Segunda Parte
A completa libertação do atual poder do pecado
Até aqui temos nos ocupado com aquele aspecto da obra de Cristo que trata da questão do perdão dos pecados, e cremos sinceramente que o leitor deve estar já bem esclarecido e firmado neste importante ponto. Certamente é seu feliz privilégio estar assim, se tão somente receber o que Deus afirma em Sua Palavra. “Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (1 Pe 3:18).
Se, portanto, Cristo sofreu por nossos pecados, acaso não deveríamos conhecer a profunda bênção que é estarmos eternamente libertos do fardo desses pecados? Poderia, porventura, estar de acordo com a vontade e com o coração de Deus que alguém por quem Cristo sofreu devesse continuar em perpétua escravidão, preso e ligado com a corrente de seus pecados, e clamando, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, que o fardo de seus pecados é intolerável?
Se uma condição assim for verdadeira e apropriada para o cristão, então o que foi que Cristo fez por nós? Seria possível que Cristo tivesse levado nossos pecados e ainda estivéssemos atados e presos pelas correntes deles? Será verdade que Ele tenha carregado o pesado fardo de nossos pecados e ainda assim tenhamos ficado agora esmagados sob esse mesmo peso intolerável?
Alguém poderia querer nos persuadir de que não é possível sabermos que nossos pecados estão perdoados – que devemos seguir até o fim de nossa vida em um estado de completa incerteza sobre este assunto de importância tão vital. Se for assim, o que dizer do precioso evangelho da graça de Deus – das boas novas de salvação? Do ponto de vista de um ensino tão miserável, que significado teriam aquelas ardorosas palavras do bendito apóstolo Paulo na sinagoga de Antioquia? – “Seja-vos, pois, notório, homens irmãos, que por Este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por Ele é justificado todo aquele que crê” (Atos 13:38,39).
Se estivéssemos fundamentados na lei de Moisés, em nossa observância dos mandamentos, em nosso cumprimento do dever, em nosso sentimento em como deveríamos agir, em nossa avaliação de Cristo e em nosso amor por Deus, o raciocínio lógico seria que certamente estaríamos em dúvidas e obscura incerteza, visto que não poderíamos ter nenhuma base possível de certeza. Se a nós coubesse fazer algo, ainda que fosse o movimento de uma pálpebra, então, verdadeiramente, seria uma enorme presunção de nossa parte pensar em ter certeza.
Mas se, por outro lado, escutamos a voz do Deus vivo, que não pode mentir, proclamando em nossos ouvidos as boas novas de que por intermédio de Seu amado Filho, que morreu na cruz, foi sepultado, ressuscitou de entre os mortos, e está assentado na glória – que por meio dele somente – por meio dele, sem qualquer coisa vinda de nós – por meio da única oferta de Si mesmo de uma vez para sempre, é pregada a completa e eterna remissão dos pecados, como uma realidade presente, para ser desfrutada agora por cada alma que simplesmente crê no precioso registro de Deus, como poderia ser possível para quem quer que fosse continuar em dúvida e incerteza? A obra de Cristo foi consumada? Ele disse que sim. O que foi que Ele fez? Ele levou os nossos pecados. Terão eles sido, então, levados, ou estarão ainda sobre nós? – quais deles?
Leitor, diga-me quais deles! Onde estão os seus pecados? Estão eles invisíveis como em denso nevoeiro, ou estão ainda, como um grande peso de culpa, em todo o seu poder condenador, colocados sobre a sua consciência? Se eles não foram levados pela morte expiatória de Cristo, jamais serão levados; se Ele não os levou sobre a cruz, você terá que levá-los nas atormentadoras chamas do inferno, para sempre, e sempre, e sempre. Sim; fique ciente disto, pois não há outro modo de se livrar dessa grande e solene questão. Se Cristo não resolveu o assunto na cruz, você deve resolvê-lo no inferno. Assim deve ser, se a Palavra de Deus for verdade.
