AS DUAS RESSURREIÇÕES

Pode ser que alguns de nossos leitores se sintam atemorizados pelo título desta seção. Acostumados, desde a mais tenra idade, a encarar esta grande questão pelo prisma dos padrões definidos pela cristandade para a doutrina e suas confissões de fé, a ideia de duas ressurreições jamais passou por suas mentes. Todavia, as Escrituras falam, nos termos mais claros e inequívocos, de uma "ressurreição da vida" e uma "ressurreição da condenação" — duas ressurreições, distintas em caráter e distintas no tempo.

E não apenas isto, mas as Escrituras nos informam que pelo menos mil anos passarão entre as duas. Se os homens ensinam de outra maneira — se criam sistemas religiosos e estabelecem credos e confissões de fé contrários ao ensino direto e claro das Sagradas Escrituras — deverão prestar contas disso ao seu Senhor, assim como todos os que se colocam sob a direção desses homens. Mas lembre-se, leitor, de que se trata de um dever sagrado, nosso e de vocês, dar ouvidos apenas à autoridade da Palavra de Deus e nos sujeitarmos, em absoluta submissão, aos seus santos ensinamentos. Vamos então, de forma reverente, inquirir o que dizem as Escrituras sobre o assunto indicado no título deste artigo? Que o Espírito de Deus nos guie e instrua! Devemos inicialmente citar aquela notável passagem em João 5: "na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a Minha palavra, e crê nAquele que Me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão. Porque, como o Pai tem a vida em Si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em Si mesmo; e deu-Lhe o poder de exercer o juízo, porque é o Filho do homem. Não vos maravilheis disto; porque vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a Sua voz. E os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a ressurreição da condenação".*

[* O leitor da versão inglesa precisa saber que em toda a passagem de João 5:22-26 as palavras "juízo", "condenação" e "perdição" aparecem no original como uma mesma palavra, simplesmente "julgamento", de krisis, que significa o processo, não o resultado. É uma pena que a Authorized Version não tenha usado a palavra deste modo em todo o texto. Isto teria tornado o ensino da passagem muito mais claro. É com extrema relutância que nos aventuramos a fazer sugestões para nossa inigualável versão inglesa da Bíblia, mas às vezes é absolutamente necessário que isto seja feito para o bem da verdade e de nossos leitores. Quanto à forma como é apresentado o [versículo 24(http://bibliaonline.com.br/acf/jo/5/24)], a conclusão é a mesma, quer digamos "condenação" ou "julgamento", uma vez que se há um julgamento seu resultado deve ser uma condenação. Mas por que não foram mais precisos?]

Portanto, temos indicadas aqui, da forma mais inequívoca, as duas ressurreições. É verdade que nesta passagem elas não estão diferenciadas quanto ao tempo, mas sim quanto ao caráter. Temos uma ressurreição da vida e uma ressurreição da condenação, e nada poderia ser mais distinto do que isto. Não existe um fundamento sequer que permita construir a teoria de uma ressurreição geral. A ressurreição dos crentes será seletiva; ela ocorrerá com base no mesmo princípio e compartilhará do mesmo caráter da ressurreição de nosso bendito e adorável Senhor; será uma ressurreição dentre os mortos. Será um ato de poder divino, fundamentado na redenção completa, através da qual Deus irá intervir a favor de seus santos que dormem e ressuscitá-los de entre os mortos, deixando o restante dos mortos em suas sepulturas por mil anos (Ap 20:5).

Há uma interessante passagem em Marcos 9 que derrama intensa luz sobre este assunto. os versículos iniciais contêm o registro da transfiguração e, em seguida, lemos: "E, descendo eles do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, até que o Filho do homem ressuscitasse dentre os mortos. E eles retiveram o caso entre si, perguntando uns aos outros que seria aquilo, ressuscitar dentre [ek, dentre] os mortos" (Mc 9:9, 10).

os discípulos sentiam que havia algo especial, algo totalmente além da ideia ortodoxa corrente da ressurreição dos mortos, e realmente tinham razão, embora na época não tivessem o entendimento disso. Era algo que naquele momento estava além do seu campo de visão.

