Sexta parte

Chegamos agora à terceira coisa que foi mencionada, a saber, a CONSAGRAÇÃO. É evidente que existe em todo lugar o desejo de uma consagração mais completa ao Senhor. E ninguém pode duvidar que, apesar da imensa mistura de erro em meio à verdade nos diversos movimentos de "santidade" que têm surgido, milhares de almas encontraram parcialmente o que buscavam e, por conseguinte, entraram no gozo de uma ampla e crescente bênção espiritual. Deveria, realmente, ser sempre lembrado que Deus atende à alma, não pela medida de sua inteligência, mas de acordo com a necessidade que sente. Portanto, onde quer que santos tenham se reunido com corações sedentos, esperando no Senhor, encontraram ampla resposta aos seus clamores; e muitos entraram, a partir de então, em uma vida de paz e liberdade com Deus. Talvez continuem a se valer de termos que não sejam exatamente escriturísticos, talvez possam não entender exatamente o relacionamento que o Senhor tem com eles, e podem ainda estar ignorantes da plena graça de Deus em redenção, e da bendita esperança da volta do Senhor; todavia o Senhor tem agora um lugar em seus corações, lugar este que Ele nunca havia tido antes, e o Senhor passa a ser, para eles, tanto o Objeto que têm diante de suas almas, como o Centro em torno do qual gravitam, e a consequência disso é de indizível bênção. Com alegria admitimos tudo isso - e o admitimos em toda a sua extensão. O único ponto em que insistimos é a importância, com vistas a uma bênção ainda maior, de se compreender os pensamentos de Deus a respeito da consagração do Seu povo.

Esta é, portanto, a questão a ser agora considerada: O que é CONSAGRAÇÃO? A idéia que prevalece é a de que se trata de nos entregarmos totalmente ao serviço de Deus, em um ato de renúncia-própria. Deveras há ocasiões em que isto pode ser feito por um ato da vontade, para que por meio de uma resolução fixa e constante possamos nos oferecer, a nós mesmos, cabeça, coração e alma, ao Senhor para o Seu próprio uso; e costumam- se organizar reuniões onde as pessoas são exortadas a se dedicarem desta forma ao Senhor. É bem possível que quando uma alma está conscientemente na presença de Deus (e isto pode acontecer em reuniões assim), exista algum impedimento, algum pecado a obstruir, ou algum mau hábito ou associação, que possa ser trazida à luz, e de algum modo confessada e julgada; e não há dúvida de que, em casos assim, haverá uma bênção maior. Mas isto não é consagração; e a questão que permanece é se este modo de colocar-se o eu de lado, ou se um tal ato de renúncia própria a que alguns são levados, é encontrado nas Escrituras.

A primeira coisa a ser observada é que as exortações feitas em reuniões assim supõem existir poder proveniente de nós - nos vêem como se fôssemos competentes para atingir o fim proposto, quando na realidade uma das coisas que temos que aprender, como já vimos em Romanos 7, é que o bem que desejamos fazer, não fazemos; em suma, somos totalmente incapazes de cumprir, em nós e por nós mesmos, o que quer que seja para Deus. Todavia, a pergunta que certamente se fará é se não somos chamados a nos rendermos a Deus, e a apresentarmos os nossos corpos como um sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus como nosso culto racional.

Certamente que sim; mas nenhuma destas passagens dá base para um tal tipo de consagração como o que mencionamos acima. A fim de entendermos isto, vamos examinar um pouco o significado destas passagens. A primeira é encontrada em Romanos 6. A verdade apresentada neste capítulo é de nossa morte com Cristo, e que, como mortos com Cristo, somos justificados do pecado (versículos 1-7). O apóstolo segue então dizendo: "Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com Ele viveremos; sabendo que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre: a morte não mais terá domínio sobre Ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor. Não reine, portanto o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências; nem tão pouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade, mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça. Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça" (Rm 6.8-14). Portanto não somos apenas vistos como mortos com Cristo, e justificados do pecado, mas devemos também nos reconhecer como vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor (já que Cristo morreu de uma vez para sempre para o pecado; e quanto a viver, Ele vive agora para Deus). Portanto, liberto do pecado, o corpo já não se encontra sob o seu domínio; e nos é dito que não devemos mais entregar nossos membros ao pecado como instrumentos de iniquidade, mas a nos entregarmos a Deus, como vivos dentre os mortos, isto é, como aqueles que estão mortos com Cristo, mas que têm uma nova vida nEle como Aquele que ressuscitou da morte.

Em que poder, então, é para isto ser efetuado? No poder da própria vontade? De jeito nenhum, mas devemos nos considerar como mortos; e é por esta razão que é tudo por intermédio do Espírito Santo no poder da nova vida que temos em um Cristo ressurreto. E deveria ser observado que o apóstolo diz expressamente que, ao usar a figura de um servo, seja no que diz respeito ao pecado ou à justiça, ele está falando à maneira dos homens por causa da fraqueza de nossa carne. Na verdade, a questão aqui diz respeito ao nosso corpo - ou nossos membros. Então, por termos parte na morte de Cristo, já não somos mais servos do pecado - estamos libertos dele. O que deve ser feito, então, de nossos membros? A resposta é encontrada na exortação que foi considerada. Que sejam feitos agora instrumentos de justiça para Deus; pois se, por um lado, devemos nos considerar como realmente mortos para o pecado; devemos também, por outro lado, nos considerar como vivos para Deus por intermédio de Cristo Jesus; e a verdade deste capítulo flui deste versículo 11.

