F. B. Hole

O Livro de JÓ

O Livro de JÓ

Comentário Sobre o Velho Testamento

F. B. Hole

O LIVRO DE JÓ – Comentário Sobre o Velho Testamento

Frank Binford Hole

Título do original em inglês: THE BOOK OF JOBCommentary on The Old Testament

Texto obtido com autorização de STEM Publishing

www.stempublishing.com

Traduzido, publicado e distribuído no Brasil por:

ASSOCIAÇÃO VERDADES VIVAS, uma associação sem fins lucrativos, cujo objetivo é divulgar o evangelho e a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo.

atendimento@verdadesvivas.com.br

Primeira edição em português – Outubro 2020

e-Book v.1.0

Abreviaturas utilizadas:

ARC – João Ferreira de Almeida – Revista e Corrigida – SBB 1969

ARA – João Ferreira de Almeida – Revista e Atualizada – SBB 1993

TB – Tradução Brasileira – 1917

ACF – João Ferreira de Almeida – Corrigida Fiel – SBTB 1994

AIBB – João Ferreira de Almeida – Imprensa Bíblica Brasileira – 1967

JND – Tradução inglesa de John Nelson Darby

KJV – Tradução inglesa King James

Todas as citações da Escritura são da versão ARC, a não ser que outra esteja indicada.

Jó 1-7

Consideramos como sendo quase um milagre que este livro tão antigo tenha sido aceito pelo povo de Israel como parte dos “oráculos de Deus” (ARA), que foram “confiados” em suas mãos (Rm 3:2). Jó deve ter sido contemporâneo de Abraão, mas certamente não era de origem abraâmica e, portanto, era um gentio, e ainda assim nos foi apresentado com palavras de louvor que dificilmente achamos concedidas a qualquer filho de Israel. Além disso, no livro não há alusão à lei na qual o judeu se vangloriava. Portanto, não havia nada que atraísse particularmente o judeu, mas sim aquilo que poderia ofendê-lo. No entanto, através dos séculos, o livro permaneceu e chegou até nós.

Nisso vemos não só a sabedoria de Deus, mas a Sua misericórdia também. Assim que o pecado entrou no mundo, um problema desconcertante se apresentou na morte do justo Abel. Por que os piedosos deveriam sofrer? Se a vida de um homem realmente agrada a Deus, por que esse prazer não poderia ser indicado por um bem estar especial na vida desse homem? Existe, é claro, o problema inverso: Por que os ímpios prosperariam? Isso é tratado no Salmo 73. Porém, muito antes dos dias dos salmistas, Deus achou conveniente em Sua misericórdia resolver o enigma para nós, permitindo que uma extrema catástrofe viesse sobre Jó, e fazendo com que a história fosse registrada e preservada num relato inspirado. A solução foi dada assim que “os oráculos de Deus” começaram a aparecer.

No primeiro versículo, o escritor inspirado – quem quer que tenha sido – deixa muito claro o caráter excepcional de Jó, e no versículo 8 ele registra que uma descrição precisamente semelhante dele havia saído dos lábios do próprio Jeová, mas com o acréscimo de que, em sua piedade, ele superou seus contemporâneos, pois “ninguém há na Terra semelhante a ele”. De todos os homens, portanto, aqui estava o homem sobre quem o sorriso do Todo-Poderoso deveria descansar.

E, de fato, ele havia prosperado bastante na providência de Deus. Ele tinha uma família muito favorecida e imensos rebanhos de animais, os quais representavam riqueza naqueles dias. Ele foi o maior de entre os homens do Oriente, assim como o mais piedoso. Sua piedade abrangeu sua família, assim como a si próprio, pois ele oferecia holocaustos por seus filhos nos dias de suas festividades, para que não houvesse, de nenhuma forma, alguma ofensa. Essa é a imagem apresentada desse homem notável.

Nos versículos 7-12, nos é concedido um vislumbre nos bastidores deste mundo. Satanás, embora sendo uma criatura caída, ainda tem acesso permitido à presença de Deus. Sua expulsão, sendo lançado à Terra, mencionada em Apocalipse 12, ainda é futura. Ele é mencionado nesse capítulo como “o acusador de nossos irmãos”, e é exatamente isso que o vemos fazendo aqui: ele não muda. Ele acusou Jó de egoísta em sua visível piedade: em outras palavras, que ele era em grande parte um hipócrita – exatamente o que encontraremos os seus três amigos insinuando. Satanás praticamente desafiou Deus a testar Jó por alguma catástrofe, quando a piedade profunda de Jó seria derrubada e ele amaldiçoaria o Deus a Quem Jó professava considerar.

O Senhor aceitou o desafio de Satanás e permitiu ao adversário agir contra tudo o que Jó tinha, mas não contra ele mesmo. Satanás agiu prontamente e as catástrofes vieram com um efeito devastador.

Foi uma cena muito instrutiva. Percebemos três causas e dois efeitos. A primeira grande causa é Deus. A segunda causa inferior é Satanás. A terceira causa ainda menor – ou antes, as causas – os sabeus (v. 15), os caldeus (v. 17) e o que os homens chamariam de forças da natureza (vs. 16, 19). O primeiro efeito foi uma varredura completa de toda a família e posses de Jó: o segundo e derradeiro efeito foi um golpe esmagador contra Jó.

O que deve ter se tornado tão esmagador para Jó foi o fato de que quatro agentes diferentes foram empregados. Se uma calamidade gigantesca tivesse atingido tudo, o efeito em sua mente provavelmente não teria sido tão grande. Mas quatro calamidades separadas, todas em um dia, e duas delas sendo o que poderíamos chamar hoje de “atos de Deus”, devem ter feito da ação maliciosa de Satanás algo desestruturador além de todos os nossos pensamentos ou palavras. Arriscamo-nos a pensar que esse conjunto de catástrofes, caindo sobre um homem em um dia, nunca foi igualado em toda a história do mundo.

A piedade de Jó se provou ser não meramente superficial. Deus sabia como sustentar Seu verdadeiro servo, e ele resistiu à prova e não amaldiçoou a Deus. Satanás foi demonstrado como um mentiroso e derrotado. As palavras de Jó “o Senhor deu, e o Senhor tirou” (AIBB) têm sido repetidas milhões de vezes por santos entristecidos, que também bendisseram a Deus em vez de amaldiçoá-Lo, assim como Jó.

Satanás, no entanto, retornou à acusação, embora Deus pudesse novamente dar Seu testemunho ao notável caráter de Jó. Ele sabia muito bem que o próprio corpo de um homem é mais chegado e mais estimado do que tudo o que ele possa possuir, então ele disse: “Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida”. Esta observação do diabo foi uma vez citada em tribunal por um advogado, na intenção de favorecer sua causa. Antes de citar esse versículo ele fez a seguinte introdução: “Como uma grande autoridade disse…”, sentindo que estava bastante seguro quanto ao seu poder de convencimento uma vez que citou a Bíblia! O juiz, que conhecia sua Bíblia melhor do que o advogado, disse calmamente: “Estou interessado em observar quem o sábio advogado cita como sendo ‘uma grande autoridade!’”

Será útil, portanto, lembrar aos leitores de que, neste livro, citamos não apenas as palavras de Satanás, mas também muitas palavras de homens, algumas delas verdadeiras o suficiente, como mostram outras escrituras, mas outras muito abertas a questionamentos. Nenhum desses homens que falaram foram inspirados em suas declarações, embora tenhamos um relato inspirado do que eles disseram, para que a imagem apresentada seja perfeitamente verdadeira. Nunca devemos ignorar a diferença entre revelação e inspiração. Toda a Escritura é inspirada por Deus, mas nem toda palavra encontrada nela é uma revelação de Deus. Quando Salomão escreveu, por exemplo: “Não há nada melhor para o homem do que comer, beber” (Ec 2:24), ele não estava proferindo uma revelação de Deus, mas sua própria tolice – inspirado a registrá-la para nosso aviso.

Mas, voltando à nossa história, com a permissão dada por Deus, Satanás afligiu o pobre Jó com uma doença tão virulenta como jamais registrada, embora não tenha tido permissão para tirar a vida dele. Seu estado se tornou tão assustador e repulsivo que sua própria esposa o incitou ao pecado que Satanás havia planejado para que ele cometesse. Apenas ela foi poupada da família e, assim, tornou-se, talvez sem querer, uma incentivadora do desígnio de Satanás. Mas, novamente, apoiado por Deus, Jó resistiu à prova e não pecou com os lábios. O registro da reação de Jó é desta vez mais negativo do que positivo, notamos que Satanás ainda foi derrotado e, a partir desse ponto, ele desaparece da história.

Aqui, portanto, a história poderia terminar, se o objetivo dela fosse apenas nos mostrar como o poder de Deus triunfa sobre as ações malignas do adversário. Isso é de fato claramente manifestado, mas havia outro ponto; o de demonstrar como esse mesmo poder, juntamente com Sua bondade perscrutadora, triunfou na consciência, no coração e na vida de Seu santo provado, transformando finalmente a catástrofe mais tenebrosa em rica bênção, tanto espiritual como materialmente.

Como um primeiro passo nessa direção, os três amigos de Jó apareceram em cena. No final de Jó 2, eles são apresentados e o que é registrado indica que eles vieram cheios de empatia e com a melhor das intenções. O registro das calamidades de Jó e o horror de seu estado corporal os levou às lágrimas, e os surpreendeu tanto que, durante uma semana inteira, ficaram sentados em sua presença, sem palavras. A realidade de tudo isso excedeu em muito o que eles ouviram. Terrível deve ter sido isso a ponto de reduzi-los a essa condição sem palavras. As expressões de empatia que eles pretendiam proferir se congelaram em seus lábios.

Mas a semana do silêncio teve que terminar. A presença deles, as lágrimas, os mantos rasgados, o pó sobre a cabeça afetaram Jó e finalmente o levaram a quebrar o silêncio. Ele abriu a boca e amaldiçoou o seu dia. Ele não amaldiçoou a Deus, note-se. Ele lançou uma maldição no dia em que nasceu; deplorando o fato de ele não ter morrido quando sua mãe lhe deu à luz. Ele antecipou que, se nunca tivesse visto a luz, estaria “deitado e quieto” (cap. 3:13 – TB) e não nessa aflição terrível. Nos dias de Jó, não havia muita luz quanto ao mundo invisível, mas ele sabia que a morte não significava extinção do ser, mas para o descanso dos santos e liberdade dos problemas causados pelos ímpios, como os que ele experimentara dos sabeus e caldeus. “Ali os ímpios cessam de perturbar**”** (Jó 3:17 – AIBB); de perturbar outras pessoas, não de serem perturbados. Lá aqueles cuja força está esgotada estão em repouso.

