CAPÍTULO 3
Pelo que concerne ao comportamento dos Cristãos perante o mundo, a graça tem feito desaparecer a violência e o espírito de rebelião e de resistência que agita o coração daquele que não crê, e que tem a sua origem na vontade de manter os seus direitos em face dos outros.
O Cristão tem a sua porção, a sua herança noutro lugar - e não neste mundo. Por isso está tranquilo e submisso aqui, e sempre pronto a praticar o bem.
Mesmo quando os homens são injustos e violentos consigo, ele os suporta, lembrando-se de que, em tempos, não era diferente.
Lição difícil de aprender, porque a violência e a injustiça fazem ferver o coração. Mas o pensamento de que a injustiça de que sofremos é o fruto do pecado e que outrora nós também éramos seus escravos, produz a paciência e a piedade. Foi só a graça que fez a diferença - e devemos atuar para com os outros de harmonia com esta graça.
O apóstolo dá aqui o triste resumo dos traços característicos do homem segundo a carne – do que nós éramos: pecado, doidice, desobediência...
Estávamos enganados, éramos escravos das cobiças, estávamos cheios de malícia, plenos de inveja, odiosos e odiando os outros. Tal é o homem caracterizado pelo pecado.
Aparecem então a bondade de um Deus Salvador, a Sua benignidade e o Seu amor pelos homens (doce e precioso caráter de Deus) (4) (verso 4). Revestiu o caráter de Salvador, nome que Lhe é particularmente dado nestas três epístolas, a fim de que, na nossa vivência, levemos a marca desse caráter, para que o nosso espírito seja dele penetrado.
A nossa vivência no mundo e o nosso procedimento para com os outros homens dependem dos princípios das nossas relações com Deus; o que nos tem tornado diferentes dos outros não é qualquer mérito em nós, nem qualquer superioridade pessoal.
Nós mesmos éramos como eles.
O que nos tem tornado diferente é o terno amor, a terna graça do Deus de misericórdia. Ele tem sido bom e misericordiosos para conosco, e quando nós temos aprendido esta misericórdia, somos misericordiosos nas nossas relações com os outros. E verdade que esta misericórdia tem atuado no sentido de nos purificar e de nos renovar por um princípio e numa esfera de vida inteiramente novos. Nós não podemos andar com o mundo, como fazíamos dantes; mas atuamos para com os outros, que estão ainda na lama deste mundo, como Deus tem atuado para conosco, para nos tirar dela e para nos fazer gozar das coisas que desejamos, segundo o mesmo princípio de graça, para que os outros gozem também. O sentimento do que nós éramos e o sentimento da maneira como Deus tem agido para conosco juntam-se para governarem o nosso procedimento para com os outros.
Ora, quando apareceu esta bondade de um Deus Salvador, não era algo de vago e de incerto: Ele salvou-nos, não por obras de justiça que nós tivéssemos feito, mas segundo a Sua própria misericórdia, lavando-nos e renovando-nos. Estas últimas palavras exprimem o duplo caráter da Sua obra em nós. São os dois mesmos pontos que se encontram na conversação do Salvador com Nicodemos (João 3). Todavia, é acrescentado aqui o que tem agora o seu lugar, por causa da obra de Cristo, a saber que o Espírito Santo é também derramado ricamente sobre nós, para ser a força da nova vida de que Ele é a fonte. O homem é lavado e purificado. É lavado dos seus antigos hábitos, dos seus antigos pensamentos, dos seus antigos desejos, no sentido prático.
Lava-se aquilo que existe. O homem era naturalmente mau e estava sujo na sua vida interior e exterior. Deus salvou-nos purificando-nos.
Não poderia fazê-lo de outro modo. Para se estar em relação com Ele é indispensável a pureza prática. Mas esta purificação está essencialmente feita.
