Terceira Parte
O presente ofício de Cristo por nós
Daquilo com que já nos ocupamos, aprendemos que o grande resultado da obra de Cristo no passado é o de nos conceder uma posição divinamente perfeita diante de Deus. “Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados”
(Hb 10:14). Ele nos introduziu na Divina Presença, em toda a Sua perfeita aceitabilidade, na credibilidade e virtude do Seu nome, Sua Pessoa e Sua obra; de modo que, como declara o apóstolo João, “qual Ele é, somos nós também neste mundo” (1 João 4:17).
Tal é a firme posição da mais débil ovelha de todo o rebanho de Cristo, comprado com Seu sangue. E nem poderia ser diferente. Ou é isso, ou é eterna perdição. Não há espaço nem para um fio de cabelo, entre esta posição de absoluta perfeição diante de Deus, e uma condição de culpa e ruína. Ou estamos em nossos pecados, ou em um Cristo ressurreto. Não há meio termo. Ou estamos cobertos de culpa ou completos em Cristo. Mas o crente é declarado, pela autoridade que tem a voz do Espírito Santo nas Escrituras, como alguém que está completo em Cristo – perfeito, quanto à sua consciência – aperfeiçoado perpetuamente – limpo de toda mancha – agradável no Amado – feito justiça de Deus em Cristo.
Tudo isso por intermédio do sacrifício da cruz. Aquela preciosa morte expiatória de Cristo forma o fundamento sólido e irrefutável da posição cristã.
“Mas Este, havendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus” (Hb 10:12). Um Cristo assentado é a gloriosa prova e a perfeita definição do lugar do crente na presença de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo, havendo glorificado a Deus acerca de nossos pecados, e tendo suportado Seu juízo contra tudo aquilo que a nossa condição como pecadores exigia, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, assentou-Se para sempre em um lugar que não é só de perdão, aceitação e paz, mas de total libertação do domínio do pecado – um lugar de vitória assegurada sobre tudo o que possivelmente poderia ser contra nós, seja o pecado que habita em nós, o medo de Satanás, a lei ou este presente mundo mau.
Esta é, repetimos, a posição absolutamente firme que o crente ocupa, se é que nos sujeitamos a aprender das Sagradas Escrituras. E rogamos insistentemente para que o leitor cristão não se satisfaça com nada menos do que isto. Não continue a aceitar os confusos credos da cristandade, com seus serviços litúrgicos, os quais apenas levam as almas de volta às trevas, à distância de Deus e ao jugo do judaísmo – esse sistema no qual Deus encontrou falta, e que aboliu para sempre por não estar em conformidade com Sua santa vontade, ou por não satisfazer Seu bondoso coração que concede ao adorador perfeita paz, perfeita liberdade, perfeita proximidade Consigo, para todo o sempre.
Nós solenemente nos dirigimos a todo o povo do Senhor, espalhado pelos vários segmentos da Igreja professa, para que considerem onde se encontram, e para que analisem até onde estão compreendendo e desfrutando da verdadeira posição cristã, conforme nos é apresentada nas diversas passagens das Escrituras que já citamos, as quais podem ser ainda facilmente multiplicadas uma centena de vezes. Comparem, fiel e diligentemente, o ensino da cristandade com a Palavra de Deus, e vejam o quanto se distanciam. Fazendo assim, descobrirão de que modo o cristianismo professo de nossos dias forma um contraste com os ensinamentos vivos do Novo Testamento; e uma das consequências é que as almas são privadas dos preciosos privilégios que a elas pertencem como cristãs, e são mantidas naquela distância moral que caracterizou a economia mosaica.
Tudo isso é por demais deplorável. Entristece o Espírito Santo, fere o coração de Cristo, desonra a graça de Deus, e contradiz as mais claras afirmações das Sagradas Escrituras. Estamos por demais persuadidos de que a condição de milhares de almas preciosas neste exato momento é suficiente para fazer sangrar o coração; e tudo isso se deve, em grande parte, aos ensinos da cristandade com seus credos e fórmulas. Onde é que você irá encontrar, em meio às fileiras comuns à profissão cristã, uma pessoa desfrutando de uma consciência perfeitamente purificada; uma consciência de paz com Deus, produzida pelo Espírito de adoção? Acaso não é verdade que as pessoas são ensinadas pública e sistematicamente, que se trata de uma atitude presunçosa alguém dizer que seus pecados estão todos perdoados – que está selado com o Espírito Santo – que não pode mais se perder, pois está verdadeiramente unido a Cristo pelo Espírito que nele habita? Porventura não são todos estes privilégios cristãos praticamente negados e ignorados na cristandade? E acaso as pessoas não estão sendo ensinadas que é perigoso ser muito confiante – que é moralmente mais seguro viver em dúvida e temor – que o máximo que podemos querer almejar é irmos para o céu após a morte? Onde é que as almas estão sendo ensinadas das gloriosas verdades ligadas à nova criação? Onde estão elas arraigadas e fundamentadas no conhecimento de sua posição em uma Cabeça ressuscitada e glorificada nos céus? Onde estão elas sendo introduzidas no gozo daquelas coisas que são graciosamente dadas por Deus ao Seu povo amado?