Entre a humanidade quase universalmente, um aniversário é uma ocasião de lembrança e gozo. Para o pobre Jó, pareceu um momento para ser deplorado e amaldiçoado. Nos seus dias de prosperidade, ele temia que algum tipo de adversidade pudesse sobrevir. Agora isso o atingira com uma força incomparável. Sua expressão agonizada, registrada em Jó 3, certamente provoca nossa empatia enquanto a lemos, cerca de quatro mil anos depois de ter sido falada.

O silêncio de uma semana sendo quebrado, Elifaz se comoveu a falar. Suas primeiras palavras, no início de Jó 4, têm um espírito gentil e atencioso. Ele reconheceu que Jó havia sido um ajudador e provedor de outros, mas fez uma pergunta pertinente no versículo 6, onde J. N. Darby traduz como: “Não tem sido tua piedade a tua confiança, e a perfeição dos teus caminhos a tua esperança?”

Aqui, acreditamos, Ele colocou o dedo no ponto fraco de Jó, como é mostrado no restante do livro. O caráter e os modos de Jó eram excelentes, certificados pelo próprio Deus, mas, sendo assim, quão sutil é a armadilha para torná-los a base da confiança e esperança de alguém e construir tudo sobre isso, tanto diante de Deus quanto diante dos homens. É o que vários santos muito piedosos têm feito desde os dias de Jó.

Mas em seu próximo parágrafo (vs. 7-11), Elifaz entende mal toda a situação. Ele pergunta: “Quem sendo inocente pereceu?” (cap. 4:7 – JND) Sem dúvida, ele não conhecia Gênesis, aquele livro provavelmente não tendo sido escrito em seus dias, mas as coisas antigas eram conhecidas pela tradição cuidadosamente preservada. O que dizer de Abel? Ele pereceu sendo inocente. Ora, a primeira tragédia registrada depois que o pecado entrou no mundo invalida a posição que Elifaz assumiu. O justo Abel foi cortado. Daí a ideia, que ele elaborou usando a imagem dos leões, se desfez. O resultado da catástrofe não significa necessariamente que aqueles que o colhem “lavram iniquidade e semeiam o mal”.

Do versículo 12 em diante, o ponto de vista de Elifaz vem mais claramente à luz. Ele começa a relatar uma experiência bastante aterradora pela qual passou, quando viu alguma aparição de um espírito, e recebeu uma palavra de advertência quanto à fragilidade e impureza do homem na presença de seu Criador. O que ele ouviu é perfeitamente verdade. Nenhum homem mortal pode ser mais puro ou mais justo do que Deus. Em ambos os aspectos, ele fica infinitamente aquém da glória de Deus.

Quando abrimos em Jó 5, encontramos Elifaz continuando com essa nota e novamente ele se refere ao que havia visto. O versículo 3 começa: “Bem vi eu E se formos para Jó 15, onde está gravado seu segundo discurso, novamente o encontraremos dizendo: “te contarei o que tenho visto**”** (cap. 15:17 – TB). É evidente, então, que seu argumento se baseia principalmente no valor de sua própria capacidade de _observação_. Ele confiava nessas capacidades, para formar sua opinião quanto ao significado das calamidades que caíam sobre Jó.

Algumas das palavras de Elifaz neste capítulo são perfeitamente verdadeiras: por exemplo, “homem nasce para o enfado, como as faíscas das brasas voam para cima” (cap. 5:7 – ARA), neste mundo de pecado. Novamente, sem dúvida é verdade que Deus “apanha os sábios na sua própria astúcia” (v.13) e que “bem-aventurado [feliz – TB] é o homem a quem Deus corrige” (v.17 – AIBB). Mas podemos ver que todos esses fatos progridem de uma maneira que os fez se colocarem contra o pobre Jó. Ele viu homens lançar raízes e, de repente, amaldiçoados, mas estes eram “os loucos [tolos – JND]. Além disso, seus filhos foram feridos e ladrões tragaram suas posses. É óbvio que todas essas observações levaram uma insinuação contra Jó. Ele parecia ser sábio, mas agora fora levado por sua astúcia – assim parecia a Elifaz.

O conselho dado no final de seu discurso foi bom. Jó não deve desprezar o castigo do Todo-Poderoso, mas sim aceitar a correção, e então a maré do mal se transformaria e a bênção apareceria. Os versículos finais falam da libertação de Deus chegando – de uma prosperidade renovada. O versículo 24 diz: “Saberás que a tua tenda está em paz, visitarás o teu rebanho, e nada te faltará”. O versículo 25 fala de uma numerosa posteridade e o versículo 26 do próprio Jó chegando ao seu fim na velhice.

De fato, essas coisas marcaram os últimos dias de Jó como sabemos, mas a insinuação era que a ausência de tal prosperidade naquele momento era punição de Deus por seu pecado que havia permanecido oculto em sua vida no passado. Elifaz encerrou sua fala afirmando com confiança a verdade de seus comentários. “Assim é”, declarou ele, pois ele já o havia inquirido e visto por si mesmo.

Com tudo isso, no capítulo 6 Jó foi instigado a responder, e ele começa reconhecendo que as flechas que o feriram eram do Todo-Poderoso, mas esses amigos não tinham um senso adequado do peso de sua calamidade e tristeza. Animais saciados não expressam angústia por zurros ou mugidos, de modo que ele não clamou sem uma causa ampla. Ele estava sendo alimentado com “comida repugnante” (v. 7 – ARA) e desejava que Deus terminasse com ele completamente, em vez de prolongar sua miséria.

Dos versículos 14-23, Jó censura seus amigos. Ele era o aflito a quem seus amigos deveriam ter pena, se desejassem andar no temor de Deus, mas, pelo contrário, estavam começando a tratar com ele de maneira enganosa. Eles eram como riachos que se secavam pelo calor, exatamente quando eram mais necessários pelas caravanas de Tema ou Sebá.

No versículo 24, começa um apelo mais direto. Ele desafiou seus amigos a deixarem vagas insinuações e darem lugar a acusação direta. Que lhe mostrassem onde errou, para que, ensinado por eles, Jó pudesse se calar. Ele observou com razão: “Oh! Como são persuasivas as palavras retas!” (ARA), mas o que produziu as “censuras” ou “repreensões” de Elifaz? Quantas vezes entre os irmãos em Cristo há vagas insinuações, ou mesmo acusações, que causam estragos, onde “palavras certas”, baseadas em fatos específicos, teriam se mostrado persuasivas e produziriam o bem.

A resposta de Jó continua em Jó 7, e aqui seu discurso parece se dividir em duas partes; versículos 1-10 e 11-21. Não se pode ler a primeira seção sem ser comovido pelos seus apuros. Ele próprio os sentiu profundamente e, portanto, expressou-os de maneira comovente. “meses de desengano” e “noites de aflição [cansativas – JND] eram sua porção, de modo que, assim como um empregado ou trabalhador ansiava pela sombra da noite e pelos salários, ele ansiava pelo fim. Como a lançadeira do tecelão, seus dias fugiram e ele ficou sem esperança. Seu comovente estado é descrito de maneira mais vívida e seus amigos deveriam estar mais cheios de compaixão.

Mas na segunda parte, Jó evidentemente voltou-se para Deus e começou a se dirigir a Ele com sua amarga queixa. Ele percebeu sua própria pequenez. Ele não era algo grande como um mar ou um monstro marinho, e, nos versículos 13-16, ele clama que suas próprias noites são um tormento com sonhos e visões de terror que, ele sente, vêm de Deus. Ele abomina sua vida presente e diz a Deus que deseja morrer.

Mas é perceptível como o tom de sua queixa e clamor muda, quando ele se volta para Deus a partir da presença de seus amigos. Ele é imediatamente levado a perceber a insignificância e até a pecaminosidade da humanidade. Seu clamor é: “Que é o homem?” (v. 17) e embora ele não pudesse responder à pergunta com a luz mais clara concedida a Davi no Salmo 8, ou com toda a luz do Novo Testamento, ele sabia o suficiente para admitir que o homem não é o que deveria ser, e que é uma maravilha que Deus movesse Seu coração para com ele.

No versículo 20, ele vai ainda mais longe. Ele percebeu que Deus não o deixaria em paz e ele confessa pecar. A tradução de J. N. Darby traduz o versículo: “Pequei, o que faço para ti, o Observador dos homens?” e entendemos que “Observador” e não “Guarda” é a tradução correta. Ele sabia que estava sob o olhar de Deus, Aquele que podia perceber o erro onde Jó mal estava ciente disso. E por que Deus não concedeu perdão e removeu o peso de sua carga?

Assim, desde o início, Jó admitiu alguma consciência de culpa, mas, ainda assim, fortalecido por uma vida de piedade e retidão exterior, ele não percebeu a magnitude de sua culpa. Deus estava começando o processo que o levaria a ver quão profunda e tenebrosa era.

O que temos visto dessa mesma coisa em nós mesmos? Temos chegado à confissão de Paulo: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7:18)?

Jó 8-14

Quando Jó encerrou sua resposta a Elifaz, ele confessou: “Pequei”, percebendo que Deus é o Observador da humanidade. Poderíamos esperar que Bildade, quando começasse a falar, fizesse alguma alusão a isso, mas parece que ele não fez. Em vez disso, ele acusou Jó de proferir palavras como o sopro de um vento impetuoso e, para manter a retidão de todos os julgamentos de Deus, insinuou que os filhos de Jó deveriam ter sido tirados como punição da transgressão deles. Deve ter sido um golpe amargo em Jó, já que ele oferecia sacrifícios com muita regularidade por eles. Mesmo assim, ele aconselhou Jó que, se ao menos ele fosse reto e buscasse a Deus, seria abençoado em seus últimos dias.

Nos versículos 8 a 10, Bildade revelou seu próprio ponto de vista no argumento que estava desenvolvendo. Ele deu grande importância aos tesouros acumulados da sabedoria humana. Mesmo nesses tempos remotos, era possível pesquisar nos registros preservados desde os tempos ainda mais remotos. Se Elifaz argumentou a partir de sua própria observação – o que ele pessoalmente tinha visto – Bildade argumentou por tradição – o que poderia ser aprendido com os registros dos dias passados. Ele desconfiava de uma dedução da experiência pessoal de alguém, já que os dias de um homem na Terra são apenas “uma sombra” (TB).