Não é o exterior do vaso; é a purificação pela regeneração. Por outras palavras, e sem dúvidas alguma, é a comunicação de uma nova vida, fonte de novos pensamentos em relação com a nova Criação de Deus, capaz de gozar da Sua presença e da luz da Sua face.
Mas esta nova vida em si mesmo é uma passagem do estado em que nos encontrávamos a um outro inteiramente diferente – da carne, pela morte, ao estado de um Cristo ressuscitado.
Mas há um poder que atua nesta nova vida e que a acompanha no Cristão. Não é apenas uma mudança subjetiva, como alguns dizem; há um Agente ativo, divino, que comunica algo de novo, de que Ele próprio é a origem, a saber, o próprio Espírito Santo, Deus atuando na Criatura (porque é sempre pelo Espírito que Deus atua imediatamente sobre a Criatura). E é sob o caráter do Espírito Santo que Ele atua nesta obra de renovação. Há uma nova fonte de pensamento em relação com Deus; não só uma capacidade vital, mas também uma energia que produz o que é novo em nós.
Perguntar-se-á, talvez, quando tem lugar essa renovação pelo Espírito Santo? É no principio, ou então após a regeneração (5) de que fala o apóstolo. Creio que Paulo fala dela segundo o caráter da obra, e que acrescenta "derramou sobre nós" (o que caracteriza a graça deste tempo) para mostrar que há ainda uma outra verdade, a saber, que o Espírito Santo, sendo "derramado sobre nós", contínua a Sua ação, para manter pelo Seu poder, o gozo da relação em que nos colocou. O homem é purificado em relação com essa nova ordem de coisas mas o Espírito Santo é a origem de uma vida inteiramente nova, de pensamentos inteiramente novos - não só de um ser moral, mas também da comunicação de tudo aquilo em que esse novo ser se desenvolve.
Não se pode separar uma natureza dos objetos acerca dos quais ela se desenvolve e que formam a esfera da sua existência e a caracterizam.
É o Espírito Santo que dá os pensamentos, que cria e forma totalmente o ser moral do novo homem. O pensamento e o pensador não poderiam separar-se moralmente, ali, onde o coração se ocupa do pensamento.
No homem salvo, o Espírito Santo é a fonte de tudo; e, por ser assim, o homem está definitivamente salvo.
O Espírito Santo não dá apenas uma nova natureza: Ele dá-no-la em relação com uma ordem de coisas inteiramente nova ("uma nova Criação") e enche-nos, quanto aos nossos pensamentos, das coisas que ali se encontram. É por isso que, embora sejamos colocados nessa nova Criação, uma vez por todas, a obra, quanto à operação do Espírito Santo, continua, porque Ele nos comunica sempre mais e mais das coisas desse novo mundo em que nos introduziu. Ele toma das coisas de Cristo e mostra-no-las - e tudo o que o Pai tem é de Cristo! Eu creio que "a renovação do Espírito Santo" compreende tudo isso, embora o apóstolo diga que Deus "O derramou abundantemente sobre nós"; de sorte que não se trata apenas de sermos nascidos d'Ele, mas também de Ele operar em nós, comunicando-nos tudo o que é nosso em Cristo.
O Espírito Santo é derramado abundante sobre nós por Jesus Cristo, nosso Salvador, para que, tendo sido justificados pela graça, sejamos herdeiros segundo a esperança da vida eterna.
Creio que o antecedente de "para que" é "a lavagem da regeneração e a renovação do Espírito Santo", e que a frase "que Ele derramou abundantemente sobre nós por Jesus Cristo, nosso salvador" é um parêntesis acessório para mostrar que nós temos a plenitude do gozo dessas coisas pela força do Espírito Santo.
Assim, por essas renovação, Ele nos salvou, para sermos herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. Não se trata de nada de exterior, de terrestre, de tangível. A graça deu-nos a vida eterna. E para que a possuamos que fomos justificados pela graça de Cristo (6). Assim há energia, força, esperança pelo rico dom do Espírito Santo. Para que possamos ser dele participantes, fomos justificados pela Sua graça, e a nossa herança está na alegria incorruptível de vida eterna.
