EPÍSTOLA A TITO CAPÍTULO 1
A Epístola a Tito ocupa-se da manutenção da ordem nas igrejas de Deus.
O fim especial das epístolas a Timóteo, embora falem de outros assuntos acerca dos quais o apóstolo dá diretrizes para o procedimento de Timóteo, era a conservação da sã doutrina. O próprio apóstolo o diz. Na primeira dessas duas epístolas vemos que Paulo tinha deixado em Éfeso o seu filho bem-amado na fé para velar para que nenhuma outra doutrina ali fosse pregada.
A Igreja é a coluna e o sustentáculo da verdade.
Na segunda epístola vemos quais são os meios a empregar para consolidar os Cristãos na verdade, quando a maioria se tem afastado.
Aqui, na sua Epístola a Tito, o apóstolo diz expressamente que tinha deixado Tito em Creta para pôr em boa ordem as coisas que ainda faltava regularizar, e para estabelecer anciãos em todas as cidades. Embora alguns perigos, mais ou menos semelhantes àqueles que encontramos mencionados na Epístola a Timóteo, se apresentem também ao seu pensamento, Paulo aborda o assunto imediatamente e com uma tranquilidade que mostra bem que o seu espírito não estava preocupado com esses perigos do mesmo modo, e que o Espírito Santo podia ocupá-lo mais perfeitamente do funcionamento da Igreja. Assim, a Epístola a Tito é muito mais simples no seu caráter. O procedimento que convém aos Cristãos acerca da manutenção da ordem nas suas relações uns com os outros e os grandes princípios sobre os quais este comportamento é fundado constituem o tema do livro. O verdadeiro estado da Igreja pouco se apresenta à nossa vista. As verdades que decorrem mais diretamente da revelação cristã e a caracterizam ocupam mais espaço nesta epístola do que nas epístolas a Timóteo. Por outro lado, as profecias acerca do futuro da Cristandade e o progresso da ruína desta, já em vias de concretização, não são repetidas aqui.
Embora verificando, de maneira notável, certas verdades do Cristianismo, o tom desta epístola é mais calmo, mais comum.
Todas as três falam mais particularmente da promessa da vida. Aliás, esta promessa distingue o Cristianismo e a revelação de Deus (como Pai) em Cristo, do Judaísmo. Mas aqui, desde as primeiras palavras, os grandes princípios do Cristianismo são postos, em primeiro lugar. A fé dos eleitos, a verdade que é de harmonia com a piedade, a promessa da vida eterna antes dos tempos eternos e a manifestação da Palavra de Deus pela pregação formam o tema da introdução da epístola. Tal como nas epístolas a Timóteo, o título de "Salvador" é acrescentado ao de Deus (assim como ao de Cristo).
Esta introdução não é sem importância. O que ela encerra é apresentado pelo apóstolo a Tito como caracterizando o seu apostolado e como assunto especial do seu ministério. Este ministério não era um desenvolvimento do Judaísmo, mas sim a revelação de uma vida e de uma promessa de vida que subsistia (a saber, em Cristo, objetos dos propósitos divinos) antes dos tempos eternos.
Também a fé se encontrava, não na confissão dos Judeus, mas sim nos eleitos, levados ao conhecimento da verdade pela graça. A verdadeira fé cristã era a fé dos eleitos. Verdade importante e que caracteriza a fé no mundo.
Outros podem bem adotar esta fé, como sistema, mas a fé é, em si, "a fé dos eleitos".
Entre os Judeus não era assim.
A confissão pública da sua doutrina e a confiança nas promessas de Deus pertencem a todo homem, israelita de nascimento. Outros, além dos eleitos, podem pretender a fé cristã, mas ela é "a fé dos eleitos".
Ela é tal, de sua natureza, que a natureza humana não a abarca, não a concebe; é uma pedra de tropeço para esta natureza. Revela uma relação com Deus que, por natureza, é inconcebível e, ao mesmo tempo, presunçosa e insuportável. Mas, para o eleito, esta relação é a alegria da sua alma, a luz da sua inteligência e o amparo do seu coração. A fé coloca-o numa relação com Deus que é tudo o que o coração do eleito pode desejar, mas dependendo inteiramente daquilo que Deus é - é isto o que o crente deseja. É uma relação pessoal com o próprio Deus - e é por isso que é a fé dos eleitos de Deus. Por conseguinte ela é para todos os Gentios, do mesmo modo que para os Judeus. Esta fé dos eleitos de Deus tem um caráter íntimo, em relação com o próprio Deus.
Assenta sobre Ele, conhece o segredo do Seu propósito eterno, desse amor que fez dos eleitos o objeto dos desígnios divinos. Mas um outro caráter se liga a esta fé, a saber, a confissão diante dos homens. Existe a verdade revelada pela qual Deus Se faz conhecer e requer a submissão do espírito do homem e a homenagem do seu coração. Esta verdade coloca a alma numa verdadeira relação com Deus - é a verdade segundo a piedade.