Por isso, no restante do capítulo, ele resumiu o que a tradição ensinaria, ilustrando seu ponto de vista pelas coisas da natureza, como o junco e a teia de aranha. Ele alegou que toda a história mostrou que Deus retribuiu o homem de acordo com os méritos deles. Se for mal, é cortado. Se for bom, é próspero. Dizer a Jó que “a esperança do hipócrita perecerá” foi um golpe desta vez não nos filhos de Jó, mas no próprio Jó.

Isso fez brotar em Jó as palavras marcantes registradas no capítulo 9. Ele começou reconhecendo a retidão dos caminhos disciplinares de Deus, mas levantou a importantíssima questão sobre como um homem poderia ser justo para com Deus. Em nossos dias, a frase conciliatória “Acertar-se com Deus” tem sido usada para despertar o interesse pela mensagem do evangelho. Pode muito bem provocar a resposta: “Sim, mas como isso deve ser alcançado?” Essa é apenas a pergunta feita por Jó no versículo 2, e o restante do capítulo revela quão sério e sincero ele era ao indagar isso, pois sugeriu e examinou quatro respostas possíveis. Cada sugestão começa com um “Se”.

A primeira é, obviamente, o versículo 3. Suponha que o homem adote uma atitude desafiadora e contenda com Deus; o que sucederá então? Fracasso e nenhuma justificação! O pecado transformou os homens em rebeldes; portanto, desafiar a Deus é seu primeiro instinto. Mas Jó viu como essa atitude seria desastrosa. Deus é tão infinitamente grande que nenhum rebelde pode prosperar, e até o versículo 19 ele continua esse tema. A Terra e os céus com suas constelações proclamam a grandeza e a glória do Criador.

No versículo 20, Jó sugeriu outra resposta possível: Como ele poderia ser justo para com Deus? Bem, poderia ele se justificar? Isso significaria pelo menos um abandono da atitude desafiadora e a admissão interior de estar errado, e, portanto, a necessidade de ser justificado. A justificação própria é uma proposta muito atraente, mas Jó apenas a citou para descartar a ideia como impraticável. Ele sabia que tinha apenas que abrir a boca para se condenar. Além disso, aquele que fosse se justificar diante dos olhos perscrutadores de Deus deveria ser capaz de poder demonstrar sua própria perfeição. Nada menos do que isso iria satisfazer, como mostra o versículo 20. Ele continuou afirmando que, mesmo que fosse perfeito, Deus o julgaria e o destruiria, pois ele conhecia a perfeição como é estimada de acordo com os padrões humanos.

No versículo 27, encontramos o terceiro “Se”. Ele não podia desafiar o Deus do céu, nem poderia se justificar: então deveria desistir da esperança, abandonar sua busca pela resposta e entregar-se à negligente procura do prazer? A natureza humana não mudou, pois muitos de nós seguimos apenas a linha de pensamento que Jó divulgou aqui; só que ele imediatamente descartou a ideia, percebendo o quanto era inútil. Se negligentemente esquecermos, Deus não esquece. O pecador não escapa ao julgamento de Deus, recusando-se a enfrentar a questão.

O quarto “Se” ocorre no versículo 30. Jó descartou três sugestões de respostas para sua pergunta; a sugestão de desafio, de justificação própria e de negligente esquecimento. E quanto a uma senda de aperfeiçoamento próprio? Será que isso ajudaria na solução da questão? Ele apenas a declarou para rejeitá-la com igual decisão. Ele sabia que a neve derretida daria água destilada do tipo mais puro, possuindo o maior poder de absorver e remover a contaminação. A figura que ele usou é muito viva. Se ele conseguisse algo assim em seu próprio caráter e vida, então o que aconteceria? Ora, Deus o submergiria em um fosso imundo como o único lugar adequado para ele. E mesmo assim, ele mesmo, por baixo de suas roupas, seria mais sujo do que elas! A contaminação estava em si e não em seus arredores. Sua rejeição da ideia de alcançar justificação por um processo de aperfeiçoamento próprio não poderia ser mais decisiva.

Quão evidente é que Jó sabia que ele era uma criatura pecaminosa diante de seu santo Criador, e que ele não possuía meios de se tornar justo. Sendo assim, sua única esperança estava na intervenção de um mediador; mas nenhum mediador, ou “árbitro”, era conhecido por ele. Seus três amigos não podiam desempenhar o papel, nem qualquer outro homem, uma vez que o árbitro devia ser grande o suficiente para impor uma de suas mãos sobre o Deus Todo-Poderoso, e gracioso o suficiente para impor a outra sobre o pobre Jó doente e pecador.

Quão comoventes são as palavras que encerram este capítulo! Se ao menos houvesse um intermediário eficiente, quão diferente seria; mas, diz Jó, “assim não é comigo” (JND). Já agradecemos a Deus com o fervor suficiente de que assim é conosco? O fato é que, embora ele não soubesse disso, Jó estava suspirando pelo advento de CRISTO. Agora podemos nos alegrar no Único “Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo Homem” (1 Tm 2:5). Por Ele, o preço do resgate foi pago, para que seja possível que um homem seja justo diante de Deus.

Mas, para Jó, não havia uma resposta aparente à sua pergunta; portanto, não estamos surpresos que Jó 10 seja preenchido com suas palavras adicionais de queixa e tristeza, juntamente com comoventes apelos a Deus. Ele havia acabado de dizer a respeito de Deus: “Ele não é um homem, como eu sou” (JND), portanto, sabia que não era nada diante de Seus olhos santos, que sondavam Jó por completo. No versículo 2, ele pediu a Deus que lhe mostrasse a razão pela qual Ele contendia com ele por meio dessas catástrofes. No versículo 6, ele novamente admitiu “iniquidade” e “pecado”; no entanto, no versículo seguinte, ele disse: “Bem sabes Tu que eu não sou ímpio”, usando esse termo evidentemente no sentido em que Elifaz o usa quando chegamos a Jó 22:15.

No entanto, ele sabia que os padrões de Deus eram muito mais altos do que os dele, e, portanto, aflição viria sobre ele se fosse ímpio, e que mesmo se fosse justo, não poderia levantar a cabeça na presença de Deus. Ele estava cheio de confusão; sua aflição aumentou; mais uma vez ele reclamou de ter nascido e, quanto ao futuro, não tinha luz. A morte era para ele como “a terra das trevas”, (ARA) como vemos nos versículos 21 e 22. Temos que passar para os dias do Novo Testamento para obter uma palavra como aquela: “já a verdadeira luz alumia” (1 Jo 2:8).

Ainda hoje existem muitos que consideram a morte como um “salto no escuro”. E, de fato, é assim para aqueles que negligenciam ou rejeitam o Cristo que é apresentado a eles no evangelho. Para um tal, não há desculpa, enquanto para Jó havia toda desculpa. Mais uma vez, afirmamos que a melancolia deste excelente santo dos tempos do Velho Testamento deveria nos levar a muitas ações de graças a Deus, que nos tirou “das trevas para a Sua maravilhosa luz” (1 Pe 2:9).

Em Jó 11, temos o breve discurso de Zofar, o terceiro amigo de Jó, e, lendo-o, notamos que o tom dele é um pouco mais severo até mesmo do que foi o de Bildade. Possivelmente ele estava irritado com o fato de Jó não ter aceitado as acusações e argumentos dos outros dois, mas estava ultrapassando o limite e não estava sendo amigável ao acusá-lo com uma “multidão de palavras”, de ser “falador”, de pronunciar “mentiras” e de zombaria. Nem ele alegou ser “limpo” aos olhos de Deus. Zofar ainda não revelou o ponto de vista do qual ele fala, mas verbalmente declarou que Jó realmente merecia o severo castigo das mãos de Deus que estava recebendo. Vendo que o sofrimento dele excedeu qualquer outro dos quais temos registrado, e que a discussão se concentrou nas tratativas disciplinares de Deus nesta vida, e não olhou para a eternidade, isso novamente nos parece severo e dogmático ao extremo.

Do versículo 7 em diante, no entanto, ele disse algumas coisas impressionantes nas quais há verdade, como mostram outras Escrituras. De fato, é verdade que o homem não pode, por sua busca, encontrar Deus. É igualmente verdade que o homem, sendo pecador, é “vão” ou “vazio” ou “falto de entendimento” e nasce como “a cria do jumento montês”. Zofar evidentemente sentiu que Jó precisava reconhecer essas coisas, sem muita consciência de como elas se aplicavam a si mesmo. Se os homens deste século XX1 as reconhecessem, isso perfuraria seu inflado orgulho. Eles podem descobrir meios de destruir vidas humanas às centenas de milhares, mas não podem encontrar Deus. Ele só pode ser encontrado em Cristo, que O revelou.

As palavras finais de conselho de Zofar (vs. 13-20) também têm verdade nelas. O versículo 14 diz: “se lançares para longe a iniquidade da tua mão” (ARA); isto é, ele novamente assume, como os outros, que, afinal, Jó é um homem mau, fortemente amarrado aos seus pecados. Aqui ele estava errado, embora seu conselho de repudiar o mal e se voltar para Deus fosse bom, e sua descrição do feliz resultado de se fazer isso fosse correta o suficiente.

No capítulo 12, o tom de dogmatismo extremo, tão perceptível na expressão de Zofar, sem dúvida levou Jó a começar sua resposta com uma nota bem sarcástica. Suas palavras: “na verdade, que só vós sois o povo, e convosco morrerá a sabedoria”, quase passaram a ser um provérbio, a ser usado contra o dogmatismo da presunção. Ele alegou ter entendimento igual a seus amigos e, no versículo 5, lembrou-lhes de que ele, que estava naquele lugar escorregadio, brilhava como uma lâmpada de advertência, apenas para ser desprezado por aqueles que estavam em circunstâncias fáceis e confortáveis, como seus amigos estavam.

No versículo 6, Jó desafiou a posição predominante que seus amigos haviam assumido. Eles afirmaram que Deus sempre recompensa os piedosos com prosperidade terrenal e inflige tragédia sobre a cabeça dos ímpios. Jó sustentou que não era assim, mas que havia casos em que os assoladores prosperavam e aqueles que provocavam a Deus estavam seguros. Como prova disso, ele se referiu ao que podia ser visto na criação inferior – animais, pássaros e peixes. Ele aludiu, supomos, à desordem que o pecado do homem introduziu mesmo ali, para que os mais fracos encontrem tragédia e destruição pelos mais fortes, e tudo isso com a permissão de Deus. Assim como o paladar prova o alimento, os ouvidos de Jó provaram as palavras de seus amigos e as considerou inúteis.

