A CRISTANDADE

Que pensamentos e sentimentos diversos são despertados na alma pelo simples ouvir da palavra "cristandade"! Trata-se de uma palavra terrível. Ela coloca diante de nós, de uma só vez, aquela imensa massa de pessoas professas e batizadas que se denominam a si mesmos Igreja de Deus, mas que não são; que dão a si mesmas o título de cristianismo, mas não são. Cristandade é uma terrível e sombria anomalia. Não é uma coisa nem outra.

Não é judeu, nem gentio, nem Igreja de Deus. Trata-se de uma misteriosa mistura corrompida, uma deformação espiritual, a obra prima de Satanás, o corruptor da verdade de Deus e destruidor de almas humanas, uma armadilha, um engano, uma pedra de tropeço, a mais sombria mancha moral no universo de Deus. Trata-se da corrupção de nada menos do que aquilo que há de melhor e, por isso, é a pior das corrupções. Trata-se daquilo que Satanás fez a partir do cristianismo professo. É, de longe, pior que o judaísmo, pior que todas as mais sombrias formas de paganismo. Por possuir uma luz mais elevada e privilégios mais ricos, isto a torna a profissão mais elevada e faz com que ocupe o mais eminente lugar. Finalmente, é para essa horrível apostasia que estão reservados os mais pesados juízos de Deus — a mais amarga borra da taça de Sua justa ira. Há, bendito seja Deus, alguns poucos nomes na cristandade que, por graça, não contaminaram suas vestes. Há algumas brasas vivas entre suas cinzas inertes — pedras preciosas entre o horrível entulho. Todavia, no que diz respeito à massa da profissão cristã à qual o termo cristandade se aplica, nada pode ser mais consternador, quer pensemos em sua condição atual ou em seu destino futuro. Duvidamos que os cristãos, de um modo geral, tenham uma percepção clara do verdadeiro caráter e inevitável ruína daquilo que os cerca. Se tivessem, ficariam preocupados e sentiriam a necessidade premente de se manterem à parte, em santa separação, dos caminhos da cristandade, em um claro testemunho contra seu espírito e princípios.

Mas vamos voltar ao profundo discurso de nosso Senhor no Monte das Oliveiras, no qual, como já observamos, Ele trata da questão da profissão cristã. Ele faz isso em três parábolas distintas, a saber, a do servo, das dez virgens e dos talentos. Em cada uma e em todas vemos as mesmas duas coisas que foram mostradas acima, o genuíno e o espúrio, o verdadeiro e o falso, o brilhante e o sombrio, aquilo que é de Cristo e aquilo que é de Satanás, aquilo que pertence ao Céu e aquilo que emana do inferno.

Devemos olhar de relance para as três parábolas que contêm, apesar de sua brevidade, um imenso manancial de ensino prático e dos mais solenes. Abram em Mateus 24:45-47. "Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos digo que o porá sobre todos os seus bens".

Aqui, portanto, temos definida a fonte e objetivo de todo ministério na casa de Deus. "Que o seu senhor constituiu sobre a sua casa". Esta é a fonte. "Para dar o sustento a seu tempo". Este é o objetivo. Estas coisas são da mais alta importância e dignas da mais profunda atenção do leitor. Todo ministério na casa de Deus, seja nos dias do Antigo ou do Novo Testamento, é por ordenação divina. Não existe nas Escrituras algo como uma autoridade humana ordenando alguém para o ministério. Tampouco existe algo como um ministério auto constituído. Ninguém além de Deus pode fazer ou ordenar um ministro, qualquer que seja seu tipo ou qualificação. Assim, nos tempos do Antigo Testamento, Jeová ordenou Aarão e seus filhos para o sacerdócio e, se um estranho pretendesse se infiltrar nas funções do santo ofício, deveria ser condenado à morte. Nem mesmo o próprio rei ousava tocar no incensório sacerdotal, pois nos é dito de Uzias, rei de Judá, que "havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração até se corromper; e transgrediu contra o Senhor seu Deus, porque entrou no templo do Senhor para queimar incenso no altar do incenso. Porém o sacerdote Azarias entrou após ele, e com ele oitenta sacerdotes do Senhor, homens valentes. E resistiram ao rei Uzias, e lhe disseram: A ti, Uzias, não compete queimar incenso perante o Senhor, mas aos sacerdotes, filhos de Arão, que são consagrados para queimar incenso; sai do santuário, porque transgrediste; e não será isto para honra tua da parte do SENHOR Deus... Assim ficou leproso o rei Uzias até ao dia da sua morte" (2 Cr 26:16-21).

Tal foi o solene resultado — a terrível consequência de alguém ousar se intrometer naquilo que era uma ordenação totalmente divina. Acaso isto não tem algo a dizer à cristandade? Certamente. É algo que emite uma nota de alerta, que diz à Igreja professa, em alto e bom som, para tomar cuidado com a intromissão humana em uma área que pertence apenas a Deus. "Porque todo o sumo sacerdote, tomado dentre os homens, é constituído a favor dos homens [e não por homens] nas coisas concernentes a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados... e ninguém toma para si esta honra, senão o que é chamado [não por homens, mas] por Deus, como Arão" (Hb 5).

