Terceira parte

A última parte deste nosso importante assunto terminou com uma pergunta: Como é que são tão poucos os que entram por esta senda de livramento e santa liberdade? A resposta a esta pergunta nos leva à próxima parte de nosso assunto. A questão pode ser colocada da seguinte maneira, e procuraremos dar uma atenção especial a ela: Enquanto estas verdades podem ser doutrinariamente compreendidas, elas devem, necessariamente, ser aprendidas na prática, se é que se deseja desfrutar do poder delas. Há quatro coisas que devem ser adquiridas por meio da experiência, a fim de entrarmos no bendito gozo delas.

A primeira, e de grande importância, é que o caráter da carne deve ser conhecido na prática. Deus nos declarou isto até no Antigo Testamento (Gênesis 6.11-13; 8.21), e no Novo Testamento apresentou isto vez após outra; e devemos receber o Seu testemunho, aceitando-o sem hesitação. Mas, repetimos, a menos que tenhamos conhecido a natureza da carne por experiência própria, estaremos sempre, em maior ou menor medida, esperando que algo de bom possa vir dela. É por esta razão que, com frequência, o santo pensa assim: ‘Da próxima vez vou conseguir fazer melhor’; ou, ‘Se ao menos eu tivesse outra chance, poderia evitar este erro ou aquele fracasso’. Reflexões assim só podem ser geradas pelo total esquecimento da real e incurável natureza da carne; pois se nossa natureza é integralmente corrupta, como poderia ela agir, no futuro, de modo diferente do passado? Devemos, isto sim, buscar o Senhor para nos guardar, por Sua graça, de pecados cometidos no passado; e se já detectamos o que é a carne, já nos conscientizamos, de uma vez por todas, de que se não formos guardados por divino poder, continuaremos a fazer, no futuro, exatamente o mesmo que fazíamos no passado.

Temos agora em Romanos 7 o caso de alguém que, tendo vida, porém ignorando a graça completa de Deus em redenção, está tentando, sob a lei, produzir algum fruto para Deus. E qual a conclusão a que ele chega? Que o bem que deseja, não faz, mas o mal que não quer, esse faz. E ele diz ainda que: "Se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim" (Rm 7.15-17). Isto é, ele descobriu que a carne irá (num caso como o dele) seguir o seu próprio curso, e, por ter ela o seu próprio curso, é sempre pecado. Por isso nos diz: “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7.18). Ele aprendeu a lição, e daí em diante já não irá esperar nada vindo da carne, a não ser o mal. E esta é, com certeza, uma bendita conclusão para uma alma chegar.

Há agora duas maneiras de aprendermos a mesma coisa: na presença de Deus, e em comunhão com Deus, ou na presença de Satanás, por meio do fracasso e do pecado. O próprio Paulo poderia ser visto como um exemplo da primeira. Como judeu, ele foi tão moralmente correto que, guiado pelo Espírito de Deus, pôde mais tarde dizer de si mesmo que, "segundo a justiça que há na lei", ele era “irrepreensível” (Fp 3.6). Portanto ele tinha tudo para pensar que havia algo de bom em si mesmo. Como disse, “se algum outro cuida que pode confiar na carne, ainda mais eu” (Fp 3.4). Mas quando a ele foi revelado um Cristo glorificado, houve uma total reviravolta em seu ser. Ele passou então a enxergar tudo sob a verdadeira luz, a luz da glória de Deus que resplandeceu na face de Cristo, e instantaneamente percebeu a inutilidade da carne e de todos os seus mais belos feitos. Ele pôde então dizer: “O que para mim era ganho reputei- o perda por Cristo. E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como esterco, para que possa ganhar a Cristo” (ou “ter a Cristo como meu ganho”) (Fp 3.7,8). Sua primeira avaliação foi daquilo que ocupava o primeiro lugar em sua vida e, como consequência, ele rejeitou a carne, em todas as suas formas, como algo definitivamente mau. E o fez sabendo que, assim como a figueira no evangelho, por mais que a carne fosse educada e nutrida, jamais poderia produzir qualquer fruto para Deus.

