A Encarnação
Para que tenhamos claramente diante de nós a grande verdade da encarnação será melhor citar as seguintes Escrituras que se referem de um modo direto a essa verdade monumental: “O Verbo se fez carne” – João 1:14.
“Aquele que se manifestou em carne” – 1 Timóteo 3:16.
“De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz” – Filipenses 2:5-8.
“E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” – Hebreus 2:14.
“Por isso, entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me preparaste” – Hebreus 10:5.
“Jesus Cristo veio em carne” – 1 João 4:3.
Essas passagens claramente mostram que a verdade da encarnação consiste no grande fato de que uma Pessoa Divina – o Filho – se tornou carne. Tomou a forma de um escravo, tomou um lugar na semelhança dos homens, foi encontrado na figura como de um homem, participou do sangue e da carne, e viveu no corpo preparado para Ele.
O que pode exceder a maravilha da encarnação? “Deus manifestado em carne”. Manifestação supõe uma existência prévia, mas uma existência escondida; e que Aquele até aqui escondido vem a se manifestar. Aquele que em Seu próprio Ser essencial vive “na luz à qual nenhum homem pode se aproximar, Aquele que nenhum homem viu ou pode ver”, se torna manifesto em carne – foi visto pelos anjos, enquanto os corações adoradores dos seus discípulos puderam dizer “o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida”.
Ainda mais do que isso a forma da encarnação é tão maravilhosa quanto o é o fato, pois lemos: “Achareis o menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura (Lucas 2:12)” – a resposta divina ao clamor que subiu de um coração humano: “Oh! se fendesses os céus, e descesses” (Isaías 64:1). Deus de fato desceu, embora não da maneira como o profeta desejou – como fogo que derrete e água fervente, para fazer as nações tremerem em Sua presença – Ele respondeu ao clamor, mas do Seu próprio modo e segundo o Seu próprio coração, de uma forma, de fato, que acalma os nossos temores e cativa o coração que é tocado pela graça e amor Divinos. Realmente foi dito: “nada na vida humana nos faz tão em casa... como uma criança em seu berço”. Deus se aproximou de nós ao ponto mais baixo da nossa fraqueza, e na maior profundidade da nossa pobreza. Ele ignorou a cidade imperial de Roma, passou pela cidade real de Jerusalém, e escolheu a Belém, embora “a menor dentre as milhares de Judá”, e até mesmo passou pela pobre estadia que a taberna rústica poderia suprir e escolheu o abrigo do estábulo dos bois. Ali no estábulo em Belém Aquele “cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”, foi trazido e colocado em uma manjedoura. O ventre da virgem, a manjedoura de Belém, os braços de Simeão, e a casa de Nazaré marcam estágios dessa história maravilhosa do Filho Encarnado – Deus manifestado em carne.
Qual, podemos perguntar, foi o grande propósito da encarnação? A Escritura que tão vivamente apresenta a encarnação, fala com igual clareza do propósito da encarnação. Tendo declarado o grande fato de que “a Palavra se tornou carne”, o apóstolo passa a nos dizer que Aquele que veio em carne “habitou entre nós”, e ainda mais, que Aquele que habitou entre nós é o Filho Unigênito, que proclama o Pai. Aqui seguramente temos uma esplendorosa notificação do duplo propósito da encarnação. Deus habitando no meio dos homens, e Deus sendo conhecido pelos homens.
Se o primeiro passo para o cumprimento desse abençoado objetivo foi dado naquele grande dia quando a Palavra se fez carne e viveu entre nós, o último passo da jornada será alcançado naquele ainda maior quando, no novo céu e a nova terra o tabernáculo do Deus estará com os homens, e Ele viverá com eles, e eles serão Seu povo, e Deus mesmo estará com eles. Sabemos de fato que entre o começo e o fim desta grande viagem há a inevitavelmente vinda da Cruz, e a grande obra de expiação. Já que o homem é caído e culpado, e que Deus deve habitar nos homens, isso deve ser com homens tornados ajustados a Deus pela obra de Seu próprio Filho – uma obra que glorifica a Deus e tira o pecado do homem. A encarnação envolve a Cruz e leva à glória. E quando finalmente essa glória é alcançada, Deus habitará com infinita satisfação no meio de um povo tornado infinitamente feliz no conhecimento Dele.
Além disso, se as Escrituras nos revelam a maravilha e o propósito da encarnação, elas igualmente têm cuidado em guardar a glória Daquele que se tornou encarnado. A encarnação deu ao homem caído a oportunidade de expressar em palavra e feito a inimizade do seu coração contra seu Deus. O Próprio Senhor pode dizer: “Pois o zelo da tua casa me devorou, e as afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim” (Salmos 69:9). Tal é o ódio do homem para com Deus que ataca cada Pessoa da Divindade, mas por causa da encarnação a Pessoa do Filho foi sempre o objetivo especial da hostilidade do homem. Os homens valeram-se da humilde graça da Sua humanidade para negar as glórias de Sua Deidade, e colocar em questão a Sua perfeição moral. As Escrituras anteciparam a maldade dos homens pela clara revelação de que a encarnação do Filho não implica em nenhuma mudança em Sua Pessoa gloriosa, e não comunica nenhuma mancha da humanidade caída.