Do versículo 13 até o final deste capítulo, Jó reconsiderou as maneiras de Deus ao lidar com os homens. Ele reconheceu que d’Ele são “a sabedoria e a força”, assim como o “conselho e entendimento”. No entanto, ele sentiu que o exercício de Deus dessas maravilhosas qualidades estava cheio de mistério. Reiteradamente aqueles que são grandes e sábios – conselheiros, juízes, reis, príncipes – são corrompidos e rejeitados. Ele viveu nos dias em que, após o dilúvio, surgiram as nações. Ele tinha visto tal crescimento e depois destruição. Homens, que haviam sido tão sábios a ponto de se tornarem chefes do povo, subitamente perdem o entendimento e apalpam no escuro sem luz, ou cambaleiam como um homem bêbado. Ora, por que isso?

Elifaz havia baseado sua condenação sobre Jó no que ele próprio havia observado. Bem, Jó também tinha capacidade de observação, e ele tinha visto todas essas coisas das quais acabara de falar, como afirmou nos versículos iniciais de Jó 13. Ele não alegou ser superior a seus amigos, mas, de qualquer forma, não era inferior a eles, mas reconheceu que os tratos de Deus o confundia, estando muito acima e fora de sua percepção. Portanto, como o versículo 3 indica, o que ele desejava era falar com o Todo-Poderoso e argumentar com Deus, em vez de gastar seu tempo discutindo com seus amigos.

Ainda assim, lá estavam seus amigos, e podemos ver que, a essa altura, Jó já havia sido instigado a revidar de uma maneira mais agressiva. O que ele queria era verdade para sua mente e cura para seu corpo. Eles eram apenas “inventores de mentiras” e “médicos que não valem nada”. Ele os aconselhou a que se calassem e ouvissem o que ele tinha a dizer; e até o versículo 13 ele continuou nesse tom. Ele sentiu que eles conversaram como se estivessem falando em nome de Deus e, ao fazê-lo, haviam representado a Ele incorretamente. Nisso, sem dúvida, Jó julgou corretamente.

Nos versículos 14-19, Deus está diante da mente de Jó ao invés de seus amigos. Podemos discernir dois elementos conflitantes. Por um lado, havia um notável espírito de fé, que o levou a receber tudo o que havia acontecido de Sua mão e a não se preocupar com os agentes das calamidades, que haviam cessado antes que Jó morresse. Ele desejava morrer, e se Deus respondesse a esse pedido e o matasse, ele não perderia a confiança, mas ainda confiaria n’Ele. Isso realmente era excelente, mas, ao mesmo tempo, Jó revelou seu real ponto fraco em sua determinação de “defender” seus próprios caminhos diante d’Ele. Portanto, vemos que, em um santo verdadeiro, pode existir uma fé muito verdadeira em Deus, e ainda assim ser prejudicada por uma medida muito determinada de autoestima. É isso que dá um valor tão grande a este livro notável, uma vez que a carne em nós, que somos santos hoje, é exatamente a mesma de Jó, cerca de quatro mil anos atrás.

Assim é que Jó proclamou que Deus seria sua salvação e que, por fim, ele seria justificado. Mas no versículo 20 ele se dirigiu mais definitivamente a Deus. Ele aceitou suas tristezas como vindas da mão de Deus e pediu que Sua mão fosse tirada dele, para que ele pudesse ficar diante d’Ele em termos mais fáceis. O versículo 23 mostra que, assim que Jó se sentiu estar diante de Deus, ele reconheceu iniquidade e pecados. Ele desejava saber quantos eram, pois sentia, como revelam os versículos seguintes, que o castigo que estava sofrendo ia além do que realmente merecia. Ele era como um homem com os pés no tronco, e, portanto, um alvo fácil para aqueles que desejavam atirar coisas nele.

Ao lermos suas palavras, não podemos deixar de nos comover com elas e não ficamos surpresos com seu clamor de lamentação, que inicia Jó 14. Nos dias longínquos de Jó, a vida humana era talvez três vezes mais longa do que é hoje; mesmo assim era afinal “de bem poucos dias” e eram dias “cheios de inquietação”, como é hoje, de modo que, visto à luz do Deus eterno, ele é apenas como uma flor se murchando ou uma sombra passageira. Jó estava consciente disso em relação a si mesmo e, portanto, sabia que não poderia suportar a inspeção divina, nem comparecer perante Ele em julgamento. Além disso, ele sabia que não era limpo aos olhos de Deus, e tinha certeza de que ninguém poderia produzir o puro daquilo que era imundo.

A tradução de J. N. Darby do versículo 4, coloca a palavra “homem”, em itálico – “Quem pode tirar um homem limpo dos impuros?” Essa é outra das tremendas perguntas que Jó faz, e desta vez ele responde – com razão também. Ninguém pode realizá-lo por si mesmo e muito menos alcançá-lo para os outros. Além disso, quando nos voltamos para o Novo Testamento, descobrimos que Deus não Se propõe fazê-lo. O erro que incomodou os gálatas foi a ideia de que a lei havia sido dada para limpar os homens e, assim, até os Cristãos deveriam se submeter a ela e aceitar a circuncisão como sinal dela, a fim de levar uma vida limpa. A palavra enfática que corrige isso é: “em Cristo Jesus nem a circuncisão é coisa alguma nem a incircuncisão, mas o ser uma nova criação” (Gl 6:15 – TB). O crente não é o “velho homem” limpo. Ele foi novamente criado em Cristo, com uma natureza que, em seu caráter essencial, “não pode pecar”, como afirmado em 1 João 3:9.

Sendo o homem de poucos dias, sua vida neste mundo deve terminar na morte, e o tempo em que ele se vai é determinado por Deus, como o versículo 5 declara. Mas o que aconteceria então? Jó sentiu que era como um assalariado completando seu dia e desejava que Deus lhe desse descanso até que chegasse o fim. Mas novamente, o que aconteceria então?

Temos que passar para o versículo 14 antes de encontrá-lo realmente declarando a terceira tremenda pergunta que ocupou sua mente, mas evidentemente já estava em sua mente quando ele iniciou seu argumento no versículo 7. Ele não sabia como um homem poderia ser “justo” ou “correto” para com Deus. Ele sabia que nenhum homem poderia produzir o que é puro daquilo que é impuro. E agora vem a pergunta: “Morrendo o homem, porventura tornará a viver?” Até agora, neste ponto, nenhuma luz clara e decisiva estava brilhando diante dele e em seu coração.

Sendo assim, ele começou a pensar no assunto. Ele usou a analogia de uma árvore que havia sido derrubada quando por muito tempo sua raiz esteve na terra. Ele viu os anos passarem e o tronco cortado que restara começara a se deteriorar. No entanto, uma mudança havia chegado. Algo aconteceu, um tremor de terra talvez tenha rachado as rochas e aberto um novo canal de água para alcançar suas raízes. Então, como consequência, a árvore morta voltou à vida e brotou novamente. A esperança de Jó era que algo assim estivesse diante da humanidade.

Evidentemente também era mais do que uma esperança, pois no versículo 12 ele deduz que os homens “acordarão” e “se erguerão de seu sono”, mas que isso não iria acontecer “enquanto existirem os céus” (ARA). Como vemos que isso é verdade, quanto às massas da humanidade que morrem em seus pecados, quando lemos Apocalipse 20:11-15. Devemos nos lembrar de que o fato de haver a ressurreição dos justos mil anos antes da ressurreição dos injustos, não havia sido trazido à luz nos dias de Jó. O versículo 13 torna manifesto que Jó em sua mente relacionava o fato da ressurreição com a manifestação da ira de Deus, da qual ele desejava se esconder, e preferia ser lembrado com misericórdia.

As palavras de Jó nos versículos 14 e 15 são muito notáveis. Muitas vezes, podemos ter nos perguntado como a fé de Abraão abraçou as coisas que estão registradas em Hebreus 11:10 e 16, visto que em seus dias não havia revelação pública dessas coisas celestiais, no que diz respeito ao registro da Escritura. Então, foi assim com Jó aqui. Ele reconheceu que tinha um “horário marcado”, quando sua “mudança” chegaria; que haveria um “chamado” divino ao qual ele “responderia”, na medida em que era uma “obra” das mãos de Deus. Ao falar assim, ele foi ensinado por Deus, como podemos ver à luz do Novo Testamento.

Paramos para perguntar se alguma vez agradecemos a Deus de alguma maneira adequada por andarmos à luz da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo de entre os mortos? Já demos peso suficiente em nossa alma à declaração do apóstolo Paulo em 2 Timóteo 1:10, que na tradução de J. N. Darby diz: “nosso Salvador Jesus Cristo, que anulou a morte e trouxe à luz a vida e a incorruptibilidade pelas boas novas”. Imortalidade não é a palavra aqui. Acreditava-se nos tempos do Velho Testamento que a alma do homem sobreviveria à morte e que a ressurreição aconteceria no futuro, como as palavras de Jó aqui mostram, e como o Senhor deixou claro na controvérsia com os saduceus de Seus dias. O que não foi feito conhecido era que, para o santo, a ressurreição significará entrada em uma ordem nova e incorruptível de coisas. Isso foi demonstrado quando nosso Senhor ressuscitou dos mortos. Portanto, não precisamos discutir o assunto e raciocinar sobre ele, como Jó faz aqui. Toda a verdade disso foi claramente revelada.

Assim, Jó tinha uma certa medida de esperança e expectativa, mas, como mostram os versículos finais do capítulo, tudo estava por um momento engolido pelas misérias de sua situação de então. Mais uma vez, o discurso de Jó termina com uma nota melancólica. A última frase do capítulo é: “e sua alma lamenta por si mesmo”.

Não há dúvida de que os excelentes homens que viveram antes de Cristo viram a morte sob essa luz. Uma exibição impressionante disso é vista no caso de Ezequias – leia o que ele foi incumbido de escrever, registrado em Isaías 38:9-14. Ainda não havia amanhecido o dia em que um santo pudesse olhar a morte contemplando-a face a face e escrever sobre “o desejo de partir e estar com Cristo, pois é muitíssimo melhor” (Fp 1:23 – TB). Mais uma vez dizemos: quão grande é o privilégio de viver neste dia do evangelho!

Jó 15-21

O segundo discurso de Elifaz está registrado em Jó 15, e nele podemos detectar um aumento do tom de severidade. Os amigos vieram com a intenção de consolar, mas seus esforços nessa direção logo foram desviados para a discussão; seus temperamentos aumentaram e a amargura estragou o espírito deles, enquanto cada um argumentava para estabelecer seu próprio ponto de vista. Quantas vezes ao longo dos séculos essa tragédia, terminou em dissensão e divisão, estragando o testemunho de pessoas tementes a Deus, até os nossos dias.