Pedro é um exemplo de alguém que aprende, por meio do pecado, o caráter da carne. Homem sincero e impetuoso, Pedro amava seu Mestre com ardente afeição. Por esta razão, quando o Senhor avisou Seus discípulos, dizendo: "Todos vós esta noite vos escandalizareis em Mim; porque escrito está: Ferirei o Pastor, e as ovelhas se dispersarão", Pedro respondeu: “Ainda que todos se escandalizem, nunca, porém, eu” (Mc 14.27-29). Segundo dizia, ele estava pronto a dar sua vida pelo seu Mestre (João 13). E o que foi que produziu essa inabalável confiança em sua própria fidelidade? Confiança na carne - em sua própria afeição. Mas qual foi o resultado? Ah! que comentário esse de nossa natureza má - Pedro foi descendo, passo a passo, no profundo abismo da completa negação de Seu Senhor. Ele tinha sido avisado e admoestado, mas a carne mostrou a corrupção que lhe é própria, arrastando Pedro pela lama do pecado e da iniquidade. A queda de Pedro foi revertida em glória para o Senhor, e em bênção para Pedro, mas há para a nossa instrução, em sua queda e humilhação, a mais clara revelação do fato de que na carne, mesmo na carne de um verdadeiro e devotado discípulo, não habita bem algum.

Portanto qualquer pessoa que deseja conhecer o que é a graça de Deus em nossa redenção, precisa também aprender, de uma destas duas maneiras, a mesma lição. Se não a aprendermos estaremos sempre esperando que algo de bom venha de nós mesmos, e seremos sempre desapontados. Uma árvore ruim deve, necessariamente, produzir fruto ruim, e quando reconhecemos esta verdade na prática, e a ela nos sujeitamos, tiramos a nós próprios de diante de nossos olhos e nada mais esperamos, a não ser aquilo que vem do Senhor. A falta de vigilância poderá eventualmente levar a carne a se manifestar, arrastando-nos para o pecado, mas não estaremos sendo enganados. Teremos aprendido nossa lição; e enquanto estivermos julgando-nos a nós mesmos na presença de Deus por nossa falta, buscaremos graça para sermos mais vigilantes no futuro.

Amado leitor, queremos, com toda a sinceridade, insistir com você neste ponto, pois enquanto você não tiver passado por esta experiência, não poderá nunca ter uma paz constante. Feche seus olhos a esta verdade, e você estará, como os filhos de Israel no deserto, expondo-se às provações, castigos e toda sorte de fracassos. Todavia, se você aceitar o testemunho de Deus acerca da carne, e deste modo aprender esta verdade em seu próprio ser, adotando como hábito ficar sempre do lado dEle, mesmo que isto signifique colocar-se contra si próprio, você estará entrando no alvorecer de um novo dia - um dia caracterizado pelo sol da graça e do gozo, não importa quais sejam as tribulações e as tristezas; um dia que será passado junto com Deus.

A segunda lição a ser aprendida é que não temos forças - somos completamente impotentes - no conflito contra a carne. Como diz o apóstolo, "O querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço" (Rm 7.18,19). E porventura não é esta, amado leitor, a descrição exata da experiência de milhares de pessoas e, talvez, a sua também? O resultado disto é que muitos mergulham em um estado de apática indiferença, quando não de desânimo, a ponto de até mesmo abandonarem qualquer tentativa de remar contra a rápida correnteza que os assola, concluindo que nada mais resta senão se deixarem levar pela correnteza contra a qual não podem lutar. Ah! se as almas fossem honestas, muitas iriam confessar que vivem há anos numa condição assim, uma condição que não traz nenhuma glória a Deus, e nenhuma felicidade a elas próprias. Qual é então a razão disso? Simplesmente a idéia de que tudo depende de seus próprios esforços, ao invés de aceitarem a verdade de que estão completamente sem forças e que, por conseguinte, tudo depende de Deus.

Até o pecador tem que aprender, não só que ele é culpado e ímpio, mas também que é impotente (Romanos 5); e o crente deve, de igual maneira, aprender, não apenas que em sua carne não habita bem algum, mas que ele não pode, de si próprio, fazer uma única coisa boa (Romanos 7). E quando os olhos são abertos pelo Espírito de Deus, descobre-se que esta lição de Deus tem sido ensinada pela longa e ininterrupta série de enganos passados. Você lutou com unhas e dentes vez após outra, com inigualável coragem, mas nunca conquistou uma vitória. Então você entrou de novo na luta, resolvido a vencer, mas, ai! mais uma vez saiu vencido! Pare, então, por um momento, e faça a si mesmo esta simples pergunta: ‘O que foi que aprendi desta triste experiência?’ A resposta é clara como o dia. O inimigo é forte demais para você, de modo que você não pode fazer frente ao poder que ele tem. Mas você poderá perguntar: ‘E será que não podemos ficar mais fortes? Não podemos crescer na graça? E depois que conhecermos melhor o caráter do inimigo, será que não é possível que sejamos bem sucedidos?’ Não hesitamos dizer que a resposta é ‘Não’, pois se você continuar esforçando-se assim, no futuro só colherá derrotas, do mesmo modo como foi no passado. Para o seu caso, no que diz respeito à sua própria força, não há esperança.

