçamos de que o ministério é divino em sua fonte, natureza, poder e objetivo. Se o leitor terminar este texto convencido de alma e coração acerca desta grande verdade, teremos alcançado nosso objetivo ao escrevê-lo.

Mas nunca é demais perguntar: O que todo esse assunto do ministério tem a ver com a vinda do Senhor? Muita coisa, em diversos aspectos. Acaso nosso bendito Senhor não apresentou o tema por vezes seguidas em Seu discurso no Monte das Oliveiras? E porventura este discurso não é todo ele uma resposta à pergunta dos discípulos, "que sinal haverá da Tua vinda e do fim do mundo?" Não é a Sua vinda o grande e proeminente assunto do discurso como um todo, e de cada seção dele em particular? Sem dúvida alguma. E qual é o próximo tema proeminente? Acaso não é o ministério? Veja a parábola do servo a quem é dada a responsabilidade de cuidar da casa. Como ele deve servir? Tendo em vista o retorno de seu Senhor. Do mesmo modo o ministério tem uma conexão com a partida e retorno do Mestre. Ele se encontra entre estes dois grandes eventos e é caracterizado por eles. E o que é que leva ao fracasso no ministério? Perder de vista a volta do Senhor. O servo mau diz em seu coração, "meu Senhor tarde virá", e, como consequência, começa "a espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios".

O mesmo ocorre na parábola dos talentos. A palavra solene e instigante para a alma é "negociai até que Eu venha". Em suma, aprendemos que o ministério, seja ele na casa de Deus ou fora, no mundo, deve ser exercido tendo sempre em vista a volta do Senhor. "E muito tempo depois veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles". Todos os servos precisam ter sempre em mente o solene fato de que haverá um tempo quando será feito o acerto de contas. Isto é o que irá controlar seus pensamentos e sentimentos em tudo o que diz respeito ao seu ministério. Atente para as importantes palavras a seguir, com as quais um servo procura animar outro: "Conjuro-te, pois, diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, na Sua vinda e no Seu reino, que pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina. Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências; e desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas. Mas tu, sê sóbrio em tudo, sofre as aflições, faze a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério. Porque Eu já estou sendo oferecido por aspersão de sacrifício, e o tempo da minha partida está próximo. Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a Sua vinda" (2 Tm 4:1-8). Porventura esta tocante e importante passagem não nos mostra como o ministério está intimamente conectado à vinda do Senhor? O bendito apóstolo, o mais devotado, dotado e eficaz obreiro que já trabalhou na vinha de Cristo, o mais habilidoso mordomo a manusear os mistérios de Deus, o mais sábio construtor, o grande ministro da Igreja e pregador do evangelho, o incomparável servo, este raro e precioso vaso, levou adiante sua obra, cumpriu seu ministério e exerceu suas santas responsabilidades tendo sempre em vista "aquele dia". Ele aguardava, e continua aguardando, aquela solene e gloriosa ocasião quando o justo Juiz colocará sobre sua fronte "a coroa da justiça". E acrescenta, com terna doçura, "não somente a mim, mas também a todos os que amarem a Sua vinda".

Isto é peculiarmente tocante. Haverá uma coroa de justiça "naquele dia", não apenas para o dotado, laborioso e devotado Paulo, mas para cada um que ame a vinda de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Não há dúvida de que Paulo terá, em sua coroa, gemas de um brilho peculiar; mas, antes que alguém pense que a coroa de justiça era só para Paulo, ele acrescenta estas ternas palavras: "também a todos os que amarem a Sua vinda". O Senhor seja louvado por tais palavras! Possam elas ter o efeito de despertar nosso coração, não apenas para amar a vinda de nosso Senhor, mas também para servir com uma devoção mais intensa e dedicada tendo em vista aquele dia glorioso! Que as duas coisas estão intimamente conectadas podemos ver na sequência da parábola dos talentos. Não há muito que possamos fazer além de citar as palavras de nosso Senhor.

Quando os servos receberam os talentos, lemos que "o que recebera cinco talentos negociou com eles, e granjeou outros cinco talentos. Da mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros dois. Mas o que recebera um, foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor. E muito tempo depois veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles. Então aproximou-se o que recebera cinco talentos, e trouxe-lhe outros cinco talentos, dizendo: Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que granjeei com eles. E o seu senhor lhe disse: Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. E, chegando também o que tinha recebido dois talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois talentos; eis que com eles granjeei outros dois talentos. Disse-lhe o seu Senhor: Bem está, bom e fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor".

É interessante e instrutivo notar a diferença entre a parábola dos talentos, conforme ela é contada em Mateus, e a parábola dos dez servos em Lucas 19. Em Mateus trata-se de uma questão da soberania divina; em Lucas trata-se da responsabilidade humana. Nesta, cada um recebe uma soma igual, mas na outra um recebe cinco, outro dois, conforme a vontade do mestre. Então, quando chega o dia da prestação de contas, encontramos em Lucas uma recompensa clara em conformidade com o trabalho feito, enquanto em Mateus a palavra é: "sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor". Não lhes é dito o que receberão, ou sobre quantas coisas serão colocados. O mestre é soberano, tanto em Seus dons como nas recompensas; e o ponto alto disso tudo é: "entra no gozo do teu senhor".

Isto, para um coração que ama o Senhor, está além de qualquer outra coisa. É verdade que haverá as dez cidades e as cinco cidades. Haverá uma recompensa ampla, distinta e definitiva pela responsabilidade exercida, pelo serviço apresentado e pelo trabalho executado. Tudo será recompensado. Mas, acima e além de tudo brilha esta preciosa palavra: "Entra no gozo do teu senhor".

Nenhuma recompensa poderia jamais se igualar a isto. O senso de amor que transpira destas palavras levará cada um a lançar sua "coroa da justiça" aos pés de seu Senhor. A própria coroa que o justo Juiz dará, nós de bom grado a lançaremos aos pés de um amável Salvador e Senhor. Basta um sorriso Seu para tocar o coração com muito maior poder e profundidade que a mais fulgurante coroa colocada sobre a fronte.

Uma palavra mais antes de terminarmos. Quem não trabalhou? Quem escondeu o dinheiro de seu senhor? Quem demonstrou ser um "mau e negligente servo"? Aquele que não conhecia o coração de seu mestre, o caráter de seu mestre, o amor de seu mestre. "Mas, chegando também o que recebera um talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste; e, atemorizado, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe: Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Devias então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros. Tirai-lhe pois o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos. Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado. Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes".

Quão terrível e solene! Que imenso contraste entre os dois servos! Um conhece, ama, confia em seu senhor e o serve. O outro esconde, teme, desconfia e não faz coisa alguma. Um entra no gozo do seu senhor, o outro é lançado nas trevas exteriores, um lugar de pranto e ranger de dentes. Quão solene! Quão persuasivo para a alma é isso tudo! E quando é que tudo se revela? Quando o Mestre volta!

[Nota - Podemos acrescentar, em conexão com as observações feitas sobre o ministério, que todo cristão tem seu lugar e obra específica para desempenhar. Todos são solenemente responsáveis diante do Senhor em saber seu lugar e ocupá-lo, em conhecer seu trabalho e executá-lo. Trata-se de uma verdade clara, prática e plenamente confirmada pelo princípio sobre o qual temos insistido, a saber, que todo ministério e toda obra deve ser recebida das mãos do Mestre, executada sob Sua supervisão e em plena consciência de Sua vinda. Estas coisas nunca devem ser esquecidas.]