Esse discurso de Elifaz é curto, pois ele sentiu que era um homem sábio, argumentando com palavras que de nada servem e ouvindo discursos que nada valiam. Ele considerou que Jó estava fazendo vão o temor; ou como outra versão diz, estava “tornando a piedade sem efeito” (JND) e, assim, restringindo a oração. Na opinião de Elifaz, a piedade tem o efeito proveitoso de trazer sobre alguém o favor de Deus, expresso na prosperidade terrenal. Se não fosse assim, onde estaria o ganho prático da piedade? Portanto, as terríveis aflições de Jó só poderiam ter uma explicação, pensou ele, embora Jó insistisse em manter sua integridade.

Essa ideia de Elifaz e seus amigos é muito comum. Foi encontrada quando Paulo escreveu sua primeira epístola a Timóteo em uma forma muito pior do que nos dias de Jó, pois ele fala de “homens corruptos de entendimento” que se entregam a “contendas”, porque supõem que “a piedade seja causa de ganho” (1 Tm 6:6). A tradução de J. N. Darby parafraseia levemente o versículo, como “sustentando ser o ganho a finalidade da piedade”. Ora, essa era praticamente a opinião de Elifaz, e hoje não há poucas pessoas que concordariam com ele. Eles diriam: Qual é a utilidade de ser piedoso se não garantir coisas proveitosas nesta vida? Ideias desse tipo eram menos censuradas nos dias de Jó, já que as coisas da eternidade e do céu eram pouco conhecidas naquele tempo.

Elifaz agora condenou Jó em termos vigorosos e injustamente, como vemos no versículo 6. Para ele, os argumentos de Jó eram astutos e o condenavam. Ele os enfrentou por meio de uma série de seis perguntas, registradas nos versículos 7-9, todas elas tendo o aguilhão de sarcasmo. No versículo 10, ele alegou que a posição, promovida por ele e seus amigos, tinha a sanção e o apoio de homens muito idosos e veneráveis. Sem dúvida foi assim. Os três amigos de Jó estavam promovendo a ideia geralmente sustentada, talvez baseada na libertação que Deus deu a Noé e sua família quando veio o dilúvio. Então os piedosos eram favorecidos e os ímpios destruídos, e assim, eles achavam, sempre deveria ser.

Mais perguntas seguem nos versículos 11-16. As afirmações de Bildade sobre a santidade de Deus são bastante corretas. Os céus inferiores, profanados pela presença de Satanás, de fato “não são puros à Sua vista” (JND). Suas afirmações sobre a imundície do homem são igualmente verdadeiras; mas a dedução de que Jó deve ser culpado de males secretos, para os quais Jó “fechou os olhos” em vez de os reconhecer, estava incorreta.

Do versículo 17 até o final do capítulo, encontramos uma descrição vívida do julgamento governamental de Deus contra os iníquos. Ele garantiu a Jó que ele realmente havia visto Deus agindo dessa maneira. Foi o fruto de sua própria observação que ele declarou; e, ao encerrar, ele não deixou de fazer acusações indiretas adicionais contra Jó, falando de homens que foram “enganados”, de “hipócritas”, de “tendas do suborno” e de “engano”.

Isso moveu Jó para a resposta registrada em Jó 16 e 17. Todos podemos nos comover com suas palavras iniciais. Seus amigos estavam simplesmente repetindo a mesma ideia básica de várias maneiras; ou seja, que as catástrofes que vieram sobre ele deveriam ter apenas uma explicação. Ele deve ter sido um hipócrita com males ocultos por baixo de seu piedoso exterior. Se esse era o conforto que eles tinham para lhe oferecer, era de um tipo muito miserável. Ele lhes disse imediatamente que se a posição fosse invertida e ele os visitasse em seus infortúnios, poderia falar como eles haviam falado, mas não o faria, mas, ao contrário, tentaria amenizar a aflição deles.

Mas é perceptível que, após sua resposta inicial a Elifaz, as palavras de Jó passaram à oração e queixa, derramadas aos ouvidos de Deus. Parece que os versículos de 9 a 11 são uma referência ao que ele havia sofrido com os discursos de seus amigos e, nesse caso, mesmo isso ele tomou como castigo vindo das mãos de Deus, bem como todas as perdas e tragédias que vieram sobre ele. O fato de ele ter tomado tudo como vindo das mãos de Deus foi realmente bom, mas ainda assim percebemos aquele tom de justiça própria e de autodefesa manchando sua oração, especialmente no versículo 17. Sendo assim, sua oração se tornou numa queixa de que ele estava sendo duramente tratado por Deus, e isso especialmente porque ele sentia que poderia falar de Deus como estando no alto Aquele que era a Testemunha de sua integridade, mesmo que seus amigos o desprezassem.

As palavras de abertura do versículo 21 foram traduzidas por J. N. Darby: “Oh, que houvesse arbitragem para um homem com Deus!” Assim, sua mente se voltou ao seu desejo de um “Árbitro”, registrado no final de Jó 9. Um homem poderia interceder por seu próximo ou amigo, mas ele sentia que não havia ninguém que interviesse entre Deus e ele mesmo, e ele só podia perceber que estava perto de seu fim. Seu espírito se esvaía e a sepultura estava pronta para ele, como declarou no primeiro versículo de Jó 17. Provavelmente, temos pouca noção do estado de extrema e prolongada corrupção e miséria corporal que ele estava enfrentando.

No entanto, algumas percepções adicionais nos são dadas em Jó 17 quanto ao seu estado. Tão extremas eram as declarações de seus amigos que lhes pareciam zombaria. Entre as pessoas em geral, ele havia se tornado um “provérbio”, e a segunda parte do versículo 6 diz: “tornei-me como aquele em cujo rosto se cospe” (ARA). Isso, no entanto, surpreenderia homens retos, e Jó parece virar o jogo contra seus críticos ao insinuar que eles poderiam ser os hipócritas, enquanto os justos se manteriam em seu caminho, e aquele que tivesse as mãos limpas aumentaria em força. Quanto a esses “amigos”, não havia um homem sábio entre eles.

As palavras finais deste discurso de Jó são uma queixa muito triste sobre a desesperança de sua perspectiva. Quanto ao seu pobre corpo, apenas a corrupção e o verme estavam diante dele, quando sua alma estaria no mundo invisível. A palavra traduzida como “sepultura” no versículo 13, é sheol em hebraico, o equivalente a hades no grego, usado no Novo Testamento. Esse comovente lamento poderia muito bem ter tocado o coração de seus amigos.

No entanto, Bildade começa seu segundo discurso, registrado em Jó 18, em uma nota muito dura. Jó certamente ainda não havia chegado ao fim de si mesmo, e nos argumentos de seus amigos não havia nada que o levasse a pôr “fim às palavras” (ARF). A segunda parte do versículo 2 foi traduzida: “Entendei, e depois falaremos” (TB). Bildade evidentemente considerava o repúdio de Jó à posição deles e às afirmações que eles apresentavam, como degradantes para si mesmos como se fossem animais, e por isso se entregou a uma réplica insultuosa. Todos os quatro homens temiam a Deus, especialmente Jó, mas perceba como o espírito que animava as palavras deles tinha se deteriorado!

E que aprendamos uma lição séria com isso. Houve inúmeras discussões entre Cristãos, evoluindo para controvérsias e terminando em recriminação. Tal é a carne em cada um de nós. Mesmo Paulo e Barnabé não estavam isentos, como Atos 15:39 mostra. Então, estejamos avisados.

O restante do discurso de Bildade segue o padrão estabelecido pelos amigos. De várias maneiras, exibindo uma mente muito fértil em sua observação e no uso de figuras, ele reiterou o tema principal; que Deus sempre julga e destrói os iníquos. A dedução, é claro, é que afinal Jó devia ser um homem perverso.

A resposta de Jó, no capítulo 19, a essas palavras bastante cruéis foi em um nível totalmente superior. Eles realmente o estavam irritando com palavras e quebrantando-o em pedaços, mas ele não alegou ser perfeito – longe disso, como vimos em Jó 9. Aqui, no versículo 4, ele admite errar, mas afirmou que seus erros haviam afetado apenas a si mesmo e não a outras pessoas. O que havia acontecido consigo, ele tomou como vindo da mão de Deus, como mostra o versículo 6, mas ele sentiu que Seus tratos eram desnecessariamente severos.

Portanto, nos versículos 7 a 20, temos uma viva descrição das misérias que ele estava sofrendo. Ele reclamou que Deus o havia despojado, cercado seu caminho, destruído por todos os lados, acendido Sua ira contra ele como se ele fosse um dos Seus inimigos. Como resultado disso, ele foi um objeto de desprezo e abandonado por todos. Até seus servos e sua esposa não queriam nada com ele. As palavras com as quais ele encerrou essa descrição de suas tristezas no versículo 20, aludindo ao seu estado físico, passaram a ser um provérbio entre nós.

Tendo assim falado, ele suplicou a seus amigos por compaixão, em vez de polêmica e censura, o que quase resultou em perseguição. Foi a mão de Deus que o tocou – Deus, que era mais misericordioso do que eles. Por isso, ele desejava que suas palavras pudessem ser preservadas em um livro, ou mesmo permanentemente gravadas numa rocha, como era costume naqueles dias por parte de reis e grandes homens. Esses discos de rocha têm sido descobertos e decifrados, mas seu desejo foi concedido de uma maneira mais maravilhosa do que ele imaginava; pois eles foram registrados na Escritura inspirada, que sobrevivem e se distanciam de tudo o mais.

Mas por que ele desejou isso? Foi porque ele sabia que seu Redentor vivia, e que, como “o Último” (JND), Ele Se levantaria sobre a Terra. A tradução de J. N. Darby O apresenta assim – “o Último” – como sendo realmente um nome de Deus, referindo-se a Isaías 48:12. Assim, novamente, e com muita clareza, Jó revelou que sabia que a morte não era o fim de tudo para o homem e que esperava uma ressurreição que tocaria seu corpo. O que não foi então revelado era o estado de incorrupção no qual a ressurreição nos introduz, pois a vida e a incorruptibilidade vieram à tona pelo Evangelho, como temos em 2 Timóteo 1:10 (JND), traduzido corretamente.