A confissão da verdade é, pois, um caráter importante do Cristianismo e do Cristão. Existe no coração a fé dos eleitos, a fé pessoal em Deus e no segredo do Seu amor, e a confissão da verdade.
Ora, o que constituía a esperança desta fé, não eram os bens da Terra, uma posteridade numerosa, a bênção terrestre de um povo reconhecido de Deus como Seu; era a vida eterna, promessa de Deus em Cristo antes dos tempos eternos, uma vida fora do mundo, do governo divino do mundo e do desenvolvimento do caráter do Eterno nesse governo.
Era a vida eterna. E esta vida está em relação com a natureza e com o carácter do próprio Deus; é uma vida que, tendo a sua origem em Deus, vindo de Deus, era o pensamento da Sua graça, e tinha sido assim declarada em Cristo, ainda antes de haver mundo, no qual o primeiro homem foi introduzido sob uma responsabilidade (1) e para que formasse a esfera da manifestação do governo de Deus sobre aquilo que Lhe estava submetido – coisa bem diferente da comunhão de uma vida pela qual se participa da Sua natureza e que é o seu reflexo.
É esta a esperança do Evangelho (porque nós não falamos aqui da Igreja), o secreto tesouro da fé dos eleitos, aquilo de que a verdade revelada nos assegura.
A expressão: "Prometida antes dos tempos eternos" é uma expressão notável e importante: Fomos admitidos nos pensamentos de Deus antes de esta cena instável e mesclada ter existido - esta cena, testemunha da fraqueza e do pecado da criatura, da paciência e dos caminhos de Deus em graça e em governo. A vida eterna refere-se à natureza imutável de Deus, aos Seus desígnios, que permanecem firmes como a Sua natureza, às Suas promessas, nas quais Ele não poderia enganar-nos, e às quais Ele não poderia faltar. A nossa parte na vida existia ainda antes da fundação do mundo, não só na Pessoa do Filho, mas também nas promessas que Lhe tinha feito como nossa porção n'Ele. Esta vida, e a porção que nós devíamos ter nela, constituíam o tema das comunicações do Pai ao Filho, de que nós éramos os objetos, sendo o Filho o depositário (2).
Maravilhoso conhecimento que nos foi dado das comunicações celestiais de que o Filho era o objeto, para que compreendêssemos a parte que temos nos pensamentos de Deus, de que éramos o objeto em Cristo antes de todos os séculos! Por esta passagem compreendemos também mais claramente o que é a Palavra de Deus.
É a comunicação, no tempo, dos eternos pensamentos do próprio Deus em Cristo. Ela encontra o homem sob o poder do pecado, revela a paz e a libertação, e mostra como se pode ter parte nos frutos dos pensamentos de Deus; mas esses mesmos pensamentos não são outra coisa senão o desígnio, o propósito eterno da Sua graça em Cristo, de nos dar a vida eterna em Cristo, uma vida que já existia na presença de Deus antes dos tempos eternos.
A Palavra de Deus é pregada, é manifestada, isto é, a revelação dos pensamentos de Deus em Cristo.
Ora, esses pensamentos dão-nos a vida eterna em Cristo - e a promessa desta vida foi feita antes dos séculos. Os eleitos, crendo, sabem isso e possuem a própria vida, têm o testemunho, em si mesmos. Mas a Palavra de Deus é a revelação pública em que a fé se funda e tem autoridade universal sobre a consciência dos homens, tanto daqueles que a recebem como daqueles que não a recebem. Exatamente como em 2 Timóteo 1:9-10, ela é apresentada como sendo a salvação, mas tendo sido então manifestada.
Notar-se-á aqui que "a fé" é a fé pessoal numa verdade conhecida, a fé que só os eleitos que possuem a verdade podem ter, tal como Deus a ensina. A expressão "a fé" é também empregada na Palavra de Deus para o Cristianismo como sistema, em contraste com o Judaísmo.
Aqui, "a fé" é o segredo de Deus em contraste com uma lei promulgada para um povo estrangeiro. Esta promessa, datando de antes dos séculos revelados e sendo soberana na sua aplicação, estava particularmente confiada ao apóstolo Paulo, para que ele a anunciasse pela pregação (verso 3).
Podemos considerar o Evangelho confiado a Pedro a proclamação do cumprimento das promessas feitas aos pais, as quais Paulo também reconhece, com os fatos evangélicos que confirmavam essas promessas e as desenvolviam pelo poder de Deus, manifestado na ressurreição de Jesus, testemunha do poder dessa vida.
Enquanto que João nos apresenta a vida na Pessoa de Cristo, sendo-nos em seguida comunicada uma vida característicos ele nos apresenta.
cujos traços Veremos que não há, no apóstolo, a mesma confiança íntima com Tito que havia com Timóteo. Paulo não abre o seu coração a Tito da mesma maneira que o abria a Timóteo. Tito é um bem-amado e fiel servo de Deus, também filho do apóstolo, na fé; mas Paulo não lhe abre o seu coração da mesma maneira, não lhe comunica as suas queixas, a sua inquietação, não desabafa com ele como o faz com Timóteo.