Oh, lamentamos ao pensar na única resposta verdadeira que pode ser dada a tais indagações. O rebanho de Cristo está espalhado pelas tenebrosas montanhas e desolados atracadouros. As almas do povo de Deus são abandonadas na enevoada distância que caracterizava o sistema judaico. Desconhecem o significado do véu rasgado, da proximidade de Deus, da consciente aceitação que desfrutam no Amado. A própria mesa do Senhor encontra-se encoberta com as negras e frias névoas da superstição, e cercada pelas repulsivas barreiras de um legalismo negro e deprimente. A redenção efetuada, a completa remissão de pecados, a perfeita justificação diante de Deus, a aceitação em um Cristo ressuscitado, o Espírito de adoção, a bendita e brilhante esperança da vinda do Noivo – todas estas realidades gloriosas – estes patentes privilégios da Igreja de Deus são, na prática, postos de lado pela máquina religiosa da cristandade e pelo seu ensino.
Alguns, talvez, poderão pensar que pintamos um quadro muito obscuro. Podemos apenas dizer – e o dizemos com toda a sinceridade – que quisera Deus fosse só isso! Tememos que este quadro esteja ainda longe da realidade – sim, a realidade é muito mais horrenda do que a pintamos. Estamos profunda e dolorosamente espantados com o fato de que a condição, não apenas da Igreja professa, mas de milhares de verdadeiras ovelhas do rebanho de Cristo, é tal que se a enxergássemos do modo como Deus a enxerga, isso partiria nosso coração.
Todavia, devemos continuar com nosso assunto e, fazendo assim, apresentar o melhor remédio que já poderia ter sido receitado para a deplorável condição de tantos dentre o povo do Senhor.
Falamos da preciosa obra que nosso Senhor Jesus Cristo consumou por nós, levando nossos pecados, e condenando o pecado, nos assegurando a perfeita remissão dos primeiros e a total libertação do último, como poder dominador que era. O cristão é aquele que não está apenas perdoado, mas liberto. Cristo morreu pelo cristão, e este morreu em Cristo. Portanto, encontra-se livre, como alguém que ressuscitou de entre os mortos e está vivo para Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor. O cristão é agora uma nova criatura. Passou da morte para a vida. A morte e o juízo ficaram para trás e nada, além da glória, é o que se encontra diante dele. Ele possui agora uma posição imaculada e um futuro sem nuvens.
Ora, se tudo isso é verdade para cada filho de Deus – e as Escrituras garantem isso – o que mais desejamos? Nada, quanto ao que somos, nada quanto à posição que ocupamos, nem quanto à esperança que temos. Em tudo isso possuímos a mais perfeita e absoluta perfeição; todavia, nosso estado não é perfeito, nosso andar não é perfeito. Continuamos no corpo, cercados de inúmeras fraquezas, expostos a inúmeras tentações, aptos a tropeçar, a cair e a nos desviar. Por nós mesmos, somos incapazes de ter um único pensamento bom, ou de nos mantermos por um momento sequer na bendita posição onde a graça nos colocou. É verdade que temos vida eterna, e que estamos ligados à Cabeça viva no céu, pelo Espírito Santo que foi enviado à Terra, de modo que estamos eternamente seguros. Nada poderá jamais tocar nossa vida, ainda mais se considerarmos que ela está “escondida com Cristo em Deus” (Cl 3:3).
Mas enquanto nada pode tocar nossa vida, ou interferir em nossa posição, ainda assim, considerando que nossa condição é imperfeita e que nosso andar é imperfeito, nossa comunhão é suscetível de ser interrompida, e é por esta razão que necessitamos do atual ofício de Cristo por nós.
Jesus vive à destra de Deus por nós. Sua ativa intervenção a nosso favor nunca cessa por um momento sequer. Ele atravessou os céus, em virtude da expiação consumada, e ali exerce continuamente Sua perfeita intercessão por nós diante de Deus. Ele está ali como nossa justiça permanente, a fim de nos manter sempre na divina integridade da posição e do relacionamento ao qual Sua morte expiatória nos introduziu. Por isso lemos emRm 5.10: “Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela Sua vida”. Assim também, lemos emHb 4.14-16: “Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno”. E, mais uma vez, no capítulo 7:24,25: “Mas Este, porque permanece eternamente, tem um sacerdócio perpétuo. Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles”. E no capítulo 9:24: “Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus”.
Temos também, na primeira Epístola de João, o mesmo assunto apresentado sob um aspecto um pouco diferente: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2:1,2).