Mas, glória seja dada a Deus, o testemunho que Ele dá nos assegura que Cristo já sofreu pelos pecados, o Justo pelo injusto, para levar-nos a Deus; não meramente levar-nos para o céu quando morrermos, mas levar-nos a Deus agora. E como é que Ele nos leva a Deus agora? Acaso é estando nós presos e ligados com a corrente de nossos pecados? Com um intolerável peso de culpa sobre nossa alma? Não, de modo algum. Ele nos leva para Deus sem mancha ou mácula ou qualquer acusação que seja. Ele nos leva a Deus em toda a Sua própria aceitabilidade. Acaso há qualquer culpa sobre Ele? Não. Havia, bendito seja o Seu nome, quando Ele permaneceu em nosso lugar, mas ela já se foi – para sempre – lançada como um peso de chumbo nas insondáveis águas do divino esquecimento. Ele foi carregado com nossos pecados sobre a cruz. Deus colocou sobre Ele todas as nossas iniquidades, e tratou com Ele ali por causa delas. A questão toda de nossos pecados, conforme a estimativa que Deus tinha disso, foi abordada em sua totalidade e de modo definitivo, pois foi divinamente abordada, resolvida entre Deus e Cristo, em meio às horrendas trevas do Calvário. Sim, tudo foi resolvido ali, de uma vez para sempre.
Como sabemos disso? Pela autoridade do único Deus verdadeiro. Sua Palavra nos assegura que temos redenção por intermédio do sangue de Cristo, a remissão dos pecados, em conformidade com as riquezas da Sua graça. Ele nos declara, em notas da mais doce, rica e profunda misericórdia, que de nossos pecados e iniquidades nunca mais Se lembrará. Será que isto não é suficiente? Será que devíamos continuar clamando que estamos presos e ligados com a corrente de nossos pecados? Será que devíamos manchar assim a obra perfeita de Cristo? Será que devíamos tornar opaco o brilho da graça divina, e tomar como mentira o testemunho do Espírito Santo nas Escrituras da Verdade? Longe de nós tal pensamento! De modo nenhum. Ao invés disso, saudemos com ações de graças o bendito benefício que tão graciosamente nos foi outorgado pelo amor divino, através do precioso sangue de Cristo.
O gozo do coração de Deus está em perdoar nossos pecados. Sim, Deus agrada-Se em perdoar a iniquidade e a transgressão. É algo gratificante para Ele, e que O glorifica, derramar dentro do coração quebrantado e contrito o precioso bálsamo de Sua misericórdia e Seu amor perdoador. Ele não poupou Seu próprio Filho, mas O entregou, e O moeu no madeiro maldito, a fim de poder deixar fluir, em perfeita justiça, o rico manancial de graça que brota do Seu imenso e bondoso coração, em direção ao pobre, culpado, arruinado pecador, esmagado sob o peso de sua consciência.
Mas se o leitor ainda assim se sentisse disposto a inquirir acerca de como pode obter a certeza de que essa bendita remissão dos pecados – deste fruto da obra expiatória de Cristo – aplica-se a ele, que escute estas magnificentes palavras que saíram dos lábios do Salvador ressuscitado quando comissionava os primeiros arautos de Sua graça: “E disse-lhes: Assim está escrito,e assim convinha que o Cristo padecesse, e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos, e em Seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc 24:46,47).
Temos aqui a grande e gloriosa comissão – sua base, sua autoridade, sua esfera. Cristo sofreu. É esta a base meritória da remissão dos pecados. Sem derramamento de sangue não há remissão de pecados; mas pelo derramamento de sangue, e pelo derramamento de sangue somente, há remissão de pecados – uma remissão tão plena e completa quanto o precioso sangue de Cristo é capaz de efetuar.
Mas onde está a autoridade? “Está escrito.” Bendita e indisputável autoridade! Nada jamais a poderá abalar. Sei, com base na autoridade sólida da Palavra de Deus, que meus pecados foram todos perdoados, todos tirados de vista, todos levados para sempre, todos lançados para trás de Deus, de modo que nunca, em hipótese alguma, poderão levantar-se outra vez contra mim.
