O ENGANADOR

E ACONTECEU que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que vos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se, e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu.” (Atos 16:16-18).

Tratava-se, portanto, de um caso eminentemente calculado para testar a espiritualidade e integridade do evangelista. A maioria dos homens teria dado as boas-vindas a tais palavras saídas dos lábios dessa jovem, como um testemunho de encorajamento à obra. Por que então Paulo se perturbou? Por que não permitiu que ela continuasse a dar testemunho do objetivo de sua missão? Acaso não estava ela dizendo a verdade? Não eram eles servos do Deus Altíssimo? E porventura não estavam anunciando o caminho da salvação? Por que se perturbar então? Por que silenciar uma testemunha assim? Porque provinha de Satanás; e, com toda a certeza, o apóstolo não iria receber um testemunho vindo dele. Paulo não iria permitir que Satanás o ajudasse em seu trabalho. É verdade que ele poderia ter andado pelas ruas de Filipos sendo honrado e reconhecido como um servo de Deus, se tão somente tivesse consentido em deixar o diabo dar uma mão na obra. Mas Paulo nunca poderia concordar com isto. Ele nunca poderia permitir que o inimigo se misturasse com a obra do Senhor. Se assim tivesse feito, teria desferido o golpe mortal ao testemunho em Filipos. Permitir que Satanás colocasse sua mão na obra teria resultado no completo naufrágio da missão à Macedônia.

Para o obreiro do Senhor, ponderar neste assunto é algo da mais profunda importância. Podemos ficar assegurados de que esta narrativa da jovem foi escrita para nossa instrução. Não é apenas um registro do que aconteceu, mas uma amostra do que pode acontecer, e acontece, todos os dias. A cristandade está cheia de falsa profissão cristã. Há multidões de falsos cristãos hoje, espalhados por todos os domínios do cristianismo professo. Triste é dizer isto, mas assim é, e devemos chamar a atenção do leitor para este fato. Estamos cercados, de todos os lados, por aqueles que dão um mero assentimento nominal às verdades da religião cristã. Eles vivem, semana após semana, e ano após ano, professando crer em certas coisas nas quais, na verdade, não creem realmente. Há milhares que, a cada dia do Senhor, professam crer no perdão dos pecados e, ainda assim, se tais pessoas fossem examinadas, seria descoberto que nem pensam sobre o assunto ou, se pensam, desprezam-no considerando uma grande presunção alguém ter certeza de que seus pecados estejam perdoados.

Isto é algo muito sério. Apenas pense em uma pessoa que fica rezando diante de Deus, dizendo: "Creio no perdão dos pecados", e que ao mesmo tempo não está crendo em tal coisa! Poderia algo ser mais endurecedor a um coração, ou mais mortal a uma consciência do que isto? Estamos persuadidos de que as cerimônias e formalismos do cristianismo professo estão ocasionando mais destruição às almas preciosas do que todas as formas de depravação moral colocadas juntas. É verdadeiramente aterrador contemplarmos as incontáveis multidões que estão, neste exato momento, correndo pela bem pavimentada estrada da profissão religiosa, em direção às chamas eternas do inferno. Sentimo-nos obrigados a erguer um sinal de aviso. Queremos que o leitor solenemente dê atenção a este assunto.

Nós tão somente mencionamos um ponto em especial, pois se refere a um assunto de interesse e importância bem abrangentes. Quão poucos, comparativamente falando, estão esclarecidos e bem fundamentados quanto à questão do perdão dos pecados! Quão poucos são capazes de calma, decidida e inteligentemente dizer: EU SEI que meus pecados estão perdoados! Quão poucos estão realmente desfrutando do pleno perdão dos pecados, pela fé naquele precioso sangue que nos limpa de todo pecado! Portanto, quão solene é quando escutamos pessoas rezando palavras como, 'Creio no perdão dos pecados’, quando, na verdade, não creem nas palavras que estão saindo de suas próprias bocas.