Quanto à glória da Sua Pessoa, a Escritura é cuidadosa em mostrar que a Encarnação não implica em nenhuma mudança na Pessoa, e nenhuma adição à Pessoa, Daquele que se tornou encarnado. Ele foi sempre o Filho e permanece o Filho. Houve de fato uma grande modificação na “forma” que Ele tomou, a “semelhança” na qual Ele foi encontrado e a natureza da qual Ele compartilhou, mas não houve nenhuma mudança quanto à Sua Pessoa; nada daquilo que na graça Ele se tornou, pode acrescentar, ou tirar daquilo que Ele era. Não houve dupla personalidade pelo Filho se tornar encarnado. Ele pode dizer: “Eu e o Pai somos um”, Ele nunca disse que “Eu e o Filho somos um”, já que era o Filho, e a humanidade que tomou não confere a Ele uma personalidade nova distinta, ou em conjunto com a Pessoa do Filho. A Pessoa era uma e a essa nada poderia ser acrescentado pelo que se tornou. Ele veio do Pai, enviado pelo Pai, tendo a mesma natureza do Pai, mas nascido de uma mulher, e por isso participante da natureza humana, embora sempre permanecendo uma Pessoa Divina. Não vemos duas pessoas unidas em Cristo, como alguns falsamente ensinaram, mas duas naturezas em Uma Pessoa, que são seguramente distintas embora nunca mais seram vistas como separadas.
Ele, pelo nascimento, participou da natureza humana embora permanecendo sempre uma Pessoa Divina; pela graça, participamos da natureza divina embora permanecendo sempre pessoas humanas.
A personalidade, seja humana ou divina, sempre permanecem a mesma por mais que as condições nas quais pode ser encontrada possam variar.
Um servo bem conhecido do Senhor disse, falando de Cristo: “Ele pode dizer ‘Eu’ como Deus – ‘Antes que Abraão fosse Eu sou’. E Ele pode dizer ‘Eu’ como homem – ‘Colocarei a minha confiança nele’. Mas esses não eram dois ‘Eus’, a pessoa era uma – ‘O Filho’”. Mais uma vez se referindo à Escritura disse: “Li ali de uma Pessoa – a Palavra, existindo na eternidade, Ele mesmo o Criador. Li que aquela mesma Pessoa se tornou carne, um homem na terra entre os homens, um homem real, verdadeiro e individual, mas a mesma abençoada Pessoa – Deus manifestado em carne, o Filho que Deus enviou em semelhança de carne do pecado, o Filho de Deus, vindo de uma mulher. Não há nenhum pensamento de uma modificação na Pessoa, no verdadeiro ‘Eu’. Ele é sempre o mesmo, embora a Sua ‘forma’ seja mudada e a condição na qual tem a vida. Quando ‘Ele’ tomou parte na carne e no sangue, quem era ‘Ele’? A identidade pessoal não muda, embora a forma e a condição possam mudar”.
Essas são palavras sadias e sóbrias, e a elas podemos ainda acrescentar o testemunho de outro, que, comentando sobre as palavras de nosso Senhor: “Antes que Abraão fosse EU SOU” muito verdadeiramente observa: “EU SOU é a própria expressão da Sua existência. Enquanto o tempo passa o ‘EU SOU’ permanece inalterado, e quando o tempo tiver passado ‘EU SOU’ subsiste o mesmo”. Esse também é um testemunho verdadeiro de acordo com a Escritura que declara “TU PERMANECES” e “TU ÉS O MESMO”. A mesma Pessoa gloriosa seja no seio do Pai, no ventre da virgem, ou nos braços de Simeão; seja na manjedoura em Belém, no jardim do Getsêmane, ou na Cruz de Calvário; seja antes da fundação do mundo, através das eras do tempo, ou quando o mundo não existirá mais. “DE ETERNIDADE A ETERNIDADAE TU ÉS DEUS”.
Além disso, vamos observar que embora o Criador entre em Sua própria criação, e atraia a Sua criação, ainda em assim fazendo Ele nunca deixa de ser o Criador e o Sustentador de todas as coisas. A forma de concepção no ventre da virgem corta o vínculo com Adão – o homem criado. Pela geração Divina o bebê foi formado e cresceu no ventre da virgem. Não é dito que o corpo que Ele tomou foi “criado”, mas que foi “preparado”. Adão foi criado, as mulheres foram formadas de Adão, e Cristo era a “semente da mulher”, e isso por geração Divina. Por essa razão julgamos, com cuidado zeloso o pensamento profano é excluído, que poderia se falar de Cristo como uma “criatura” porque se tornou Homem em Sua própria criação.
Quanto à Sua perfeição moral. Se a glória da Pessoa que se tronou encarnada for cuidadosamente mantida, assim também a Sua Pessoa é zelosamente guardada de toda a mancha da maldade por causa da encarnação. Isto nos é assegurado pela forma da encarnação como registrado no Evangelho de Lucas. Ali aprendemos que de Maria é dito que: “Descerá sobre ti o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra; pelo que também o Santo que de ti há de nascer, será chamada o Filho do Deus” (Lucas 1:35). Alguém disse: “O Espírito Santo deveria vir sobre ela, deveria atuar no “poder sobre este vaso terreno, sem a sua própria vontade, ou a vontade de qualquer homem. Por isso, ‘aquela coisa santa’ que nasceu de Maria foi chamada de o Filho de Deus. Deus atuando sobre Maria... era a fonte divina da Sua existência na terra como Homem”. Ele não era um homem inocente, muito menos um homem caído, Ele era um Homem santo. “O vínculo do pecado transmitido é Nele cortado pelo Seu nascimento sobrenatural de uma mãe virgem”.