A exortação em Romanos 12.1, liga-se à doutrina do capítulo 6; embora o apelo esteja baseado na verdade desenvolvida até o final do capítulo 8. "Rogo-vos pois, irmãos", diz o apóstolo, “pela compaixão de Deus” (Rm 12.1). Compaixão que foi revelada na redenção, a qual temos detalhada nesta epístola. Trazendo-nos à lembrança o que Deus é por nós em Cristo, e o que Ele fez, o apóstolo roga-nos, com base nisto, que apresentemos nosso corpo como um sacrifício vivo - santo, aceitável a Deus, que é o nosso culto racional. Uma vez mais, como no capítulo 6, a exortação refere-se ao nosso corpo - e deve ser lembrado que este mesmo corpo foi emancipado da servidão ao pecado e é agora, conforme o ensino do capítulo 8, habitado pelo Espírito Santo. Isto é suficiente para explicar o que o apóstolo quis dizer. Ao contrário do que faziam os sacerdotes do passado, já não devemos levar um sacrifício morto para colocar no altar de Deus; mas no poder do Espírito Santo, devemos oferecer um sacrifício vivo - de agora em diante, um sacrifício perpétuo; um sacrifício para ser apresentado sempre a Deus enquanto estivermos aqui neste mundo.

Mas, voltamos a perguntar, como é que isto deve ser feito? Será que é por um ato de nossa vontade? Não, isto seria impossível. É pela aplicação da morte - trata-se, na realidade, da verdade de Romanos 8.10. "Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça"; trata-se de Cristo controlando o nosso corpo em lugar de nós mesmos, como pretendemos explicar melhor mais adiante; e isto é um sacrifício tanto santo quanto aceitável a Deus, e nosso culto racional - o reconhecimento daquilo que é devido a Deus no terreno da redenção. Nosso corpo, em outras palavras, pertence a Ele que nos redimiu; mas a aceitação desta verdade irá envolver a sua apresentação a Deus de momento em momento, como um sacrifício vivo; de modo que Deus possa usá-lo agora para Sua própria glória em testemunho de Seu Filho amado.

O entendimento destas passagens irá preparar-nos para compreender o que é realmente a consagração. Com este propósito em vista, sugerimos a leitura de mais duas passagens: uma no Antigo Testamento, e a outra em Romanos 8. Vamos ver primeiro aquela onde está registrada a consagração de Aarão e de seus filhos para o ofício do sacerdócio (Êxodo 29). Sem entrarmos em detalhes, podemos apresentar o significado dos rituais que acompanharam aquele serviço. Eles eram, antes de mais nada, lavados com água (vers. 4), uma figura do novo nascimento - de ser nascido da água e do Espírito (João 3.5); isto é, da aplicação da Palavra à alma por intermédio do Espírito Santo. Em seguida, eles eram colocados sob a eficácia do sacrifício pelo pecado; seus pecados tendo sido, em figura, transferidos para o novilho pela imposição de suas mãos sobre a cabeça deste. Dessa maneira o juízo cai sobre o novilho: o sangue é assim colocado sobre as pontas do altar e a carne do novilho é queimada com fogo fora do arraial (vers. 10-14). Seus pecados são, deste modo, levados embora. Então eles são introduzidos diante de Deus em toda a aceitação do sacrifício pelo pecado (vers. 15-18).

Tudo isso era para qualificá-los para a consagração; e no que vem a seguir temos a consagração propriamente dita. Primeiro, o sangue era colocado sobre a ponta de suas orelhas direitas, nos polegares direitos e no dedo polegar de seus pés direitos; e o resto do sangue devia ser espargido sobre o altar ao redor. Isto é, Deus, em virtude do sacrifício de Cristo, exige, em conformidade com o valor de Seu precioso sangue, a completa devoção de Seus servos e sacerdotes; os quais, em virtude de terem sido colocados sob o valor daquele sangue precioso, devem, a partir de então, escutar, agir, e andar só para Deus. Havendo sido comprados por preço, devem agora glorificar a Deus com seus corpos que pertencem a Ele. E com o sangue, o azeite da unção era também para ser espargido sobre eles e sobre seus vestidos, representando o poder no qual o seu serviço deveria ser executado: não na energia da carne, ou por esforço da vontade, mas unicamente na unção, e pela unção, do Espírito Santo.

