Segunda parte
A segunda consequência é a libertação da lei. Assim Paulo escreve que estamos mortos para a lei pelo corpo de Cristo. E também, que estamos agora livres da lei, havendo morrido para aquilo a que nos encontrávamos presos (leia Romanos 7.4-6 e Gálatas 2.19). Como explica o apóstolo, a lei tem domínio sobre um homem apenas enquanto este viver. Havendo morrido com Cristo, estamos emancipados também do poder da lei; e quão bendito é para nós que seja assim, pois todos os que são das obras da lei estão debaixo da maldição (Gálatas 3.10). Este é deveras um evangelho de boas novas para todo crente. Somos todos legalistas por natureza, e nossa tendência ao legalismo permanece conosco depois que nos tornamos filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Isto se encontra, por assim dizer, entretecido na própria malha de nosso ser, de modo que continuamente se manifesta em nossas palavras e ações. O efeito é que muitos conhecem pouco da liberdade com a qual Cristo os libertou, e ficam diariamente gemendo sob uma servidão imposta a si próprios.
Mas você poderá argumentar que não estamos debaixo da lei. os judeus estavam, mas será que o mesmo pode ser dito de crentes dentre os gentios? É certo que não pode ser dito no mesmo sentido dos judeus, mas o princípio da lei é algo tão nativo em nós como no judeu. Por exemplo, quando depois de me converter, sinto que devo amar mais o Senhor, e procuro fazê-lo, ou acho que devo orar melhor, e acabo arrasado ou deprimido quando me vejo incapaz de cumprir um tal dever como gostaria, ou seja, de um modo mais perfeito, encontro-me em princípio tanto sob a lei quanto se encontravam os judeus. A essência da lei reside no "Farás isto ou aquilo", e, por conseguinte, se transformo até os preceitos de nosso bendito Senhor em “Farás isto ou aquilo”, estou colocando meu pescoço sob o jugo da lei. E a partir do momento que faço assim, estou na rota certa para o fracasso, desilusão e intranquilidade de consciência.
Portanto, o que precisamos aprender é que, por meio da associação que, na graça de Deus, temos com a morte de Cristo, estamos libertos tanto da lei como do princípio da lei. Estamos casados com Outro, justamente com Aquele que ressuscitou de entre os mortos a fim de que déssemos fruto (não obras, mas fruto) para Deus. Não há, no cristianismo, "Farás isto ou aquilo", mas sim o que substitui as obras da lei e as obras da carne, ou seja, o bendito fruto do Espírito Santo (Gálatas 5). E este é produzido, não como as obras, ou seja, por esforço humano, mas por divino poder.
A diferença entre estas duas coisas é a maior possível. Sabendo de antemão que o fruto para Deus não pode ser obtido por qualquer esforço ou trabalho vindo de nós, somos libertados de toda expectativa de aguardar algo vindo do eu. Ao mesmo tempo, enquanto aprendemos que o poder capaz de produzir fruto está em Outro (que seguramente está trabalhando por meio do Espírito que habita no Seu povo), nossos olhos são elevados a Ele, na confiança de que Ele irá nos usar para a Sua glória em conformidade com a Sua própria vontade. Assim, ao invés de trabalharmos, apenas confiamos; ao invés de buscarmos fruto vindo de nós mesmos, ansiamos que Cristo possa trabalhar em nós em conformidade com a energia do Seu próprio e divino poder.
Outra consequência é que somos libertos do mundo. O apóstolo, em oposição a certos legalistas que desejavam se ver livres da perseguição e se gloriar na carne, diz: "Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6.14). Como encontramos no Evangelho de João, o mundo foi julgado na morte de Cristo. Sua crucificação foi a completa e cabal condenação do mundo que O rejeitou. Assim Deus julgou moralmente o mundo na cruz; e Paulo, em comunhão com o pensamento de Deus, considerou o mundo como crucificado para si pela cruz, e a si próprio, igualmente, como estando crucificado para o mundo. Ele estava assim completamente liberto do mundo; pois se ambos estavam crucificados, um para o outro, nenhuma atração poderia existir entre eles. O mundo, com todos os seus atrativos e fascínios, já não poderia seduzir alguém que o considerava como já estando moralmente julgado na morte de Cristo. Tampouco teria qualquer atração pelo mundo alguém que se considerava como crucificado por meio da cruz. Vista deste modo, a cruz é uma barreira intransponível entre o cristão e o mundo, e não somente uma barreira, mas também o meio pelo qual o verdadeiro caráter do mundo é detectado e exposto. Deste modo o cristão aprende que a amizade do mundo é inimizade contra Deus, já que sempre vê o mundo em sua relação com a cruz de Cristo.
Existe ainda uma outra consequência que é a libertação do homem. "Se, pois," diz o apóstolo, “estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis (ou estivésseis vivos) no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies?” (Cl 2.20, 21). É o homem religioso que está sendo tratado aqui - o homem religioso, cujo objetivo é a melhoria da carne, mas ao invés de consertá-la ele só a satisfaz. Esta importante passagem ensina que o crente, estando morto com Cristo, está totalmente liberto do homem e de suas reivindicações religiosas. Se as reconhecesse, então teria que tomar o lugar de alguém vivo no mundo e negar o fato de sua associação com a morte de Cristo. O cristão perde de vista o homem - e até mesmo o rejeita - negando sua pretensa autoridade, pois encontra-se sujeito somente a Cristo. Sendo assim, até mesmo nos relacionamentos desta vida, o cristão obedece, seja aos magistrados, senhores ou pais, porque está numa posição de sujeição ao próprio Cristo. É por esta razão que um pobre escravo cristão, quando obedece a seu senhor, está obedecendo a Cristo, o Senhor (Colossenses 3.22-25).
Há, portanto, uma completa libertação para o crente que se mantém como morto com Cristo - há a libertação do pecado, da lei, do mundo e do homem. Pode-se dizer do crente, na linguagem aplicada a Israel, que ele fez cativos aqueles de quem era cativo (Isaías 14.2). Todo inimigo está subjugado, e somente Cristo é reconhecido como Senhor.
Você talvez pergunte que, se isto é verdade, por que é que são tão poucos os que entram por esta senda de livramento e santa liberdade?