Tampouco estava este princípio de ordenação divina restrito ao santo e elevado ofício do tabernáculo. Homem algum ousava colocar sua mão na menor parte que fosse daquela estrutura sagrada a menos que tivesse autoridade recebida diretamente de Jeová. "Depois falou o Senhor a Moisés, dizendo: Eis que Eu tenho chamado por nome a Bezalel, o filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá" (Ex 31). E nem Bezalel poderia escolher seus companheiros no trabalho, ou ordenar quem quisesse para trabalhar, do mesmo modo como não poderia ter escolhido ou ordenado a si mesmo. Não, isso também era uma prerrogativa divina. "E eis que eu", diz Jeová, "tenho posto com ele a Aoliabe". Assim tanto Aoliabe como Bezalel receberam sua comissão diretamente do próprio Jeová, a única fonte de toda autoridade ministerial.

E nem podia ser diferente no caso do ministério e do ofício profético. Só Deus poderia fazer, preparar e enviar um profeta. Oh, mas havia aqueles dos quais Jeová precisava dizer: "Não mandei esses profetas, contudo eles foram correndo" (Jr 23:21). Eram pessoas não consagradas se intrometendo no campo da profecia, assim como aqueles que se intrometiam no ofício do sacerdócio. Todavia, todos atraíram para si mesmos o juízo de Deus. Será que este grande princípio mudou? Acaso o ministério foi tirado de seu antigo fundamento? Porventura o manancial de águas vivas foi desviado de sua divina fonte? Será que esta instituição tão gloriosa e preciosa foi despojada de sua sublime dignidade? Seria possível que, na época do Novo Testamento, o ministério tivesse sido rebaixado de sua divina excelência? Teria ele se transformado numa mera ordenação humana? Poderia alguém ordenar seu companheiro, ou ordenar a si próprio, para qualquer ministério na casa de Deus?

Que resposta devemos dar a estas perguntas? Sem dúvida alguma, e graças a Deus por isso, nenhuma outra resposta há senão um claro e enfático Não! O ministério era, é e sempre será divino; divino em sua fonte, divino em sua natureza, divino em cada princípio e aspecto. "Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos" (1 Coríntios 12:4-6). "Mas agora Deus colocou os membros no corpo, cada um deles como quis... E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas" (1 Coríntios 12:18, 28). "Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo. Por isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens... E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4:7-13).

Eis a grande fonte de todo ministério na Igreja de Deus, do primeiro ao último — do alicerce estabelecido em graça, até a pedra do topo, em glória. Não vem do homem e nem é ordenado pelo homem, mas é de Jesus Cristo, e de Deus Pai que O ressuscitou dentre os mortos, e no poder do Espírito Santo (veja Gálatas 1). Não há nas Escrituras qualquer coisa referente a algum tipo de autoridade humana em qualquer área do ministério na Igreja. Se for uma questão de dom, está enfaticamente declarado que se trata de dom de Cristo. Se for uma questão de posição ordenada, nos é dito, com igual clareza e ênfase, que Deus coloca os membros. Se for uma questão de responsabilidade local, seja ela de ancião ou diácono, trata-se de uma designação exclusivamente divina, exercida por mão dos apóstolos ou daqueles por eles delegados.

Tudo isso está tão claro, tão definido, tão palpável nas páginas das Escrituras que a única coisa que se pode dizer é: "Como lês?". E quanto mais penetramos sob a superfície — quanto mais somos guiados pelo Espírito Eterno nas mais preciosas e profundas regiões da inspiração — mais convencidos ficaremos de que o ministério, em cada uma de suas áreas e aspectos, é divino em sua fonte, natureza e princípios. A verdade a este respeito resplandece em todo o seu fulgor nas Epístolas, mas temos sua essência nas palavras de nosso Senhor em Mateus 25:45: "Que o seu senhor constituiu sobre a sua casa". A casa pertence ao Senhor e somente Ele pode designar Seus servos, o que Ele faz conforme Sua vontade soberana.

Igualmente claro é o assunto do ministério, conforme é declarado na parábola e desenvolvido nas Epístolas. "Para dar o sustento a seu tempo". "Para edificação do corpo de Cristo" — "para que a igreja receba edificação". É isto que está junto ao terno coração de Jesus. Ele queria que Sua casa fosse aprimorada, que Sua Igreja fosse edificada, que Seu corpo fosse alimentado e cuidado. Para este fim, Ele deu dons e os mantêm na Igreja, e irá mantê-los até que não sejam mais necessários.

Mas, oh!, existe um lado sombrio nesse quadro. Devemos estar preparados para isso, já que temos diante de nós o quadro da cristandade. Se existe um servo fiel, sábio e bendito, existe também um servo mau que, no seu coração diz: "O meu senhor tarde virá". Preste atenção nisto. É no coração do servo mau que o pensamento da demora da vinda tem sua origem.

