Nona Carta

Blackheath, janeiro de 1875

Meu amado irmão,

Você não irá se surpreender ao saber que quando cheguei às conclusões indicadas em minhas cartas anteriores senti que deveria tomar o meu lugar entre os chamados “irmãos” para ser coerente e honesto diante do Senhor. Mas não achei fácil colocar em prática minhas convicções. Hesitei em abrir mão de minha posição. Hesitei ainda mais em romper os laços que me ligaram por tantos em uma amorosa associação a muitos queridos amigos cristãos. Eu não podia suportar a ideia de entristecer pessoas como você, com quem eu havia desfrutado de tão estreita comunhão.

Eu também estava assustado com a perspectiva da tempestade que eu sabia que minha decisão iria produzir em determinados setores. Além disso, quando me lembrei do forte antagonismo que eu mesmo havia demonstrado contra os chamados “irmãos” no passado, não foi fácil confessar a todo o mundo o erro que eu tinha cometido. Também recebi muitas cartas cheias de apelos amorosos e alertas contra a “ilusão” que supostamente teria tomado conta de minha mente. Outros me disseram claramente que se eu me unisse aos chamados “irmãos” logo perderia toda a independência de pensamento e ação, bem como me tornaria participante das más ações daqueles cujos ensinamentos estariam supostamente subvertendo os próprios fundamentos do evangelho. Portanto, você irá entender algumas das dificuldades que me perturbavam nessa etapa final.

Deus permitiu-me desviar o olhar dos homens e, constrangido por Seu amor, pedi aos irmãos que me permitissem partir o pão (a fim de recordar o Senhor) com os santos em Blackheath. Tal permissão me foi concedida. Tomei meu lugar à mesa do Senhor com os crentes congregados nesse terreno em obediência ao seu Senhor, apenas como crente e membro do corpo de Cristo, e somente sobre estas bases, e não sobre quaisquer outras de doutrinas (2 Tm 2:22).

Não tenho o desejo de me debruçar sobre as “más interpretações” (para não usar uma palavra mais forte) que se seguiram após esta etapa que assumi, já que eu esperava que ocorressem. Em vez disso, elas me ajudaram a entender muitas partes das Escrituras -- aquelas que falam de suportar nossa cruz ao seguirmos a Cristo com perseguições ou tribulações. Eu não entendia estes versículos tão bem quando minha posição e profissão de fé em Cristo eram bem recebidas ao invés de serem rejeitadas. Além disso, lembrei-me da oposição declarada que eu mesmo outrora tinha contra os chamados “irmãos”. Sendo assim, aquietei-me na esperança de que meus adversários pudessem ter também seus olhos abertos e serem achados sentados comigo à mesa de nosso Senhor.

Antes de terminar gostaria de falar dos resultados disso. Foi com alegria que descobri, no primeiro dia do Senhor, que existe realmente uma distinção (a qual os chamados “irmãos” sempre fizeram questão de frisar) entre a adoração e as reuniões para se ouvir sermões. Foi uma experiência bendita entender que o Senhor estava em nosso meio conforme Sua promessa (Mt 18:20). Foi uma alegria inédita entrar nesta verdade enquanto comungávamos juntos do corpo partido (simbolizado no pão partido) e do sangue precioso (simbolizado no vinho) de nosso bendito Senhor. Nossos corações estavam necessariamente ocupados com Ele -- com o que Ele era aqui; com o que Ele foi na cruz; com o que Ele é agora à destra de Deus; e com tudo o que Ele era e é para Deus Pai. Assim, enquanto nos inclinávamos em adoração penetrando além do véu, nossa comunhão era verdadeiramente com o Pai e com o Seu Filho, Jesus Cristo.

Ao dizer isto não quero negar que pessoas possam, individualmente, desfrutar da presença do Senhor de forma até bem significativa nas diferentes “igrejas”, pois o Senhor sempre está presente para a fé. Mas insisto que a menos que estejamos congregados ao Seu Nome, não temos nada que garanta a presença do Senhor em nosso meio. Suas próprias palavras são: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18:20. Sendo assim, a condição para a Sua presença no meio da reunião é que estejam congregados ao Seu Nome -- algo só possível aos crentes.