Embora a verdade tenha sido progressivamente revelada, certos grandes fatos proféticos surgiram à luz nos primeiros dias. Havia, por exemplo, a profecia de Enoque, proferida antes do dilúvio, embora não tenha sido registrada nas Escrituras até a última epístola do Novo Testamento. Sem dúvida, Jó teria conhecido essa previsão de Enoque, e é notável que nada que ele diga aqui esteja em desacordo com o que é revelado em épocas posteriores. Quando o glorioso Cristo ressuscitar os santos, Jó, entre eles, realmente “verá a Deus” e O verá, como disse, “em minha carne”, embora não soubesse que seria ressuscitado com um corpo espiritual como o corpo de ressurreição de nosso Senhor.

O discurso de Jó neste capítulo termina com um aviso aos amigos. Ele alegou que “a raiz da questão” (v. 28 – JND) foi encontrada em si mesmo, e que o julgamento de Deus é imparcial, para que eles próprios tenham temor.

Isso levou Zofar a falar mais uma vez, e desta vez ele revelou claramente a base sobre a qual seu argumento se apoiava. Ele disse: “os meus pensamentos me fazem responder”; e novamente, “o espírito do meu entendimento responderá por mim”. Elifaz baseou suas observações principalmente no que tinha visto, e Bildade principalmente no que tinha ouvido, transmitido desde os tempos antigos. Zofar baseou suas palavras naquilo em que ele havia chegado em suas próprias cogitações interiores, e, em sua confiança própria de absoluta convicção, não estava nem um pouco atrás dos outros; de fato, parece tê-los superado.

Em 1 Coríntios 2:9, o apóstolo Paulo se refere a Isaías 64:4 e mostra que as coisas de Deus são conhecidas apenas por nós como fruto de revelação. Neste sentido, ele menciona as três faculdades pelas quais a humanidade obtém seu conhecimento das coisas e assuntos neste mundo. O olho os vê; o ouvido os ouve; eles entram no coração por um processo intuitivo. Mas, para as coisas de Deus, precisamos de outra faculdade – aquela que brota do Espírito de Deus.

Ora, é muito impressionante que, como vimos, Elifaz dependesse de seus poderes de observação e Bildade da tradição desde os tempos antigos. Zofar entrou agora, muito certo de que seus poderes de intuição nesse assunto devem estar corretos e além de qualquer contradição. Todos os três estavam errados, e não foi até que houve uma revelação do poder e da sabedoria de Deus, nos últimos capítulos do livro, que a verdade da situação foi colocada com clareza. Somos informados de uma ilustração interessante do que Paulo estabelece em 1 Coríntios 2.

Como nos outros casos, aqui, várias coisas verdadeiras são declaradas. Certamente é fato que “o triunfo dos iníquos é breve, e a alegria dos ímpios é apenas dum momento?” O que não era verdade era a aplicação feita do fato, como fornecendo a explicação de todos os sofrimentos de Jó. O “gozo do pecado” é apenas “por um pouco de tempo”, como lemos em Hebreus 11, mas também é um fato que os santos podem estar “por um pouco contristados com várias tentações”, como lemos em 1 Pedro 1:6. Parece nunca ter entrado na mente dos três amigos o pensamento de um homem piedoso estar sob severa provação e tristeza por um tempo. Eles assumiram que Jó estava recebendo o que ele merecia o tempo todo.

Zofar afirmou que o que ele sabia intuitivamente era apoiado pelo que havia acontecido “desde a antiguidade, desde que o homem foi posto sobre a Terra”. Lendo Jó 20, podemos ver quão implícita estava em suas declarações a insinuação de que Jó era culpado de vários atos de iniquidade. Ele era aquele que havia se esforçado para absorver o sustento dos outros, para oprimir os pobres; que havia tomado violentamente uma casa que não havia construído, e assim por diante. O fato é que o homem que baseia seu argumento em sua própria intuição sempre tem uma convicção absoluta e é pretencioso. Ele tem que ser assim, para compensar a falta de evidências exteriores, o que confirmaria suas afirmações.

Sua conclusão final foi que o céu estava revelando a iniquidade de Jó, e a Terra se erguia contra ele, e tudo isso lhe fora designado por Deus.

A resposta de Jó é registrada em Jó 21, e que provou ser uma resposta incisiva. Naturalmente, ele foi provocado a retaliar com a mesma convicção absoluta e a começar com uma nota de sarcasmo. O versículo 2 foi traduzido: “Ouça atentamente meu discurso e deixe que isso substitua vossas consolações” (JND). Resumir os discursos dos três amigos como sendo “consolação” era, obviamente, uma pitada de sarcasmo. Como ele realmente viu as palavras deles está claro no final do próximo versículo, quando Jó lhes disse que, depois de falar, eles poderiam “zombar!” Ele percebeu completamente a força das palavras deles, que insinuavam que ele devia ter sido culpado de uma grave injustiça e pecado, enquanto o tempo todo aparentava ser um homem de grande piedade.

Seu primeiro ponto é o seguinte: sua queixa não era para o homem, mas para Deus. Se fosse para o homem, bem, seu espírito poderia ter sido “angustiado” ou estaria “impaciente”. Ele lembrou que era com Deus que, tanto ele quanto eles, tinham que tratar. Em vista desse fato, e indicando o trato de Deus com ele, eles poderiam muito bem pôr as mãos na boca e deixar de condená-lo. Por si mesmo, ele se perturbava e ficava apoderado de terror quando se lembrava disso.

A partir do versículo 5, encontramos as contra-afirmações às quais ele se comprometeu. Não era o caso, afirmou ele, que os ímpios estavam sempre sobrecarregados de calamidades. Pelo contrário, eles frequentemente viviam, envelheciam, grandes em poder e prósperos, com seus descendentes estabelecidos diante de seus olhos. Eles tiveram momentos de alegria e prazer e, no final, não tinham prolongado a miséria tal como ele estava enfrentando, mas “num momento descem à sepultura [Sheol – TB]. E o tempo todo, a atitude deles em relação a Deus era: “Retira-Te de nós, porque não desejamos ter conhecimento de Teus caminhos”.

Observemos duas coisas. Em primeiro lugar, Jó aqui diagnosticou corretamente a atitude do homem natural em relação a Deus, cerca de dois mil anos antes de Paulo ser inspirado a escrever sua epístola aos romanos. Ali, no primeiro capítulo, lemos que os homens “tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças”; e novamente que “eles não se importaram de ter conhecimento de Deus” (Rm 1:21, 28 – ARF). Este é o tremendo fato que temos que enfrentar. O pecado alienou tão completamente o homem de Deus que o homem não tem o menor desejo por Ele. “Não há ninguém que busque a Deus”, como Romanos 3:11 declara.

As declarações de Jó nos versículos 14 e 15 concordam com isso e explicam o estado pagão e incivilizado em que os homens se afundaram no estágio inicial da história do mundo – um estado que persiste até nossos dias. Nos primeiros tempos, os homens tinham algum conhecimento de Deus, do qual voluntariamente se afastaram.

E é óbvio que se os homens têm de tratar com Deus, eles terão que servi-Lo. Então, em segundo lugar, eles veem toda a questão do ponto de vista do proveito terrenal. É exatamente isso que as multidões fazem hoje, quando perguntam: qual é a vantagem de ser religioso; o que ganhamos com isso? Eles estão apenas ecoando as palavras que temos aqui: “que nos aproveitará que Lhe façamos orações?” Sabemos que “a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de vir” (1 Tm 4:8). Mas esse tipo de proveito o mundo não tem olhos para ver.

No restante do capítulo, Jó fala do fim daqueles que visam excluir Deus de seus pensamentos e vida. Por fim, uma catástrofe se aproxima deles e sua “lâmpada” é apagada (v. 17). Alguns podem morrer em aparente conforto e prosperidade e outros em amargura; mas todos eles vão para o pó e entre os vermes. Ao dizer essas coisas, Jó parece concordar com o que o Salmo 73 nos diz, com relação à uma experiência do seu escritor. Os iníquos podem se afastar de Deus e parecer prosperar, pois o divino julgamento deles está além desta vida.

Então, mais uma vez, Jó rebate os argumentos de seus amigos, declarando que havia falsidade neles. Consequentemente, embora tivessem vindo consolá-lo, ele descobriu que o “consolo” que eles haviam oferecido era vazio e inútil.

Jó 22-31

A maneira franca de Jó contar a seus amigos que o conforto que eles ofereciam era falso e sem valor, naturalmente levou Elifaz a começar seu terceiro discurso com uma nota ainda mais amarga. Jó certamente estava defendendo seu próprio caráter, mas conferia isso algum proveito ou benefício ao Todo-Poderoso pela justiça e perfeição que Jó alegava? E Deus entraria em julgamento com Jó como se ele fosse igual a Ele? Só poderia haver uma resposta para essas perguntas, e seria salutar que Jó percebesse qual era. Como nosso Senhor disse a Seus discípulos, a confissão de todos nós deve ser: “Somos servos inúteis, porque fizemos somente o que devíamos fazer” (Lc 17:10).

Mas, tendo proferido essas sábias palavras, Elifaz mergulhou em uma série de acusações contra Jó, que, à luz do testemunho que Deus prestou a ele no início da história, devem ter sido totalmente infundadas. Essas acusações enchem os versículos 5 a 9 e, lendo-os, podemos ver o que provocou Jó a cantar seus próprios louvores, como ele faz em Jó 29. Elifaz não se ocupou de vagas insinuações, mas afirmou o erro de Jó em relação aos necessitados, aos nus, aos cansados, aos famintos, aos viúvos e órfãos. Em Jó 29, Jó refuta essas coisas e é igualmente explícito ao declarar quão bem ele havia agido para com essas mesmas pessoas.

No versículo 13, Elifaz supõe que o mal tinha sido essencialmente em segredo e que Jó assumiu que Deus não conhecia sua impiedade – outra suposição falsa. Nos versículos 15-18, temos uma referência ao dilúvio. Jó acabara de falar de homens iníquos, que disseram a Deus: “Retira-Te de nós”, e aqui Elifaz pergunta se ele realmente se preocupara com isso, como mostrado no mundo antediluviano. O que os homens fizeram depois do dilúvio, quando mergulharam na idolatria, foi exatamente o que havia sido feito antes do dilúvio. Elifaz tem toda a razão em dizer que a raiz de toda a terrível maldade dos homens era o afastamento de Deus e por terem excluído a Ele de sua vida e pensamentos.