E qual é o resultado? Ele começa "a espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios". Não precisamos comentar o modo terrível como isso tem sido retratado na história da cristandade. Ao invés de um verdadeiro ministério fluindo da Cabeça ressuscitada e glorificada nos céus, promovendo a edificação do corpo, a bênção das almas e a prosperidade da casa, temos uma falsa autoridade clerical, um governo arbitrário, se assenhoreando da herança de Deus, numa ávida busca pela riqueza e poder seculares, pela permissividade mundana e satisfação dos próprios desejos, exaltação pessoal e domínio sacerdotal das mais variadas e imagináveis formas e resultados.

O leitor fará bem se aplicar seu coração em compreender estas coisas. Para isto deverá apreender, com clareza e poder, a diferença entre clericalismo e ministério. O primeiro não passa de pretensão humana; o último é uma instituição puramente divina. O primeiro tem sua fonte no coração do homem mau; o último provém de um Salvador ressuscitado e exaltado que, depois de ressuscitado dentre os mortos, recebeu dons para serem dados aos homens e os derrama sobre Sua Igreja conforme a Sua própria vontade. O primeiro é verdadeiramente um flagelo e maldição; o último, uma bênção divina dada aos homens. Este, em sua essência, flui primorosamente do céu e para lá retorna; aquele, flui do inferno que é a sua origem e é para lá que retorna.

Tudo isso é extremamente solene e deveria exercer uma poderosa influência em nossa alma. Está chegando o dia quando Cristo, o Senhor, irá tratar com justiça sumária tudo aquilo que o homem ousou estabelecer em Sua casa. Não falamos aqui de indivíduos — apesar de ser algo muito sério e terrível alguém praticar ou se envolver com aquilo sobre o que um julgamento tão medonho está para cair. Falamos de um sistema — um grande princípio que se espalha, em uma corrente profunda e sombria, por toda a extensão da Igreja professa — falamos do clericalismo e do poder sacerdotal, em todas as suas formas e ramificações.

É contra essa coisa terrível que solenemente alertamos nossos leitores. Nenhuma linguagem humana seria capaz de descrever o mal que há nisso, tampouco pode a linguagem humana expor adequadamente a profunda bênção do genuíno ministério na Igreja de Deus. O Senhor Jesus não apenas concede os dons ministeriais, mas, em Sua maravilhosa graça, recompensará abundantemente o exercício fiel e diligente desses dons. Todavia, no que diz respeito àquilo que o homem estabeleceu, lemos acerca de seu destino nestas veementes palavras: "Virá o senhor daquele servo num dia em que o não espera, e à hora em que ele não sabe, e separá-lo-á, e destinará a sua parte com os hipócritas; ali haverá pranto e ranger de dentes".

Que o gracioso Senhor possa livrar Seus servos e Seu povo de qualquer participação nessa grande impiedade que tem penetrado até mesmo no seio daquilo que se denomina a Igreja de Deus. E, por outro lado, que Ele possa levá-los a compreender, a apreciar e a exercitar aquele verdadeiro, precioso e divino ministério que emana de Si próprio e é designado, em Seu infinito amor para a verdadeira bênção e crescimento dessa Igreja que é tão cara ao Seu coração. Enquanto buscamos nos manter longe do mal do clericalismo (como certamente devemos fazer), corremos o risco — deveras um grande risco — de cairmos no extremo oposto, que é o de desprezar o ministério.

Isto deve ser cuidadosamente evitado. Devemos sempre ter em mente que o ministério adequado à Igreja é o ministério vindo de Deus. Sua fonte é divina. Sua natureza é celestial e espiritual. Seu objetivo é reunir, é edificar a Igreja de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo concede os diversos dons — evangelistas, pastores e mestres ou doutores. É dEle o grande reservatório de dons espirituais. Ele nunca abriu mão disso e nem abrirá. Apesar de tudo aquilo que Satanás tem feito na Igreja professa; apesar de todos os feitos daquele "servo mau"; apesar de toda a pretensa usurpação de autoridade do homem que de forma alguma lhe pertence; apesar de tudo isso, nosso Senhor ressuscitado e glorificado tem as "sete estrelas". É dEle que provêm todos os dons de ministério, todo o poder e autoridade. Só Ele pode fazer de alguém um ministro. Se Ele não conceder um dom, não pode existir um ministério genuíno. Pode existir a vã pretensão — a usurpação culposa, a simulação vazia, o discurso inútil — mas não haverá um átomo sequer de ministério verdadeiro, divino e terno, exceto onde nosso soberano Senhor quiser conceder o dom. E até mesmo onde Ele concede o dom, esse dom deve ser "despertado" e diligentemente cultivado, caso contrário o "aproveitamento" não será "manifesto a todos". O dom deve ser exercitado no poder do Espírito Santo, ou não promoverá o objetivo para o qual foi divinamente designado.

Mas estamos apenas antecipando o que ainda está para nos ser apresentado na parábola dos talentos, por isso terminaremos aqui simplesmente lembrando o leitor que o grave assunto com o qual nos ocupamos tem ligação direta com a vinda de nosso Senhor, ainda mais considerando que todo ministério genuíno é exercido tendo em vista aquele grande e glorioso evento. E não apenas isto, mas aquela imitação, aquela coisa corrupta e má, será judicialmente tratada quando Cristo, o Senhor, surgir em Sua glória.