Oh, meu irmão, gostaria que você e todos os santos pudessem enxergar este bendito privilégio de congregar; que pudessem conhecer a feliz liberdade de espírito que traz a certeza da presença do Senhor em nosso meio, e conhecer o gozo no coração que é operado em nós pelo Espírito Santo ao desfrutarmos juntos de Deus através de Jesus Cristo. Estou convencido de que se você ao menos desfrutasse desta experiência iria se admirar por ter ficado satisfeito durante tanto tempo nas denominações.

Outra coisa que logo atraiu minha atenção foi que a Palavra de Deus recebeu o seu devido lugar. Sua autoridade foi mantida como suprema. Uma de nossas grandes dificuldades nas denominações costumava ser obter qualquer reconhecimento real e prático deste princípio por causa das opiniões tão vagas que prevalecem no que diz respeito à sua inspiração. Além de você, nunca encontrei um ministro denominacional que cresse na absoluta inspiração verbal das Escrituras. Consequentemente, todos costumavam sentir-se mais ou menos à vontade para tecer julgamentos sobre a revelação que Deus deu ao homem, ao invés de permitirem que ela julgasse o homem e seu proceder.

Sob tais condições não pode existir qualquer certeza sobre qualquer verdade. Por isso as congregações acabam recebendo, vez após outra, ministros com opiniões diferentes e opostas entre si. Em uma capela houve três ministros nos últimos doze anos. O primeiro ensinava que a morte de Cristo nada mais representava do que o sacrifício próprio. O segundo ensinava a visão aceita sobre a expiação, mas negava a completa depravação (pecaminosidade) do homem. O terceiro ensinava, até certo ponto, verdades dispensacionais. Todavia, mesmo com diferenças assim as pessoas jamais cogitaram em dizer que qualquer um deles estava no erro. Elas diriam a você de qual deles gostavam mais, e isso seria tudo!

Dificilmente poderíamos imaginar um estado de coisas mais triste do que este, e tudo é consequência de um conhecimento incorreto do verdadeiro caráter da Palavra de Deus. Portanto, foi com grande prazer que encontrei a autoridade da Palavra de Deus sendo continuamente reforçada, e que o dever de uma completa sujeição a ela era reconhecido por todos.

Mas o que dizer das doutrinas? -- alguém certamente iria perguntar. Sem buscar por ora responder de forma ampla, tenho aprendido uma lição. Não tome as declarações dos inimigos ou frases tiradas do contexto como se representassem os ensinos dos chamados “irmãos” (ou de quem quer que seja). A opinião geral acerca de suas doutrinas é que elas são totalmente falsas, e isto vem, sem dúvida alguma, da falta de conhecimento daqueles que os acusam. O fato é que a intenção do autor de um texto é o que deveria governar a interpretação de uma passagem, mesmo que seu estilo deficiente ou uma falha no modo de se expressar pudesse permitir que fosse interpretada de outra maneira. Mas a controvérsia teológica geralmente ocorre por um princípio completamente oposto: o de que a intenção do autor seja exatamente aquela que suas palavras possam significar.

Não quero dizer que os chamados “irmãos” não tenham ensinado coisas erradas, pois eles são tão sujeitos a cometerem erros como quaisquer outros. Mas sustento que ainda que alguns erros tenham sido ensinados, não caberia a mim atacá-los (apesar de procurar apontar na Palavra de Deus aquilo que entendo ser a verdade), a menos que fossem de uma natureza tal que exigissem uma ação disciplinar pois, como já disse, não estamos congregados sobre o terreno de doutrinas, mas como membros do corpo de Cristo; como aqueles que foram para sempre aperfeiçoados pelo único sacrifício que Ele consumou na cruz (Hb 10:140).