Nesse ponto, podemos muito bem fazer uma pausa e considerar nossa própria época. A afirmação de Jó no capítulo anterior era que, como frequentemente acontecia, quando Deus permitia que homens iníquos prosperassem, eles desejavam que Deus se afastasse deles, pois não desejavam Seus caminhos. Agora, Elifaz afirmou que os homens maus do passado excluíram Deus de seus pensamentos e de sua vida, e foram destruídos pelo dilúvio. O argumento de Jó era que Deus frequentemente favorecia os ímpios e o julgamento deles só chegava ao final, enquanto Elifaz insistia que Deus intervinha em julgamento, como o dilúvio havia testemunhado. Parece que ambos estavam certos, e em nossos dias podemos ver os resultados desagradáveis nos homens que excluíram Deus de seus pensamentos e de sua vida. Se Deus é assim colocado fora, todo tipo de mal entra.

Quão verdadeira é, portanto, a exortação de Elifaz no versículo 21. O conhecimento de Deus realmente leva à paz e ao bem como resultado final, mas no princípio leva à profunda inquietação e problemas, como Jó teve que enfrentar. Antes de alcançar o bem, registrado no final do livro, ele teve que experimentar a angústia do julgamento próprio – ver Jó 40:4 e 42:6.

No entanto, por trás deste versículo e também dos seguintes, está a antiga suposição de que Jó não conhecia a Deus, de que estava longe d’Ele e de que precisava voltar e se afastar de sua iniquidade, pois isso estava trazendo todo esse castigo sobre ele, e, assim, encerrou com uma descrição brilhante de todas as vantagens que Jó teria se o fizesse. O último versículo diz: “E livrará até ao que não é inocente” e, em suas palavras finais, Elifaz parece afirmar que, se Jó pelo menos tivesse mãos limpas ele livraria outras pessoas, assim como a si mesmo.

O próximo discurso de Jó ocupa os capítulos 23 e 24, e é notável por ele não fazer referência direta ao que Elifaz acabara de expor.

Jó 23 tem a natureza de um lamento com uma grande dose de tristeza. Aqui ele estava cheio de amargas queixas, mas sentindo que o peso do golpe que caiu sobre ele estava além de qualquer gemido que tivesse proferido. O golpe veio de Deus, mas ele não sabia onde Ele estava nem como poderia encontrá-Lo. Se ele pudesse encontrá-Lo e expor sua causa diante d’Ele, ele sentiu que o alívio viria e que seria libertado – o versículo 7 diz: “Ali o reto pleitearia com Ele, e eu me livraria para sempre do meu Juiz”. Assim, mais uma vez, Jó assumiu sua própria retidão, e sua queixa era que estava sendo afligido pelo Todo-Poderoso, a Quem ele não podia alcançar e em cuja presença ele não podia entrar.

No entanto, Jó ainda tinha confiança, como mostra o versículo 10, que Deus conhecia todo o caminho de sofrimento que ele estava trilhando, que nisso estava sendo provado e que, como resultado, sairia como ouro no final. Na verdade, esse foi o fim alcançado, mas, suspeitamos, não da maneira como Jó esperava. Até o momento, cheio de confiança em sua justiça própria, ele esperava ser aprovado por Deus. Ele saiu como ouro, mas como fruto de sua humilhação no seu julgamento próprio diante de Deus, e então ele foi elevado e abundantemente abençoado.

O versículo 12 é impressionante e frequentemente citado. Mas as palavras traduzidas “o meu alimento” são literalmente “a minha porção” (ARF). A tradução de J. N. Darby diz: “o propósito do meu próprio coração”. Lendo assim, podemos muito bem desafiar nosso próprio coração se estamos preparados para deixar de lado nossos próprios propósitos pela sujeição às palavras de Deus.

O primeiro versículo de Jó 24 apresenta uma questão, cuja força exata não é facilmente discernida. Mas parece que no restante do capítulo Jó está recontando os males que enchiam a Terra em seus dias, que continuavam sem julgamento até que o túmulo fechasse a história dos ímpios, dando sentido e força à pergunta que ele fez. Sendo assim, a última parte do versículo 1 significaria: “Por que os que temem a Deus não veem dias de Seus juízos caindo sobre as cabeças dos ímpios?” Uma pergunta muito pertinente, semelhante à que foi levantada no Salmo 73. No final do capítulo, Jó, assim como o salmista, vê o julgamento finalmente chegando sobre os ímpios. Mas, vendo que isso não acontece agora, Jó desafiou todos os que se achegavam a refutá-lo e provar que ele era um mentiroso.

Pela terceira vez, Bildade falou, conforme registrado em Jó 25. Tal como Elifaz, assim aconteceu como Bildade, cada discurso era mais curto que o anterior, mostrando que seus poderes de compaixão, como também de argumentação, estavam se esgotando. Além disso, parece haver pouca referência às declarações de Jó no que Bildade disse. Sua descrição da grandeza e glória de Deus é bela e quase poética, e o que ele diz sobre o pecado, a impureza e a insignificância do homem, que é como um verme diante de seu Criador, é igualmente verdadeira. Mas ele só pôde reiterar a pergunta que Jó fez em Jó 9, “Como seria justo o homem perante Deus”, sem fazer qualquer tentativa de responder ou expressar o desejo de um mediador, como Jó havia desejado. Para Bildade, esta era uma pergunta irrespondível, e talvez achasse que ela desse algum tipo de desculpa para o pecado, com o qual ele e seus amigos tinham estado acusando o desventurado Jó.

Isso levou Jó a abrir a boca pela nona vez, em um discurso mais longo que todos os outros. Como seus argumentos contra sua acusação estavam falhando, suas justificativas para sua defesa aumentaram. As breves palavras de Bildade foram de um tipo mais brando, mas antes que Jó mostrasse que também poderia falar em termos brilhantes da grandeza de Deus, ele se entregou aos sarcasmos que enchem os versículos 2 e 3 de Jó 26. Para nós, parece óbvio que os discursos dos amigos não foram úteis, nem salvadores, nem sábios, mas Jó, sendo humano, não perdeu a oportunidade de lançar essas provocações contra eles. Outras versões traduzem as palavras iniciais do versículo 4, “Para quem”, em vez de “Por Quem” (JND). Isso significaria que Jó desejava que eles se lembrassem de que, embora as palavras deles tivessem sido dirigidas a ele, eles realmente estavam falando na presença de Deus e, além disso, falando num espírito incorreto.

A descrição de Jó quanto ao poder criador de Deus é impressionante. O versículo 7, em particular, mostra como esses santos do passado, vivendo no temor de Deus, até onde Ele tinha sido então revelado, tinham um conhecimento simples e verdadeiro das coisas criadas, muito distantes das ideias fantásticas acolhidas, mesmo pelos eruditos, quando a mente havia se obscurecido ao se afundar na idolatria.

Ele sabia que Deus tinha operado pelo Seu Espírito ao adornar os céus, o que os incrédulos instruídos dificilmente admitiriam hoje; e, ao mesmo tempo, ele estava consciente de que o que se sabia em seus dias era apenas uma parte de Seus caminhos, e seu comentário foi: “Que sussurro de uma palavra ouvimos d’Ele!” (JND) Deixe esse comovente clamor de Jó se aprofundar em nosso coração. Ele tinha apenas um “sussurro de uma palavra” quanto a Deus. Israel sabia algo do “trovão de Seu poder”, quando no Sinai, por meio de Moisés, a Lei foi dada. Temos o grande privilégio de conhecer e desfrutar da “graça e verdade” que veio por Jesus Cristo, e ainda mais de andar na luz “do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo” (2 Co 4:6). Podemos muito bem dar graças a Deus, que nos tirou das trevas para Sua maravilhosa luz.

Que testemunho impressionante temos neste livro – um dos mais antigos do mundo – de fatos que se destacam claramente no Novo Testamento. Aqui estão os santos patriarcais, vivendo apenas alguns séculos após o dilúvio, com um conhecimento de Deus de acordo com a revelação primitiva de Si mesmo. Os homens não evoluíram do paganismo para o conhecimento de Deus, mas o contrário. Como Romanos 1 diz: “Porquanto, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus” e novamente: “como eles se não importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou. Por mais que Jó fosse obstinado em sua justiça própria e seus amigos em seus pensamentos, eles não excluíram Deus de seu conhecimento. Ele estava muito presente nos pensamentos deles.

As palavras iniciais de Jó 27 indicam que nesse momento Jó se deteve, esperando que Zofar falasse; e, aparentemente, ele se deteve novamente no final de Jó 28. Mas nenhuma resposta foi dada. Isso não surpreendeu, pois o homem que baseia sua posição na intuição tem uma esfera de argumentação muito restrita. O homem que argumenta a partir de sua própria observação pode ter um amplo campo de visão e, portanto, muito a apresentar. Assim também é o homem que investiga a história passada e argumenta com base na tradição. Mas o homem que argumenta apenas sobre o que pensa, com as ideias que ele intuitivamente formou, poderá argumentar com grande força em sua presunção própria; mas se seus pensamentos forem refutados, não há muito mais que ele possa dizer.

Assim Jó retomou seu discurso, tocando num assunto muito solene, como fazendo um juramento diante de Deus. Ao afirmar sua própria integridade e verdade, ele acusou seus amigos de serem os que falavam falsidade e engano, enquanto ele mantinha firme sua justiça com a máxima determinação. Essa “justiça”, como Jó 29 nos mostrará, estava relacionada com sua conduta exterior, pois a luz perscrutadora de Deus ainda não havia penetrado na alma de Jó. Ele havia sido acusado de ser um enganador e um hipócrita. Ele sabia que não era isso e não se declararia culpado nem por um momento. Também sabemos que ele não era culpado, mas a retidão exterior por si só não serve como justiça na presença de Deus. As próprias palavras de Jó aqui provam isso, pois o modo como ele reclama de Deus no versículo 2 mostra que seu coração não era correto diante de Seus olhos.

No restante do capítulo, encontramos Jó aprofundando sobre a maneira como Deus trata com o hipócrita. Ele estava praticamente acusando seus amigos de serem hipócritas em suas acusações contra ele, então parece que suas palavras eram um aviso para eles de que esse poderia ser o destino deles, algo semelhante ao que havia acontecido com ele.

Ele prossegue nisso – Jó 28 – com as notáveis palavras sobre a busca do homem por sabedoria. Nos seus dias, a mineração era praticada: poderia ter sido uma nova busca, seja por ferro ou cobre, ouro, prata ou pedras preciosas. Eles cavavam, desviavam o córrego subterrâneo, eles faziam caminhos inexplorados pelo mais forte dos animais ou o pássaro de visão mais aguçada. Mas em toda essa busca eles nunca encontraram sabedoria. Essa é a questão que ele levantou no versículo 12 e afirmou com muita razão que não poderia ser encontrada nessas atividades humanas. Os homens podem descobrir muito e, desde os dias de Jó, descobriram muito mais, mas a sabedoria lhes escapa. Se Jó pudesse ter tido um vislumbre das atividades e descobertas do homem em nossa era atômica, ele diria o mesmo, apenas com ênfase cem vezes maior.