É na cerimônia que se segue que temos realmente a verdade da consagração. Todos os nossos leitores devem saber que estes sacrifícios são tipos de Cristo; e à luz deste conhecimento, devem ler o que era feito ao carneiro da consagração. Diferentes partes dele, juntamente com pão untado em azeite e um coscorão de pão asmo, eram colocados nas mãos de Aarão e seus filhos, e apresentados como oferta movida diante do Senhor. Suas mãos eram assim cheias de Cristo - Cristo, em toda a devoção de Sua vida, como é mostrado pelo pão sem fermento (a oferta de manjares); e Cristo em Sua devoção até à morte, conforme testificado pela oferta queimada. Portanto o verdadeiro significado de "consagrar-se" é “encher a mão”, e foi assim que Aarão e seus filhos foram consagrados, por terem tido suas mãos, em figura, cheias com Cristo: e com Aquele que é a única oferta aceitável que poderiam apresentar a Jeová. Aprendemos além do mais que o alimento para aqueles assim consagrados deveria ser as afeições (o peito) de Cristo, e a força (o ombro) de Cristo; pois era só assim que sua consagração podia ser mantida e manifestada.

Passando agora a Romanos 8, encontramos que a consagração ali corresponde exatamente, embora num sentido ainda mais profundo, à verdade de Êxodo 29. "Vós, porém, não estais na carne", diz o apóstolo, “mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dEle. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça” (Rm 8.9,10). No versículo 9 temos a posição cristã como um todo - caracterizada pelo fato do crente possuir o Espírito Santo, e ser por Ele habitado. A expressão é de grande ênfase. Se alguém não tem o Espírito de Cristo - isto é, o Espírito em cujo poder o próprio Cristo andou e agiu quando estava aqui - esse tal não é dEle: esse tal ainda nem está assinalado como alguém que pertence a Cristo. Não importa o que ele seja, não se pode afirmar que alguém seja um cristão, no verdadeiro sentido da palavra, se ele não tiver o Espírito Santo.

Chegamos, portanto, aqui, ao mesmo ponto (apenas com um significado ainda maior) daquele onde os sacerdotes eram ungidos com o azeite, algo que vinha antes e que era preparatório à consagração propriamente dita. Por isso lemos, no versículo seguinte, "se Cristo está em vós", o que é também uma característica do cristianismo (veja Colossenses 1.27). Em outras palavras, o crente não é só habitado pelo Espírito de Deus, mas Cristo está também nele. O Senhor Jesus, falando da época quando o Espírito Santo haveria de vir, diz: “Naquele dia conhecereis que estou em Meu Pai, e vós em Mim, e Eu em vós” (Jo 14.20). Em Romanos 8.1 nos é dito que estamos em Cristo e no versículo 10 é dito que Cristo está em nós, em conformidade com estas palavras de nosso bendito Senhor, as quais só seriam entendidas quando o Espírito Santo viesse. E a verdade de Cristo em nós é a fonte de nossa consagração, ou, como pode também ser colocado, a nossa consagração flui do fato de que Cristo está em nós. Explicamos que pela libertação entramos no descanso, e no poder, e, agora, veremos que a terceira bênção é a consagração.

Chamamos, primeiramente, a atenção para a linguagem usada pelo apóstolo. "Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça" (Rm 8.10). Isto (quando corretamente compreendido) é consagração, e é isto que esperamos, com a ajuda divina, ser capazes de explicar. Antes de nossa conversão, como todos sabemos, governávamos nosso corpo. Ele nos servia conforme nossa vontade, fosse para os deveres, desejos ou prazeres. A vontade de cada um de nós era a força diretriz; e é isto o que o apóstolo quer dizer quando fala que antes éramos servos do pecado (Romanos 6.16,17). Nossa própria vontade (influenciada e escravizada, é verdade, por Satanás usando a carne) era a autoridade suprema. Não éramos homens livres, pois quem comete pecado é servo do pecado (João 8.34), e, ai! nada mais fazíamos senão pecar. Pois o pecado é justamente a independência de Deus, é a ausência do princípio da lei atuando na pessoa, como o Espírito de Deus o denomina em 1 João 3.4 (esta é a melhor tradução para a palavra traduzida como “iniquidade” na versão Almeida Corrigida); ou seja, vivendo sem outra lei senão a direção do eu e de seus desejos.

É isto o que éramos, mas agora lemos que "Se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado", o que vale dizer, se nos aventurarmos a fazer uma paráfrase disto, que, sabendo que se a vontade entra em atividade, a consequência é pecado; agora que Cristo está em nós, temos o corpo como morto, para que não possa mais ser usado por nós em conformidade com a NOSSA vontade, mas que Cristo possa possui-lo como um vaso para a expressão da Sua vontade. Consideramos o corpo como morto por causa da certeza de resultar em pecado, se for controlado por nós mesmos; e deste modo é acrescentado também que o Espírito vive (ou é vida) por causa da justiça. Considerando o corpo como morto, já que Cristo está em nós, desejamos agora que Ele, e não o pecado, seja Quem o dirija, e consideramos a atividade do Espírito, que habita no corpo, como a única vida que o cristão deve reconhecer, se é que desejamos ser preenchidos com o fruto da justiça que é por Jesus Cristo para a glória e louvor de Deus (veja Filipenses 1.11). Isto significa dizer que a justiça prática só pode ser produzida em nossa vida quando o corpo é reservado como um vaso para Cristo pelo poder do Espírito Santo.