PRIMEIRA CARTA — À Procura de Almas

ULTIMAMENTE tido grande interesse, e creio estar tendo proveito, em acompanhar, tanto nos evangelhos como no livro de Atos, as várias referências que são feitas à obra de evangelização. Assim, já que você tem se ocupado bastante neste bendito trabalho, achei que não seria inoportuno apresentar-lhe alguns pensamentos que me vêm à mente. Sinto-me mais à vontade fazendo-o na forma de cartas do que se tivesse que escrever um tratado sobre o assunto.

Em primeiro lugar, fiquei muito surpreso com a simplicidade com que a obra de evangelização era levada adiante no primeiro século; bem diferente de muito daquilo que hoje costumamos fazer. Parece-me que, por sermos mais modernos, nos achamos por demais embaraçados nas regras convencionais — por demais presos pelos hábitos da cristandade. Somos tristemente deficientes naquilo que eu poderia chamar de elasticidade espiritual.

Somos propensos a pensar que deve existir algum dom especial para se evangelizar; e que mesmo onde há esse dom especial, deve haver uma grande parcela de engenho e organização humana. Quando falamos de fazer a obra de um evangelista, temos, na maioria das vezes, a ideia de grandes auditórios com audiências lotadas, para as quais se exige uma medida considerável de dom e poder para pregar.

Sei que tanto eu como você cremos que para se pregar o evangelho em público deve haver um dom especial dado pela Cabeça da Igreja; e, mais que isso, cremos, em conformidade com Ef 4:2, que Cristo deu, e ainda dá, “evangelistas”. Isto fica claro se nos deixarmos guiar pelas Escrituras. Mas vejo nos Evangelhos e no livro de Atos dos Apóstolos, que uma boa parte do mais abençoado trabalho evangelístico foi feito por pessoas que não eram especialmente dotadas, mas que tinham um amor sincero para com as almas, e um profundo senso da preciosidade de Cristo e da salvação que Ele dá. E, o que é mais importante, vejo naqueles que eram especialmente dotados, chamados e designados por Cristo para pregar o evangelho, uma simplicidade, liberdade e naturalidade em sua maneira de trabalhar, que ambiciono não apenas para mim, mas também para meus irmãos.

Vamos dar uma olhada nas Escrituras.

Tome como exemplo a bela cena em João 1:36-45: João derrama o seu coração em testemunho acerca de Jesus: “Eis o Cordeiro de Deus!” Sua alma estava absorvida com aquele glorioso Objeto. E qual foi o resultado? “Dois discípulos ouviram-no dizer isto, e seguiram a Jesus.” E depois? “Era André, irmão de Simão Pedro, um dos dois que ouviram aquilo de João, e O haviam seguido.” E o que é que ele faz? "Este achou primeiro a seu irmão Simão, e disse-lhe: Achamos o Messias (que, traduzido, é o Cristo). E levou-o a Jesus.” E depois, “no dia seguinte quis Jesus ir à Galileia, e achou a Filipe, e disse-lhe: Segue-me... Filipe achou Natanael, e disse-lhe: Havemos achado Aquele de Quem Moisés escreveu na lei, e os profetas: Jesus de Nazaré, filho de José... Vem e vê.”.

Aqui está o estilo que sinceramente almejo: esse trabalho individual, essa forma de se ocupar com o primeiro que se encontra no caminho, esse desejo de se buscar primeiro ao próprio irmão e levá-lo a Jesus. Sinto verdadeiramente que somos deficientes nisto. Está bem que reunamos muitas pessoas e preguemos a elas, na medida em que Deus nos dê habilidade e oportunidade para tal. Nem eu nem você escreveríamos uma palavra sequer que viesse a depreciar tal modo de trabalho. Procure sempre alugar salas, salões e auditórios; distribua convites às pessoas; não deixe de tentar todas as formas lícitas de se divulgar o evangelho. Procure chegar até às almas da melhor maneira que puder. Longe de mim esteja jogar desânimo sobre qualquer um que esteja procurando levar adiante a obra de uma maneira pública.

Todavia, acaso sua atenção não foi despertada para o fato de que precisamos mais do trabalho individual? Mais de um modo de tratar sincero, pessoal e privado com as almas? Você não acha que se tivéssemos mais "Filipes” teríamos também mais "Natanaéis"? Se tivéssemos mais “Andrés", teríamos mais "Simões"? Tudo me leva a crer que sim. Há extraordinário poder em um sincero apelo pessoal. Acaso você não tem visto com frequência que é após a mais formal pregação pública ter terminado, e haver iniciado a obra pessoal, que as almas são alcançadas? Então por que há tão pouco disso ultimamente? Porventura não acontece em nossas pregações públicas que, tendo sido entregue a mensagem formal, tendo sido cantado um hino e feita uma oração, todos se dispersam sem nenhuma tentativa de se fazer a obra individual? Não me refiro agora, atente bem para isto, ao pregador — que possivelmente não será capaz de atender a cada caso, mas falo do grande número de cristãos que o escutaram pregar. Viram estranhos entrando no salão, sentaram-se ao lado deles; pode ser que notaram haver neles interesse, viram lágrimas em suas faces; e ainda assim deixaram que se fossem sem um amável esforço sequer de alcançá-los, ou de dar continuidade à boa obra.

