PREFÁCIO DO AUTOR
A ordenação da Ceia do Senhor deve ser considerada por toda mente espiritual, como uma prova particularmente tocante do benigno cuidado do Senhor e de Seu terno amor por Sua Igreja. Desde a época de sua instituição até o tempo presente, a Ceia tem sido um testemunho contínuo, embora silencioso, da verdade que o inimigo tem procurado corromper e colocar de lado por todos os meios ao seu alcance, de que a redenção é um fato consumado para ser desfrutado até pelo mais simples crente em Jesus.
Passaram-se dezoito séculos* desde que o Senhor Jesus designou “o pão e o cálice” na Ceia como significativos símbolos do Seu corpo oferecido e do Seu sangue derramado por nós, e apesar de toda heresia, toda divisão, e toda controvérsia e discórdia, e da guerra de princípios e preconceitos que a página manchada da história eclesiástica registra, esta ordenação tão expressiva tem sido observada pelo povo de Deus em todas as épocas.
*Nota: O autor viveu no século XIX
É verdade que o inimigo tenha conseguido, em um amplo segmento da Igreja professa, envolver a Ceia do Senhor em uma mortalha de negra superstição, apresentando-a de uma maneira tal que efetivamente escondesse do participante a grandiosa e eterna realidade daquilo que é memorial, substituindo Cristo e Seu sacrifício consumado por uma ordenança sem efeito algum - uma ordenança que, além de tudo, pelo modo como é administrada, prova ser de total inutilidade e oposição à verdade. Mesmo assim, não obstante o erro fatal de Roma relativo à ordenança da Ceia do Senhor, a mesma Ceia continua a comunicar, a todo ouvido circunciso e a toda mente espiritual, a mesma verdade profunda e preciosa – ela anuncia “a morte do Senhor até que venha” (1 Co 11:26). O corpo foi oferecido, o sangue foi derramado UMA VEZ, para não ser mais repetido; e o partir do pão nada mais é do que o memorial dessa verdade emancipadora.
Portanto, com que profundo interesse e gratidão deveria o crente contemplar “o pão e o cálice”! Sem que seja proferida uma única palavra, são ali anunciadas verdades ao mesmo tempo tão preciosas quanto gloriosas: a graça reinando; a redenção consumada; o pecado tirado; a justiça eterna introduzida; o aguilhão da morte banido; a glória eterna assegurada; “graça e glória” reveladas como o dom gracioso de Deus e do Cordeiro – a unidade de “um só corpo”, assim batizado por “um Espírito”. Que festa! Conduz a alma, num abrir e fechar de olhos, devolta no tempo, através de um período de mil e oitocentos anos, e mostra-nos o próprio Senhor, “na noite em que foi traído”, sentado à mesa da ceia e instituindo ali uma festa que, desde aquela noite solene até ao raiar da manhã, deveria conduzir cada coração crente, ao mesmo tempo, para a cruz que passou e para a glória que virá!
Desde então, esta festa, e pela própria simplicidade do seu caráter e devido ao profundo significado dos seus elementos, tem condenado a superstição, que iria querer deificá-la e adorá-la, a irreverência, que iria procurar profaná-la, e a infidelidade, que a poria inteiramente de lado. E, além disso tudo, ao mesmo tempo que tem condenado todas estas coisas, ela tem fortalecido, confortado e levado refrigério ao coração de milhões dos amados filhos de Deus. É doce pensarmos nisto - é doce termos em mente, quando nos reunimos, no primeiro dia da semana, em torno da Ceia do Senhor, que apóstolos, mártires e santos têm se reunido em torno deste banquete e encontrado ali, segundo a sua medida de compreensão, refrigério e bênção. Escolas de teologia têm surgido, florescido e desaparecido; doutores e pais têm acumulado volumes de teologia; heresias implacáveis têm obscurecido a atmosfera e rasgado a igreja professa de uma ponta à outra; a superstição e o fanatismo têm mostrado as suas teorias sem fundamento e idéias extravagantes; cristãos professos dividiram-se em inumeráveis seitas - todas essas coisas aconteceram, mas a Ceia do Senhor tem continuado, em meio às trevas e confusão, a contar a sua história simples, mas abrangente: “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Cor. 11:26).
Preciosa festa! Graças a Deus pelo grande privilégio de celebrá-la! E ainda assim ela não passa de um símbolo cujos elementos devem ser, aos olhos naturais, pobres e desprezíveis. Pão partido, vinho derramado - quão simples! Somente a fé pode identificar o símbolo, as coisas representadas, e a fé não necessita das circunstâncias fortuitas que a falsa religião introduziu com o fim de acrescentar dignidade, solenidade e temor àquilo que deve todo o seu valor, seu poder e sua impressionabilidade ao fato de ser um memorial de um fato eterno que a falsa religião nega..
Que eu e você, querido leitor, possamos penetrar com mais alento e inteligência no significado da Ceia do Senhor, e com uma experiência mais profunda nessa bem-aventurança que é o partir aquele pão que é a “comunhão do corpo de Cristo” e o beber daquele cálice que é a “comunhão do sangue de Cristo”.
Ao terminar estas poucas linhas introdutórias, encomendo este artigo aos ternos cuidados do Senhor, rogando a Ele que possa usá-lo para as almas de Seu povo.