Mas se, por outro lado, você aceitar a verdade de sua completa impotência, e chegar deste modo ao fim de suas próprias forças, encontrará descanso para sua alma, pois irá, com isso, compreender que seu auxílio, sua força e seu socorro vêm de fora, e não de dentro; em suma, vêm de Cristo e não de você mesmo. Oh, que inexprimível bênção é chegar a uma descoberta assim! Deixando, a partir de agora, de lutar, você irá conhecer o que é descansar em Outro, e será capaz de cantar com Davi: "O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida; de quem me recearei? (Sl 27.1). Pois se por um lado você chegou a conhecer que é impotente, por outro se regozijará ao descobrir que o Seu poder se aperfeiçoa na fraqueza.

A terceira coisa que se deve conhecer é o fato de que o crente possui duas naturezas: uma que recebeu por intermédio de Adão, a qual é chamada nas Escrituras de carne, homem velho etc.; e a outra que ele recebeu de Deus, por intermédio do novo nascimento. Estas duas naturezas são totalmente antagônicas. Ao falar da segunda, João disse: "Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nele; e não pode pecar, porque é nascido de Deus" (1 João 3.9). E Paulo, falando da primeira, escreve, como já vimos, “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7.18). Seria difícil conceber duas afirmações mais diametralmente opostas, e agora vemos que a alma, que está passando pela experiência detalhada em Romanos 7, aprende a distinguir entre estas duas naturezas tão contrastantes. Lemos que “se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim” (Rm 7.20). Isto é, ele aprendeu a identificar- se com a nova natureza, portanto não diz mais “eu” (compare com Gálatas 2.20 onde Cristo torna-se o “eu” do apóstolo). Ao mesmo tempo ele avalia sua carne, sua velha natureza, como nada além de pecado; e descobre nela a origem de todo o mal que tem sofrido. Tal natureza, embora esteja nele (e permanecerá sempre ali enquanto o crente estiver neste mundo), é agora considerada por ele como um inimigo, como alguém que procura sempre impedi-lo de fazer o que é bom, e que o impele a fazer o mal. E assim ele continua: “Acho então esta lei em mim: que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus (portanto ele desejava fazer o bem). Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.21-23).

Por conseguinte, ele não é apenas impotente na luta contra o inimigo - o pecado que habita em si - mas ele fica ainda pior no conflito, e é subjugado; fica totalmente nas garras e sob o poder de seu adversário. Mesmo assim ele agora aprendeu que o "pecado", a carne, é seu inimigo, e que ele tem prazer na lei de Deus segundo o homem interior. E esta, amado leitor, é uma feliz descoberta; a falta disso fez com que, em todas as épocas, muitas almas piedosas fossem mantidas gemendo sob a servidão, e escrevessem coisas amargas acerca de si mesmas, por suporem ser essa a experiência pela qual lhes era necessário passar por todos os dias de suas vidas. Um exemplo disto são os diários publicados de alguns dos mais devotos servos do Senhor, diários esses que, de um modo geral, não passam de uma auto-análise e uma autocondenação que brota da ocupação com o eu - ao invés de ocuparem-se com Cristo - no vão esforço de erradicarem o mal encontrado dentro de seus próprios corações. E frequentemente culminam na seguinte questão: Se somos filhos de Deus, por que é que acontece isto conosco? Ah! como acontece com muitas pessoas, eles não leram direito Romanos 7; e disso advém que, embora tenham tido seus momentos de gozo na presença e favor de Deus, esses momentos foram alternados com períodos das mais densas trevas e depressão.

Trata-se, portanto, de um bendito ganho quando tomamos conhecimento de que temos duas naturezas, e aprendemos a fazer distinção entre elas. E é ainda mais bendito quando somos levados, em meio às nossas lutas e conflitos, naquilo que compete a nós, a uma irremediável escravidão à lei do pecado que está em nossos membros. É uma experiência dolorosa, porém necessária, pois após passarmos por ela aprendemos a nos colocar a nós mesmos de lado. Por assim dizer, o fim de toda a carne é chegado para nós, como há muito tempo já chegou para Deus; e sabemos agora que é vão o socorro do homem (do eu), que estamos totalmente impotentes e, ai! à mercê de nosso inimigo interno.