Gostaria de fazer uma pergunta: A Bíblia dá ou não instruções bem definidas sobre como deve ser a assembleia de Deus? Porventura somos ou não ensinados da vontade de Deus concernente ao terreno sobre o qual os membros do corpo de Cristo deveriam estar congregados para adoração, para a manutenção da unidade do Espírito, para o ministério etc.? Se não, então fica a critério de cada um fazer o que é certo aos seus próprios olhos. Mas se existirem instruções concernentes a estas questões, então Deus requer que cada crente obedeça à Sua Palavra. “Se me amais, guardai os meus mandamentos” (Jo 14:15). Isto continua a valer para todos, e nenhum grau de confusão acerca destas coisas isentam o mais débil ou jovem crente de procurar apresentar-se perfeito e completo em toda a vontade de Deus.

O caminho de Deus é estreito e difícil, mas se cada um, que estiver ansioso em buscar a glória de Deus e em levar um testemunho fiel nestes dias de trevas, tão somente começar a separar-se de tudo o que não é autorizado pela Palavra de Deus ou diretamente condenado por ela, logo irá descobrir que “aos justos nasce luz nas trevas” (Sl 112:4). Assim, buscando fazer a vontade de Deus, ele iria conhecer se a doutrina é de Deus (Jo 7:17), e seria guiado pelo poder do Espírito Santo em toda a verdade (Jo 16:13).

Querido irmão, quem poderia conhecer melhor que você a necessidade de se assumir uma posição fundamentada apenas na Palavra de Deus? Por que é, então, apesar de vermos o mal crescendo de todos os lados e ataques sendo feitos aos próprios fundamentos de nossa fé, que até mesmo homens piedosos hesitam em se separarem completamente do mal e se dedicarem totalmente, tanto no que diz respeito às suas associações eclesiásticas como ao seu andar individual, à direção da infalível Palavra de Deus? Tal negligência denota uma falsa santidade que se ocupa de experiências exteriores, ao mesmo tempo em que abandona a Igreja de Deus à mercê dos desígnios do homem. A Igreja é o corpo de Cristo, e como tal nosso Senhor “amou a igreja, e a Si mesmo Se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela Palavra, para a apresentar a Si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5:25-27). Portanto, será que não deveríamos buscar ter comunhão com nosso bendito Senhor no que diz respeito ao Seu próprio corpo -- a Igreja-- do qual nós, por graça, somos membros?

Minha oração é que Deus possa abrir os olhos do Seu povo e que venham a sair e a se separarem de tudo o que for contrário à Sua vontade; que venham a ser achados com os poucos que, em face de muita dificuldade e oposição, mantêm Sua honra por levarem um testemunho da autoridade da Sua Palavra neste dia mau.

Afetuosamente seu, em Cristo, Edward Dennett

Breve Biografia de Edward Dennett

Edward Dennett nasceu em Bembridge, Isle of Wight, em 1841 e partiu para estar com o Senhor em Croydon em Outubro de 1914. Ele se converteu ainda jovem por intermédio de um clérigo piedoso e sua família pertencia à Igreja Anglicana, a qual ele abandonou por convicções pessoais.

Graduou-se pela London University e assumiu o posto de ministro de uma congregação Batista em Greenwich. Após adoecer gravemente foi enviado à Suíça em Março de 1873 para tratamento e, enquanto estava em Veytaux, reconheceu que sua posição contra os "Plymouth Brethren" e o livro que escreveu criticando o movimento não tinham fundamento bíblico.

De volta à Inglaterra apresentou suas convicções à congregação que dirigia e deixou-a. Depois de estudar os ensinos dos "irmãos" e compará-los com as Escrituras, entrou em contato com William Kelly e acabou tomando seu lugar em comunhão. Dennett trabalhou na obra do Senhor na Inglaterra, Escócia, Irlanda e também visitou a Noruega, Suécia e América do Norte.

Um acervo das obras de Edward Dennett em inglês pode ser encontrado na Bible Truth Publishers (em formato impresso ou digital) e em Stempublishing (digital).