Finalmente, quanto ao que diz respeito à esfera. É para “todas as nações”. Isto, sem dúvida, inclui também a mim. Não há nenhum tipo de exceção, condição ou qualificação. As benditas boas novas deveriam ser levadas, sobre as asas do amor, a todas as nações – a todo o mundo – a toda criatura sob o céu. Como poderia eu excluir a mim mesmo de uma comissão de tão amplo alcance? Será que por algum momento duvidaria de que os raios do sol que Deus criou sejam para mim? Certamente que não. E por que iria eu questionar o precioso fato de que a remissão dos pecados é para mim? Nem por um instante sequer. É para mim tão certo como se eu fosse o único pecador sob a abóbada celeste de Deus. A universalidade disso impede qualquer dúvida quanto a ser ou não designada para mim.
E certamente, se precisamos ainda de mais encorajamento, encontraremos no fato de que os benditos embaixadores deviam começar a partir de Jerusalém – o lugar mais culpado sobre a face da Terra. Deviam oferecer a primeira oferta de perdão aos próprios homicidas do Filho de Deus. E é isto o que o apóstolo Pedro faz naquelas palavras de tão maravilhosa e transcendente graça: “Primeiro O enviou a vós, para que nisso vos abençoasse, no apartar, a cada um de vós, das vossas maldades” (Atos 3:26).
Não é possível conceber algo mais rico ou abundante ou magnificente do que isto. A graça que poderia alcançar os homicidas do Filho de Deus pode alcançar qualquer um: o sangue que poderia limpar a culpa de um crime assim pode limpar o mais vil pecador fora dos limites do inferno.
Será que você pode ainda hesitar quanto ao perdão de seus pecados? Cristo sofreu pelos pecados. Deus prega a remissão dos pecados. Ele garante isto em Sua própria Palavra. “A Este dão testemunho todos os profetas, de que todos os que nele creem receberão o perdão dos pecados pelo Seu nome” (Atos 10:43). O que mais você poderia ter? Como é que pode continuar duvidando; como é que pode continuar esperando? E o que está esperando? Você já tem a obra consumada de Cristo e a fiel Palavra de Deus. Isto, com toda certeza, deveria satisfazer seu coração e tranquilizar sua consciência. Permita-nos, então, insistir para que aceite a plena e eterna remissão de todos os seus pecados. Receba em seu coração as doces novas de divino amor e misericórdia, e siga seu caminho jubiloso. Escute a voz de um Salvador ressurreto, falando do trono da Majestade nas alturas, e assegurando a você que seus pecados estão todos perdoados. Deixe que as tranquilizadoras palavras, saídas da própria boca de Deus, penetrem, com seu emancipador poder, em seu espírito atribulado: “Nunca mais Me lembrarei dos seus pecados” (Jr 31:34). Se Deus me fala assim, se Ele me assegura que não Se lembrará mais de meus pecados, não deveria eu estar plena e eternamente satisfeito? Por que deveria seguir adiante duvidando e questionando, quando Deus já falou? O que mais pode dar certeza, se não a Palavra de Deus que é viva e permanece para sempre? Ela é a única base de certeza; e nenhum poder na Terra ou no inferno – humano ou diabólico – pode jamais abalá-la. A obra consumada de Cristo e a fiel Palavra de Deus são a base e a autoridade do pleno perdão de pecados.
Mas, bendito para sempre seja o Deus de toda a graça, não é apenas a remissão de pecados que nos é anunciada através da morte expiatória de Cristo. Só isto já seria um benefício e uma bênção da mais elevada ordem; e, como já vimos, desfrutamos disso em conformidade com a amplitude do coração de Deus, e em conformidade com o valor e a eficácia da morte de Cristo, na estima que Deus tem dela. Mas além da plena e perfeita remissão de pecados, temos também completa libertação do presente poder do pecado. Este é um grande assunto para todo verdadeiro amante de santidade. Em conformidade com a gloriosa dispensação da graça, a mesma obra que assegura a completa remissão dos pecados rompeu para sempre o poder do pecado. Não se trata apenas de terem sido apagados os pecados da vida, mas o pecado da natureza está condenado. O crente tem o privilégio de considerar-se como morto para o pecado. Ele pode cantar, com um coração grato, Por mim, oh, Senhor, aqui já morreste, E eu bem o sei, que em Ti morri assim; Bem vivo estás, a morte venceste,
Agora Senhor Tu vives sempre em mim.