Porventura o leitor tem o costume de usar este palavreado? Acaso crê nisto? Diga-me, querido leitor: estão os seus pecados perdoados? Você já foi lavado no precioso sangue expiatório de Cristo? Se não, por que não? O caminho está aberto. Não há nada que impeça. Você é perfeitamente bem-vindo para usufruir, neste exato momento, dos benefícios gratuitos da obra expiatória de Cristo. Ainda que seus pecados sejam como a escarlata; ainda que sejam escuros como a meia-noite, enegrecidos como o inferno; ainda que se elevem como uma pavorosa montanha perante a visão de sua alma atribulada, e queiram fazer com que você afunde na perdição eterna; ainda assim estas palavras resplandecem nas páginas da inspiração com um lustro celestial: "O sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de TODO o pecado". (1 Jo 1:7) Mas atente bem, amigo; não siga adiante, semana após semana, zombando de Deus, endurecendo seu próprio coração e fazendo uso dos métodos do grande inimigo de Cristo, por meio de uma falsa profissão cristã. Era isto o que caracterizava a jovem possessa de um espírito de adivinhação, e sua história aqui está ligada à horrível condição da cristandade atual. Onde estava a ênfase de sua proclamação, durante aqueles “muitos dias” durante os quais o apóstolo cuidadosamente analisou seu caso? "Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo." (Atos 16:17). No entanto ela não estava salva — ela não estava liberta — ela própria estava, o tempo todo, sob o poder de Satanás.

Assim é com a cristandade — assim é com cada falso professo em cada canto da Igreja professa. Não conhecemos nada — nos mais profundos abismos do mal moral, ou nas mais tenebrosas sombras do ateísmo — que seja mais verdadeiramente horrível do que o estado dos descuidados, endurecidos, egoístas e mundanos cristãos professos que, a cada domingo, a cada dia do Senhor, fazem afirmações, tanto em suas orações como em seus cânticos, com palavras que, no que concerne a eles próprios, são totalmente falsas.

O simples pensamento disto é, às vezes, quase desalentador. Não podemos nos ater mais neste assunto. É realmente muito triste. Devemos seguir adiante, depois de termos solenemente alertado uma vez mais nosso leitor contra qualquer indício ou sombra de falsa profissão cristã. Que não venha a dizer ou cantar aquilo que não creia de coração. O diabo está por detrás de toda falsa profissão cristã, e, por esses meios, procura trazer descrédito à obra do Senhor.

Mas quão verdadeiramente animador é contemplarmos a atitude do fiel apóstolo no caso da jovem. Se ele estivesse procurando seus próprios interesses, ou se fosse um mero ministro religioso, talvez tivesse dado as boas-vindas às palavras dela, como uma fonte jorrando reconhecimento para elevar a maré de sua popularidade, ou para promover o interesse em prol de sua causa. Mas Paulo não era um mero ministro de alguma religião; ele era um ministro de Cristo — algo completamente diferente. E devemos notar que a jovem não diz uma palavra sequer a respeito de Cristo. Ela não menciona o precioso e inestimável nome de Jesus. Há um completo silêncio acerca dele. Isto denota que tudo aquilo vinha de Satanás.

“N_inguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo."_ (1 Co 12:3) As pessoas podem falar de Deus e de religião; mas Cristo não tem lugar em seus corações. os fariseus, no capítulo nove de João, podiam dizer ao pobre homem, "Dá glória a Deus"; mas ao falarem de Jesus, diziam, "Esse homem é pecador". (Jo 9:24) E assim sempre ocorre no caso da religião corrompida, ou do falso cristianismo professo. Era isto o que acontecia com a jovem de Atos 16: Não havia uma só sílaba acerca de Cristo. Não havia verdade, não havia vida e nem realidade. Era algo falso e vazio. Era algo que provinha de Satanás; e por esta razão Paulo não poderia, e não iria, aceitá-lo; ele ficou perturbado com aquilo e acabou rejeitando-o completamente.