Dizer a uma pessoa tudo o que se vê de inquietante, de destruído na obra em que se trabalha, é uma prova de confiança. Tem-se confiança a respeito da obra, mas falamos também da obra a nosso respeito, a respeito de todos; deixamo-nos ir sem reservas e com toda a liberdade a falar de nós, do que sentimos, de tudo. É o que o apóstolo faz com Timóteo e aquilo de que o Espírito Santo nos quis dar o quadro. Nas suas comunicações a Timóteo, era a doutrina que preocupava o apóstolo acima de tudo. Era por ali que o Inimigo atacava e se esforçava por arruinar a Igreja.
Os vigilantes (presbíteros ou bispos) são, no pensamento de Paulo, como que uma coisa acessória, quando se dirige a Timóteo; mas aqui coloca-os na primeira linha. O apóstolo tinha deixado Tito em Creta para pôr em boa ordem as coisas que restavam por regularizar, e para estabelecer anciãos (3) em cada cidade, conforme já lhe tinha ordenado.
Não se trata aqui do desejo que alguém pudesse ter de vir a ser bispo. Também se não trata de descrever o caráter que convinha a esse cargo; trata-se, sim, de estabelecer bispos, tarefa para cujo cumprimento Tito estava munido de autoridade da parte do apóstolo. São-lhe, no entanto, comunicadas as qualidades necessárias para que ele possa decidir, de harmonia com a sabedoria apostólica.
Assim, por um lado, ele estava revestido da autoridade concedida pelo apóstolo para os estabelecer, e, por outro, estava instruído acerca das qualidades requeridas para tal. A autoridade e a sabedoria apostólicas concorriam assim juntas para tornarem Tito capaz de cumprir essa importante e tão séria obra.
Vê-se também que este delegado apostólico estava autorizado a pôr em ordem o que fosse necessário para o bem-estar das assembleias em Creta. Essas assembleias, já fundadas, ainda careciam de orientação sobre muitos pormenores acerca do seu funcionamento; e os cuidados apostólicos eram necessários para lhes dar diretrizes, assim como para o estabelecimento de responsáveis no seu seio. O apóstolo tinha confiado essa tarefa à fidelidade aprovada de Tito, munido verbalmente, e, aqui, por escrito, da autoridade do próprio apóstolo; de sorte que rejeitar Tito é rejeitar o apóstolo, e, por conseguinte, o Senhor que o tinha enviado. A autoridade na Igreja de Deus é uma coisa séria, uma coisa que vem do próprio Deus.
Pode ser exercida como influência pelo dom de Deus, por responsáveis, quando Deus os estabelece por meio de instrumentos que Ele escolheu e enviou com esse fim.
É inútil entrar aqui no pormenor das qualidades que são necessárias para preencher convenientemente o cargo de vigilante ou bispo.
Elas são, no fundo, as mesmas que as mencionadas na Primeira Epístola a Timóteo. São qualidades, e não dons - qualidades exteriores, morais e de circunstâncias, que demonstrem a aptidão do indivíduo para o cargo de vigiar os outros. Talvez possamos admirar-nos de que a ausência de faltas graves encontre lugar na lista dessas qualidades, mas, naquele tempo, as assembleias eram mais simples do que se pensa; as pessoas que as compunham tinham saído recentemente dos hábitos mais deploráveis. Um comportamento precedente, que comandasse o respeito dos outros, era, por conseguinte, necessário para dar peso ao exercício dos cuidados de vigilante. Os que estavam revestidos desse cargo deviam também poder refutar os contraditores, porque os encontrariam, e mais particularmente entre os Judeus, que estavam sempre e por toda a parte ativos para se oporem à verdade, e sutis para perverterem os espíritos.
O caráter dos Cretenses ocasionava outras dificuldades e exigia o exercício de uma autoridade incontestável.
O Judaísmo mesclava-se neles como efeito do caráter nacional. Era preciso ser firme e agir com autoridade para que os Cretenses Cristãos permanecessem sãos na fé.
De resto, tratava-se ainda de ordenanças e de tradições interditas na Igreja de Deus, porque O provocavam ao zelo e se opunham à Sua graça, exaltando o homem. Isto, dizíamos, não é puro, e aquilo é proibido por uma ordenança, mas Deus quer o coração.
Todas as coisas são puras para aqueles que são puros; aquele que tem o coração maculado não precisa de sair de si mesmo para encontrar impureza, mas é cômodo para ele fazê-lo a fim de poder esquecer a sua desonestidade. Os seus pensamentos e a sua consciência estão já corrompidos. Professam conhecer a Deus, mas negam-no por suas obras; são inúteis e reprovados para o que concerne a toda a obra verdadeiramente boa.