Quão precioso é tudo isso para o cristão sincero, que está sempre consciente – perfeita e dolorosamente consciente – de sua fraqueza, necessidade, debilidade e fracasso! Como é possível – podemos indagar justamente – que alguém que tenha seus olhos sobre estas passagens que acabamos de citar, sem mencionar sua consciência própria – o senso de imperfeição de sua própria condição e do seu andar possa colocar em dúvida a necessidade do cristão de um ininterrupto ministério de Cristo em seu favor? Não é espantoso que algum leitor da epístola aos Hebreus, algum observador da condição e do andar do crente mais fiel, pudesse ser achado negando a aplicação do sacerdócio e intercessão de Cristo pelos cristãos hoje?
Em favor de quem – permita-nos perguntar – está Cristo vivendo e atuando agora à destra de Deus? Será que é em favor do mundo? Certamente que não; pois Ele diz, em João17.9, “Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são Teus”. E quem são esses? Será que se trata do remanescente judeu? Não; esse remanescente ainda está para entrar em cena. Quem são eles, então? Crentes – filhos de Deus – cristãos, que estão agora passando por este mundo pecaminoso, sujeitos a falharem e a serem enganados a cada passo do caminho. São estes o objeto do ministério sacerdotal de Cristo. Ele morreu para os tornar limpos: Ele vive para mantê-los limpos. Por Sua morte Ele expiou a nossa culpa, e por Sua vida Ele nos limpa por meio da ação da Palavra pelo poder do Espírito Santo.
“Este é Aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só por água, mas por água e por sangue” (1 Jo 5:6). Temos expiação e somos limpos por meio de um Salvador crucificado. A dupla fonte emanou do lado ferido de Cristo, morto por nós. Todo louvor seja dado ao Seu nome!
Temos tudo, em virtude da preciosa morte de Cristo. O problema é nossa culpa? Ela foi cancelada pelo sangue da expiação. O problema está em nossas faltas diárias? Temos um Advogado para com o Pai – um grande Sumo Sacerdote para com Deus. “Se alguém pecar” (1 Jo 2:1). Ele não diz ‘se alguém se arrepender’. Não há dúvida de que há, e deve haver arrependimento e juízo-próprio; mas como é que são produzidos? Aqui está: “Temos um Advogado para com o Pai”. É a Sua sempre prevalecente intercessão que consegue, para aquele que peca, a graça do arrependimento, juízo-próprio e confissão.
É algo de extrema importância para o leitor cristão ter bem claro em seu entendimento o que se refere a esta verdade cardeal da intercessão advocatícia ou sacerdócio de Cristo. Costumamos erroneamente pensar que quando falhamos em nosso trabalho, precisamos fazer algo de nós mesmos para resolver a questão entre nossa alma e Deus. Nós nos esquecemos até do porquê de estarmos conscientes de nossa falha – antes de nossa consciência se tornar realmente ciente do fato, nosso bendito Advogado esteve diante do Pai para tratar disso; e é à Sua intercessão que devemos a graça de nosso arrependimento, confissão e restauração.
“Se alguém pecar, temos...”– o que? O sangue ao qual devemos recorrer? Não; repare cuidadosamente o que o Espírito Santo declara. “Temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo”. E por que Ele diz “o justo”? Por que não dizer, o bondoso, o misericordioso, ou o que se compadece de nós? Porventura Ele não é tudo isso? Certamente; mas nenhum desses atributos caberia aqui, ainda mais por estar, o bendito apóstolo, colocando diante de nós a consoladora verdade de que em todos os nossos erros, pecados e falhas, temos um representante “justo” diante do Deus justo, o Pai santo, de modo que nossas questões nunca terminem em fracasso. Ele vive sempre para fazer intercessão por nós, e porque Ele vive sempre, “pode também salvar perfeitamente” – salvar até o fim – “os que por Ele se chegam a Deus”.
Que firme consolo existe aqui para o povo de Deus! E quão necessário para nossas almas é estarmos fundamentados no conhecimento e compreensão disso! Há alguns que possuem uma compreensão imperfeita da verdadeira posição de um cristão, por não enxergarem o que Cristo fez por eles no passado; outros, pelo contrário, têm uma visão tão unilateral da condição do cristão que não enxergam nossa necessidade daquilo que Cristo está agora fazendo por nós. Ambos devem ser corrigidos. os primeiros ignoram a extensão e o valor da expiação; os últimos ignoram o lugar e a aplicação que tem a intercessão advocatícia. A imperfeição de nossa posição é tal, que o apóstolo disse: “Porque, qual Ele é, somos nós também neste mundo” (1 Jo 4:17). Se isso fosse tudo, certamente não teríamos necessidade de sacerdócio ou de intercessão advocatícia; todavia a nossa condição é tal, que o apóstolo precisa dizer: “Se alguém pecar”. Isto prova o quão continuamente necessitamos do Advogado. E, bendito seja Deus, nós O temos continuamente; nós O temos vivendo sempre por nós. Ele vive e serve nas alturas. Ele é nossa justiça substitutiva diante de nosso Deus. Ele vive para nos manter sempre justos no céu, e para nos tornar justos quando andamos errado na Terra. Ele é o vínculo divino e indissolúvel entre nossas almas e Deus.