A face do Pai, de graça a irradiar, Já brilha pra mim, a me iluminar.
Esta é a aspiração apropriada a um cristão. “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20). Isto é cristianismo. O velho “eu” crucificado, e Cristo vivendo em mim. O cristão é uma nova criação. As coisas velhas já passaram. A morte de Cristo encerrou para sempre a história do velho “eu”; e, portanto, embora o pecado habite ainda no crente, seu poder está rompido e eliminado para sempre. Não somente a culpa que ele levava está cancelada, mas seu terrível domínio foi totalmente destruído.
É esta a gloriosa doutrina dos capítulos 6 ao 8 de Romanos. O estudante atento desta tão magnificente epístola irá observar que a partir do capítulo 3:21, até o capítulo 5:11 temos a obra de Cristo aplicada à questão dos pecados; e do capítulo 5:12 até o final do capítulo 8 temos outro aspecto da obra de Cristo, ou seja, sua aplicação à questão do pecado – “nosso homem velho” – “o corpo dopecado” – “pecado na carne”. Não há, nas Escrituras, algo como perdão de pecado. Deus condenou o pecado; Deus não o perdoou – uma distinção que é imensamente importante. Deus demonstrou Sua eterna aversão ao pecado na cruz de Cristo. Ele expressou e executou Seu juízo sobre o pecado, e agora o crente pode se enxergar como ligado e identificado com Aquele que morreu na cruz e que está ressurreto dentre os mortos. Ele saiu da esfera do domínio do pecado e entrou naquela esfera nova e bendita onde a graça reina pela justiça.
“Mas graças a Deus”, diz o apóstolo, “que, tendo sido servos do pecado (antes, mas não mais agora), obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E,libertados do pecado, (não meramente tendo ospecados perdoados), fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, pela fraqueza da vossa carne; pois que, assim como apresentastes os vossos membros para servirem à imundícia, e à maldade para maldade, assim apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação. Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte. Mas agora,libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna” (Rm 6:17-22).
Aqui está o precioso segredo de uma vida santa. Estamos mortos para o pecado; vivos para Deus. O reino do pecado terminou. O que é que o pecado tem a ver com um homem morto? Nada. Bem, então, o crente morreu com Cristo; está sepultado com Cristo; está ressuscitado com Cristo, para andar em novidade de vida. Ele vive sob o precioso reino da graça, e tem seu fruto para santidade. O homem que faz uso da abundante graça divina como desculpa para viver em pecado nega o próprio fundamento do cristianismo. “Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Rm 6:2). Impossível. Seria uma negação de toda a posição cristã. Imaginar o cristão como alguém que deve seguir, dia após dia, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, pecando e arrependendo-se, pecando e arrependendo-se, é degradar o cristianismo e falsificar a posição cristã como um todo. Dizer que um cristão deve seguir pecando porque ele tem a carne em si é ignorar a morte de Cristo em um de seus grandes aspectos, e reputar como mentira todo o ensino dos apóstolos em Romanos capítulos 6 a 8.
Graças a Deus, não existe razão por que o crente deva cometer pecado. “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis” (1 jo 2:1). Não deveríamos nos justificar nem mesmo no mais simples pensamento pecaminoso. Trata-se de nosso doce privilégio andar na luz, como Deus está na luz; e com toda a certeza, quando estamos andando na luz, não estamos cometendo pecado. Oh! Saímos da luz e cometemos pecado; mas a ideia normal, verdadeira e divina de um cristão é a de alguém andando na luz, e não cometendo pecado. Um pensamento pecaminoso é estranho ao verdadeiro caráter do cristianismo. Temos pecado em nós, e devemos continuar tendo enquanto estivermos no corpo; mas se andamos no Espírito, o pecado em nossa natureza não irá se manifestar na vida. Dizer que não precisamos pecar é a afirmação de um privilégio cristão; dizer que não podemos pecar é um engano e ilusão.