Vamos abrir em Filipenses 3 e escutar atentamente as aspirações de alguém que conheceu e desfrutou profundamente desta grande doutrina cristã, e afetuosamente guardou no coração esta esperança gloriosa e celestial. "Para conhecê-Lo, e à virtude da Sua ressurreição, e à comunicação de Suas aflições, sendo feito conforme à Sua morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos" [Exanastasin] (Fp 3:10, 11).

Basta uma breve reflexão para convencer o leitor de que o apóstolo não está aqui se referindo à grande e ampla verdade da "ressurreição dos mortos", ainda que cada um deva ressuscitar. Mas havia algo específico diante do coração daquele querido servo de Cristo, a saber, "uma ressurreição dentre os mortos" — uma ressurreição seletiva — uma ressurreição que segue o modelo da ressurreição de Cristo. Era esta que ele buscava continuamente. Tratava-se da bendita e radiante esperança que brilhava em sua alma e o animava em meio às tristezas e provas, labores e dificuldades, turbulências e conflitos de sua extraordinária carreira.

Mas alguém poderia perguntar: Será que o apóstolo sempre usa esta pequena e peculiar palavra (ek) quando fala de ressurreição? Nem sempre. Abra, por exemplo, em Atos 24:15: "Tendo esperança em Deus, como estes mesmos também esperam, de que há de haver ressurreição de mortos, assim dos justos como dos injustos". Aqui não há qualquer palavra que indique o lado cristão ou celestial do assunto, possivelmente pela simples razão de que o apóstolo estivesse falando àqueles que eram totalmente incapazes de compreender a esperança que cabe ao cristão — mais incapazes até que os discípulos em Marcos 9. Como poderia ele fazer confidências na presença de homens como Tértulo, Ananias e Félix? Como poderia falar a eles de sua própria e acalentada esperança específica? Não, ele só poderia se ater à grande e ampla verdade da ressurreição que era comum a todos os judeus ortodoxos. Se tivesse falado de uma "ressurreição dentre os mortos", não poderia ter acrescentado a expressão "como estes mesmos também esperam", pois eles não "esperavam" qualquer coisa do gênero.

Mas, oh! que contraste entre aquele precioso servo de Cristo, defendendo-se de seus acusadores em Atos 24 e expondo seu coração aos seus amados irmãos em Filipenses 3! A estes ele podia falar da verdadeira esperança cristã na plena luz que a glória de Cristo derrama sobre o assunto. Podia dar vazão aos seus pensamentos, sentimentos e aspirações mais íntimos provenientes de seu imenso e amoroso coração que palpitava pela ressurreição da vida na qual ele ficará satisfeito quando despertar à semelhança de seu bendito Senhor.

Mas devemos retornar por alguns instantes à nossa primeira passagem em João 5. Talvez o fato de nosso Senhor utilizar a palavra "hora" ao falar das duas classes apresente certa dificuldade para alguns de nossos leitores entenderem a verdade da esperança cristã da ressurreição. Indaga-se como pode existir um período de mil anos entre as duas ressurreições, quando o Senhor nos afirma expressamente que tudo deve ocorrer dentro dos limites de uma hora. A esta questão temos uma resposta dupla. Em primeiro lugar, encontramos nosso Senhor fazendo uso da mesma palavra "hora" no versículo 25, quando fala da grande e gloriosa obra de vivificar os mortos. "Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão".

Ora, aqui temos uma obra que tem estado em progresso por quase dezenove longos séculos. Durante todo esse tempo, referido aqui como uma "hora", a voz de Jesus, o Filho de Deus, tem sido ouvida chamando almas preciosas da morte para a vida. Se, por conseguinte, no mesmo discurso nosso Senhor usou a palavra "hora" ao falar de um período que já se estende por quase dois mil anos, que dificuldade pode existir em aplicar a palavra a um período de mil anos? Certamente nenhuma, segundo a nossa opinião.

Todavia, se ainda assim permanecer qualquer dificuldade, ela deve ser completamente atendida pelo testemunho direto do Espírito Santo em Apocalipse 20, onde lemos: "Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se acabaram. Esta é a primeira ressurreição.

Bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele mil anos" (Apocalipse 20:5, 6). Isto resolve a questão completamente e de uma vez por todas para todos os que desejam ser ensinados exclusivamente pelas Sagradas Escrituras, como todo cristão deveria desejar. Haverá duas ressurreições, a primeira e a segunda, e um período de mil anos entre elas. Da primeira fazem parte todos os santos do Antigo Testamento — citados em Hebreus 12 como espíritos dos justos aperfeiçoados — então a Igreja dos primogênitos e, finalmente, todos os que serão mortos durante a "grande tribulação" e durante todo o período entre o arrebatamento dos santos e a aparição de Cristo em juízo, quando descer sobre a besta e seus exércitos em Apocalipse 19.