Deus salvou-nos, não por obras, nem por meio (7) daquilo que somos, mas pela Sua misericórdia; agiu para conosco segundo as riquezas da Sua própria graça, de harmonia com os pensamentos do Seu próprio coração.
E destas coisas que o apóstolo quer que Tito se ocupe - disto que nos põe, com ações de graças, em relação prática com o próprio Deus e nos faz sentir o que é a nossa porção, a nossa parte eterna na Sua presença. Isto atua sobre a nossa consciência, enche-nos de amor e de boas obras, faze-nos respeitar todas as relações de que o próprio Deus é o Centro. Nós estamos em relação com Deus, de acordo com os Seus próprios direitos; estamos perante Deus, que faz respeitar, pela consciência, tudo o que Ele próprio estabeleceu.
Tito devia evitar as questões insensatas e as disputas sobre a lei, assim como tudo o que pudesse destruir a simplicidade das relações dos fiéis com Deus, segundo a revelação imediata de Si próprio e da Sua vontade em Jesus Cristo. E sempre o Judaísmo gnóstico que se levanta contra a simplicidade do Evangelho. A lei e a justiça do homem são o que destrói, pela introdução de seres intermediários, a simplicidade e o caráter imediato das nossas relações com o Deus da graça.
Quando alguém quisesse fazer prevalecer a sua próprio opinião, e, por causa disso, criasse partidos na assembleia, após ter sido admoestado primeira e segunda vez, devia ser rejeitado. A fé de um tal homem está arruinada. Peca e é condenado por si próprio.
Não se contenta com a Igreja de Deus, com a verdade de Deus, preferindo fazer a sua própria verdade. Porque é ele então cristão, se o Cristianismo, tal como Deus o deu, lhe não basta? Ao criar um partido baseado nas suas próprias opiniões, um tal homem condena-se a si próprio.
Na parte final desta epístola encontramos um pequeno resumo da atividade cristã, produzido pelo amor de Deus, e dos cuidados a ter para que os rebanhos gozem de todos os socorros que Deus fornece à Igreja.
Paulo desejava que Tito fosse para junto dele; mas os Cretenses tinham necessidade dos seus cuidados, e o apóstolo põe e chegada de Ártemas ou de Tíquico (este bem conhecido pelos serviços que prestou ao apóstolo) como condição da partida de Tito do campo onde trabalhava.
Também aqui encontramos Zenas, doutor da lei, e Apolo, que tinham manifestado também a sua atividade em Éfeso e em Corinto, dispostos a irem ocupar-se em Creta da obra do Senhor.
Note-se que também encontramos dois gêneros de obreiros, a saber, aqueles que estavam em relação pessoal com o apóstolo como companheiro de trabalho, que o acompanhavam e que ele enviava algures para continuarem a obra que ele tinha começado, quando já não podia ocupar-se dela pessoalmente; e aqueles que trabalhavam de sua própria iniciativa sem terem sido enviados pelo apóstolo. Mas esta dupla atividade não arrastava consigo nenhum ciúme.
Paulo não negligenciava os rebanhos que lhe eram queridos. Regozijava-se de que quem quer que fosse, são na fé, regasse as plantas que ele próprio tinha plantado. Paulo encoraja Tito a testemunhar a esses obreiros todo o seu afeto e a prover a todas as suas necessidades para a viagem. Este pensamento sugere-lhe a exortação que segue, a saber, que os Cristãos fariam bem aprendendo a fazer coisas úteis para proverem às suas próprias necessidades e às dos outros.
O apóstolo termina a sua epístola pelas saudações que o amor cristão produz sempre.
Mas, como vimos já no início desta epístola, não há aqui o fervor de amizade que se encontra nas comunicações de Paulo a Timóteo. A graça é a mesma por toda a parte; mas há afeto a relações especiais na Igreja de Deus.