Sei que alguém poderá dizer que é muito melhor deixar o Espírito de Deus levar adiante a Sua própria obra, e que poderíamos estar fazendo mais mal do que bem; e que, além do mais, as pessoas não gostam de ser abordadas e iriam considerar isto uma intrusão, acabando por fugir daquele local. Há muito de verdade nisto, e tenho certeza de que você também irá concordar. Temo que grandes disparates sejam cometidos por pessoas indiscretas que se intrometem na sagrada privacidade de uma alma em profundo e santo exercício. É necessário tato e discernimento; em resumo, é preciso que haja uma direção espiritual precisa para se tratar com as almas; para se saber a quem falar e o que falar.

Mas, tendo em mente a necessidade deste cuidado em seu mais amplo aspecto, você há de concordar comigo que, de uma maneira geral, está faltando algo em nossas pregações públicas. Será que não existe falta daquele interesse profundo, pessoal e amoroso pelas almas, o qual poderia se expressar de mil maneiras diferentes, e viesse a atuar poderosamente em nossos corações? Confesso que fico, com frequência, desapontado com o que tenho notado em nossos salões de pregação. Estranhos entram e, sozinhos, têm que encontrar um lugar vago. Ninguém parece se importar com eles. Há cristãos ali que dificilmente mexem o corpo para dar lugar aos visitantes. Não há ninguém que ofereça uma Bíblia ou um hinário. E quando termina a pregação, deixa-se que se vão assim como vieram, sem nenhuma palavra amorosa perguntando se gostaram da verdade que foi pregada; ou nem mesmo um olhar gentil com o qual se poderia ganhar a confiança do visitante e abrir caminho para uma conversa. Muito pelo contrário, há uma gélida introspecção que quase chega a repulsa.

Isso tudo é muito triste; e talvez você me diga que, ao dar uma imagem assim, eu esteja carregando demais nas cores. Ora, a imagem apenas revela a realidade. E o que a torna mais deplorável ainda é que já é sabido que há muitos que frequentam nossas pregações e reuniões com um exercício profundo de alma e estão tão somente desejando uma oportunidade para poderem abrir seus corações para alguém que possa lhes oferecer um mínimo aconselhamento espiritual; todavia, devido à timidez, comedimento ou nervosismo, evitam tomar uma iniciativa e acabam voltando para suas casas tristes e solitários, para chorarem em seus travesseiros, por não terem encontrado ninguém que se importasse com suas almas tão preciosas. Sinto-me persuadido que muito disso poderia ser evitado se aqueles mesmos cristãos que frequentam as pregações do evangelho estivessem mais preocupados na busca por almas; se eles estivessem ali não tanto para seu próprio proveito, mas para serem colaboradores de Deus em buscar e levar almas a Jesus.

Sem dúvida alguma é um grande privilégio para os cristãos escutarem o evangelho pregado de modo pleno e fiel. Mas não seria de menor refrigério se estivessem profundamente interessados na conversão de almas e fossem achados em sincera oração a Deus neste sentido. Além do mais, não iria jamais interferir no proveito pessoal que eles obtêm da pregação, se procurassem cultivar e manifestar um interesse vivo e amoroso naqueles que os cercam, e buscassem, no final da pregação, ajudar qualquer um que precisasse e quisesse ser ajudado. É surpreendente o efeito que é produzido, no pregador, na pregação e em todas as pessoas, quando os cristãos presentes encontram-se verdadeiramente assumindo e exercendo sua elevada e santa responsabilidade para com Cristo e para com as almas. Isto dá um tom diferente à pregação e produz uma atmosfera peculiar que só pode ser entendida quando experimentada, mas que, uma vez experimentada, dificilmente será deixada de lado.

Mas, oh, como é comum acontecer o contrário! Quão frio, quão maçante, quão desalentador para o espírito é vermos toda a congregação se dispersar tão logo acaba a pregação! Nenhum grupo amoroso procurando gastar tempo ao redor dos novos convertidos ou de pessoas ansiosas e cheias de dúvidas. Cristãos experientes presentes ali que, ao invés de ficarem mais algum tempo esperançosos de que Deus possa usá-los, graciosamente, para falar uma palavra oportuna ao cansado, saem a toda pressa como se fosse uma questão de vida ou morte chegarem em casa à uma hora determinada.

Não pense que eu tenha o desejo de estabelecer regras para meus irmãos. Longe de mim tal pensamento. Desejo meramente, na maior liberdade possível, pôr para fora os pensamentos que tenho em meu coração, compartilhando-os com alguém dedicado à obra do evangelho. Estou convencido de que está faltando algo. Tenho a firme convicção de que nenhum cristão estará em boas condições se não estiver procurando, de um modo ou de outro, levar almas a Cristo. E, com base no mesmo princípio, nenhuma assembleia de cristãos estará em boas condições se não for uma assembleia inteiramente evangelística. Todos nós deveríamos estar à procura de almas; e então iríamos descansar assegurados de ver almas transformadas, como resultado disso. Mas se ficamos satisfeitos em seguir adiante, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, sem que vejamos nem mesmo uma folha cair, sem uma única conversão, nosso estado de espírito deve estar verdadeiramente lamentável.

Mas penso estar ouvindo você dizer: Onde estão todas as passagens bíblicas a respeito? Onde estão os muitos exemplos encontrados nos Evangelhos e em Atos? Bem, acho que segui anotando os pensamentos que por muito tempo têm ocupado minha mente; e agora me falta espaço para ir mais além. Mas escreverei uma segunda carta sobre o assunto. Enquanto isso, que o Senhor possa, pelo Seu Espírito, nos tornar mais desejosos de procurar a salvação das almas imortais, usando todo e qualquer meio lícito ao nosso alcance. Que nossos corações possam estar cheios de genuíno amor pelas almas preciosas, e, então, certamente encontraremos os meios de as alcançarmos!