À última ressurreição, por sua vez, pertencem todos os que morreram em seus pecados, desde os dias de Caim em Gênesis 4 até o último apóstata durante a glória milenial em Apocalipse 20.

Quão solene é tudo isso! Quão real! Como domina a alma! Se nosso Senhor viesse hoje à noite, que cena seria desencadeada em todos nossos cemitérios e sepulcros! Que língua, que pena poderia descrever — que coração poderia conceber — as tremendas realidades desse momento? Há milhares de túmulos onde o pó dos mortos em Cristo jaz misturado ao pó dos mortos sem Cristo. Em muitos jazigos familiares pode sem encontrado o pó de ambos. Bem, então quando a voz do arcanjo for ouvida, todos os santos que dormem ressuscitarão de seus túmulos, deixando para trás aqueles que morreram em seus pecados para permanecerem nas trevas e no silêncio do sepulcro por mil anos. Sim, leitor, tal é o testemunho simples e direto da Palavra de Deus. É verdade que ele não entra em muitos detalhes singulares e nem procura alimentar algum tipo de imaginação mórbida ou curiosidade inútil. Todavia, esse testemunho estabelece o solene e grave fato de uma primeira e uma segunda ressurreição — uma ressurreição da vida e glória eternas, e uma ressurreição da condenação e miséria eternas. Não existe, de forma alguma, algo como uma ressurreição geral — uma ressurreição comum a todos simultaneamente. Devemos abandonar completamente tal ideia, como muitas outras que recebemos e nas quais fomos instruídos desde a mais tenra idade — ideias que cresceram com nosso crescimento e amadureceram com nossa maturidade, até ficarem totalmente incorporadas à nossa constituição mental, moral e religiosa, de tal modo que abandoná-las é como ser desmembrado ou arrancar a carne de nossos ossos. Todavia, isto é algo que precisa ser feito, se desejamos realmente crescer no conhecimento da revelação divina. Não existe um obstáculo maior para entrarmos nos pensamentos de Deus do que termos nossa mente cheia com nossas próprias ideias ou com pensamentos de homens. Assim, por exemplo, em referência a este assunto, quase todos nós já professamos, ao menos uma vez na vida, a opinião de que todos ressuscitarão juntos, tanto crentes como incrédulos, e que todos se apresentarão juntos para serem julgados. Todavia, quando nos voltamos como criancinhas para as Escrituras, não há nada mais claro, mais simples, mais explícito do que seu ensino acerca desta questão. Apocalipse 20:5 nos ensina que haverá um intervalo de mil anos entre a ressurreição dos santos e a ressurreição dos ímpios.

De nada adianta falarmos de uma ressurreição de espíritos. Na verdade, isto é até um grande absurdo, pois considerando que espíritos não podem morrer, também não podem ser ressuscitados. Igualmente absurdo é falar de uma ressurreição de princípios. Não existe tal coisa nas Escrituras. A linguagem é clara como o cristal: "Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se acabaram. Esta é a primeira ressurreição" (Ap 20:5). Por que alguém iria querer desprezar toda a força que tem esta passagem? Por que não se submeter a ela? Por que não se livrar, de uma vez por todas, de todas aquelas velhas ideias que insistimos em acalentar, para recebermos com submissão a Palavra que é tão incisiva?

Leitor, não parece claro a você que, se as Escrituras falam de uma primeira ressurreição, é porque não irão todos ressuscitar juntos? Por que iriam dizer "bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição" se todos ressuscitassem ao mesmo tempo?

Para nós, na verdade, parece impossível que uma mente livre de preconceitos no estudo do Novo Testamento se apegue à teoria de uma ressurreição geral. Trata-se de uma questão relacionada à glória de Cristo, a Cabeça, que Seus membros tivessem uma ressurreição específica — uma ressurreição como foi a Sua — uma ressurreição dentre os mortos. E é exatamente o que terão. "Eis aqui vos digo um mistério: na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor" (1 Coríntios 15:51-58).