Quisera todos fossem como Paulo. Quisera existisse em todos um “olho simples” para detectar, e a integridade de coração para rejeitar, a obra de Satanás em muito daquilo que está acontecendo ao nosso redor! Paulo, por graça, possuía esse "olho simples". Alguém queria enganá-lo. Ele viu que a coisa toda era um esforço de Satanás para misturar-se com a obra, a fim de poder neutralizá-la completamente.

Mas Paulo, perturbado, voltou-se, e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu.” (Atos 16:18).

Aquela era uma atitude verdadeiramente espiritual. Paulo não iria, de modo algum, se precipitar e entrar em choque com o mal, ou mesmo tomar alguma posição prematura acerca daquilo; ele esperou muitos dias; mas no momento exato em que o inimigo foi detectado, Paulo resistiu a ele e o expulsou com inquestionável decisão. Um obreiro menos espiritual teria deixado a coisa toda passar, pensando que poderia ser de proveito e auxílio no desenvolvimento do trabalho. Paulo pensava diferente; e estava certo. Ele não iria receber ajuda de Satanás. Não iria trabalhar sob uma tal influência; e, portanto, em nome de Jesus Cristo — o nome que o inimigo com tanto cuidado omitiu — ele põe Satanás a correr.

Porém, mal era repelido como serpente, Satanás já assumia o caráter de um leão. Havendo falhado a astúcia, ele tenta a violência. “E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à presença dos magistrados. E, apresentando-os aos magistrados, disseram: Estes homens, sendo judeus, perturbaram a nossa cidade. E nos expõem costumes que nos não é lícito receber nem praticar, visto que somos romanos. E a multidão se levantou unida contra eles, e os magistrados, rasgando-lhes os vestidos, mandaram açoitá-los com varas. E, havendo-lhes dado muitos açoites, os lançaram na prisão, mandando ao carcereiro que os guardasse com segurança.” (Atos 16:19-23).

O inimigo parece, assim, triunfar; mas deve ser lembrado que os guerreiros de Cristo conquistam suas mais esplêndidas vitórias por meio de aparentes derrotas. O diabo cometeu um grande erro quando lançou o apóstolo na prisão. Na verdade é um consolo pensar que ele nunca fez nada além de cometer grandes erros, desde quando deixou seu estado original até o presente momento. Toda a sua história, do começo ao fim, está formada por erros.

Sendo assim, como já foi assinalado, o diabo cometeu um grande erro quando lançou Paulo na prisão em Filipos. Do ponto de vista do olho natural parecia justamente o contrário; mas, pela análise que vem da fé, o servo de Cristo estava em um lugar que lhe era muito mais apropriado, estando na prisão por causa da verdade, do que se estivesse fora dela à custa da reputação de seu Mestre. Sim, Paulo poderia ter se livrado. Ele poderia ter sido um homem honrado, aceito e reconhecido como um "servo do Deus Altíssimo", se tão somente tivesse aceitado o testemunho da jovem e permitido que o diabo o ajudasse em seu trabalho. Mas ele não podia permitir isso e, portanto, tinha que sofrer. "E a multidão (sempre inconstante e fácil de se deixar influenciar) se levantou unida contra eles, e os magistrados, rasgando-lhes os vestidos, mandaram açoitá-los com varas. E, havendo-lhes dado muitos açoites, os lançaram na prisão, mandando ao carcereiro que os guardasse com segurança. O qual, tendo recebido tal ordem, os lançou no cárcere interior, e lhes segurou os pés no tronco." (Atos 16:22-24).

Alguns bem poderiam dizer que esse era o fim da obra do evangelista na cidade de Filipos. Que ali estava um freio eficaz à pregação. Mas não foi assim; a prisão era, naquele momento, o lugar mais apropriado para o evangelista. Seu trabalho estava ali. Dentro das paredes daquela prisão ele iria encontrar uma congregação que não poderia ter encontrado fora dela. Mas isto nos leva ao terceiro e último evento — ao caso do pecador endurecido.