Então, “Onde se achará a sabedoria?” (v. 12). Jó começa a responder a isso no versículo 23. Deus, que a entende, conhece seu caminho e a declarou ao homem, como diz o versículo 28. O temor do Senhor é a sabedoria; e apartar-se do mal é a inteligência”. Em todas as declarações feitas durante essa prolongada discussão, nenhuma coisa mais verdadeira e sábia foi dita. Em Provérbios 9:10, encontramos Salomão fazendo uma declaração semelhante, e isso é comprovado na história da Igreja primitiva, como vemos em Atos 9:31.

À medida que o temor de Deus se afasta do coração do homem, também aumenta sua vontade própria, que produz insensatez sem fim. Na era atual, o conhecimento e a inteligência do homem subiram a níveis nunca sonhados há um século, e sua loucura destrutiva ameaça descer a profundidades nunca sonhadas. O Salmo 36:1, citado em Romanos 3:18, expõe a raiz disso tudo.

Conforme Jó continuou sua parábola no capítulo 29, ele suspirou por um retorno aos dias de sua prosperidade e, lembrando-se das acusações de Elifaz, que vimos no capítulo 22, Jó começou a proferir elogios à sua própria pessoa. Que luz e magnificência lhe pertenciam! Que respeito e até reverência prestou a si mesmo! E então ele declarou seus atos de benevolência, retidão e justiça, pelos quais julgava ter direito a um tratamento muito preferencial em bênçãos vindas da mão de Deus.

Jó 29 tornou-se assim um dos grandes capítulos do “eu” da Bíblia. Eclesiastes 2 é o capítulo do “eu” de Salomão onde esse pronome pessoal ocorre 16 vezes nos primeiros 9 versículos: o verdadeiro capítulo do “eu” auto gratificado. Jó 29 é o capítulo do “eu” auto satisfeito. Romanos 7 é, naturalmente, o capítulo do “eu” auto condenado. E ser auto condenado é muito melhor do que ser auto gratificado ou auto satisfeito. O melhor de tudo é ser auto eclipsado, como encontramos Paulo em Filipenses 3, onde ele menciona “eu” muitas vezes.

Mas nosso capítulo registra como Jó teve permissão de se deixar levar e entoar seus próprios louvores, e assim nos revelar a justiça própria e a presunção que se encontravam no fundo do seu coração, escondidas de todos os olhos, exceto dos de Deus. Trazer isso à tona e levar Jó a julgá-las e a julgar a si mesmo na presença de Deus, era o objetivo que Deus tinha ao permitir que Satanás trouxesse essas provações extremas sobre ele.

No momento, porém, Jó estava cheio das grandes e excelentes coisas que ele havia feito e da posição de liderança entre seus companheiros que havia sido sua como resultado. Isso apenas tornou mais vívido o contraste de sua condição atual, e a isso ele se voltou no lamento triste registrado em Jó 30. Ele agora se tornara o escárnio do mais baixo dos homens, e até do mais jovem dentre eles. Eles poderiam compor canções sobre sua miséria e até cuspir no seu rosto – um insulto verdadeiramente cruel. No versículo 20, porém, Jó se voltou para Deus e fez uma queixa amarga a Ele, e até contra Ele. Jó sentiu que Deus havia Se oposto a ele, rejeitando-o e desconsiderando suas orações e pedidos, e assim teria Se “tornado cruel” contra ele. Pobre Jó! Sem dúvida, homens haviam se tornado cruéis contra ele, e agora Jó achava que Deus também Se tornara cruel contra ele. Nos versículos finais deste capítulo, ele descreveu o estado extremo de fraqueza corporal, miséria e corrupção para o qual foi levado. Deus havia dado a Satanás permissão para fazer o pior que quisesse, sem tirar-lhe a vida. Com habilidade maligna, Satanás reduziu seu corpo a um estado de doença repugnante que, supomos, nenhum homem sofreu antes ou depois; pois em todos os outros casos a vítima teria morrido antes que uma quantidade tão grande de problemas corporais pudesse se desenvolver. Não julguemos Jó severamente. Em uma situação tão assustadora como a dele, provavelmente deveríamos ter dito coisas muito piores do que ele.

Tendo proferido essas tristes queixas, Jó encerrou seu longo discurso, como vemos em Jó 31, com uma série de afirmações quase que equivalendo a juramentos. Seus amigos o acusaram de pecados específicos e de mal proceder. Quanto a essas coisas, sua consciência estava limpa, porém, como vimos, ele admitiu que não era puro aos olhos de Deus. Assim, ele afirmou veementemente que não havia cometido os tipos de mal que foram alegados ou insinuados.

O capítulo 31 dá testemunho do fato de que, antes de a lei ser dada, um alto padrão de moralidade ainda era encontrado entre os homens tementes a Deus; um padrão que dizia respeito não apenas ao ato exterior, mas também ao motivo interior que dirigia o ato: veja, como exemplos disso, ele falou do que pensava, ou não pensava, no versículo 1; de seu coração caminhando após seus olhos, no versículo 7; e, novamente, seu coração sendo secretamente seduzido, no versículo 27; e de esconder sua iniquidade e cobrir seus pecados, como fez Adão, no versículo 33. Isso pode nos lembrar do Sermão da Montanha; particularmente se compararmos suas palavras no versículo 30 com as palavras de nosso Senhor em Mateus 5:24, uma vez que apenas desejar uma maldição ao seu inimigo seria um pecado.

Mais uma vez, ele sabia que o engano e a falsa testemunha eram coisas erradas (v. 5); que o adultério (v. 9) e a idolatria eram coisas erradas (vs. 26-28), já que o culto ao Sol e à Lua era a forma mais primitiva que a idolatria assumia. Assim também sabia que ele não deveria cobiçar o que seu vizinho possuía, mas, em contraste, ele deveria ser um doador para as necessidades dele, como vemos nos versículos 13-22.

Portanto, é evidente que o padrão de conduta que Jó tinha diante de si era muito alto, e imaginou que o havia observado rigidamente. Ele sabia também que haveria um dia em que Deus Se levantaria e o visitaria e ele perguntou: “que Lhe responderei?” (v. 14 – TB) Revendo todas essas coisas, Jó sentiu que poderia invocar uma maldição sobre si mesmo, se não o tivesse observado: que em sua terra poderiam crescer “espinhos em lugar do trigo, e plantas daninhas em lugar de cevada” (cap. 31:40 – TB). Com isso, Jó também caiu em silêncio.

O fim que o Senhor alcançou com Jó é ainda mais impressionante pelo fato de que, em minha opinião, essas afirmações de si mesmo estavam corretas. No início, Jeová testemunhou que Jó era perfeito (JND) e reto, e quando finalmente interveio, Ele não pronunciou palavras de contradição. É justamente isso que transmite uma força tremenda ao absoluto aborrecimento e julgamento próprio que brotou dos lábios de Jó, antes que ele fosse abençoado no final da história.

Jó 32-37

Após o silêncio ter caído sobre todos os quatro participantes, um novo orador apareceu e ele também é apresentado a nós de uma maneira que mostra que estamos considerando uma história e não um romance. Ele era descendente de Buz, sobrinho de Abraão, como mostra Gênesis 22:21. Nos primeiros dias após o dilúvio, quando a população era pequena, a duplicação de nomes não seria comum.

Agora Eliú é um nome com um significado que é dado a nós como “o próprio Deus”. Se tivermos isso em mente, e depois lermos o versículo 6 de Jó 33, veremos que ele interveio para desempenhar o papel de mediador, e assim se tornar uma figura – embora fraca – do verdadeiro Mediador, o Senhor Jesus Cristo, Quem é o próprio Deus. Eliú era verdadeiramente um homem, formado a partir do pó da terra e ficou diante de Jó em nome de Deus, de acordo com o desejo que Jó expressou em Jó 9:33.

Em Jó 32 temos, como podemos chamar de desculpas de Eliú por haver falado. Como um homem muito mais jovem, ele se contentara em ouvir todos esses discursos controversos e, como resultado, se irou contra os quatro. Jó se justificou sem justificar a Deus, enquanto os outros condenaram Jó sem poder responder a seus argumentos. Ele reconheceu que normalmente os homens deveriam aumentar em sabedoria e entendimento à medida que aumentavam em idade, mas nem a grandeza de reputação nem a idade garantiam isso, pois a sabedoria realmente chega ao homem por meio de seu espírito e como fruto da “inspiração” ou “assopro” (TB) do Todo-Poderoso. Se os três amigos tivessem conseguido convencer Jó, teriam se orgulhado de sua própria sabedoria; mas somente Deus poderia fazer isso. As palavras finais do versículo 13 foram traduzidas: “Deus o fará ceder, não o homem” (JND).

Eliú também tinha a vantagem que ele mencionou no versículo 14. Ele não tinha estado envolvido na guerra de palavras, portanto, ele podia ver tudo com imparcialidade e falar de uma maneira que não seria lisonjeira para nenhum dos competidores. Além disso, tendo ouvido tudo o que havia sido dito, ele estava tão informado quanto ao assunto que precisava encontrar uma saída e deixar que isso se extravasasse de si mesmo.

Assim, nos versículos iniciais de Jó 33, encontramos Eliú fazendo duas reivindicações. Primeiro, ele afirma que suas palavras serão marcadas pela retidão e pureza, como convém a alguém que tem sua existência e vida procedentes de Deus. Segundo, que embora ele falasse em nome de Deus, ele próprio era um homem “formado do barro” (ARA), assim como Jó era, e, portanto, embora Jó tivesse dito de Deus: “não me amedronte o Seu terror” (Jó 9:34), o que Eliú tinha a dizer, ao interpretar os caminhos de Deus, não traria qualquer terror ao espírito de Jó. Assim como nosso Senhor Jesus Se tornou um Homem, trazendo Deus para nós sem qualquer sensação de terror.

No versículo 8, Eliú começou a desafiar Jó de uma maneira direta. Ele tinha ouvido o que Jó tinha sustentado, e ele resumiu tudo como sendo um repúdio a qualquer acusação contra ele quanto à transgressão e iniquidade, que necessariamente envolvia, direta ou indiretamente, uma acusação contra Deus de haver tratado duramente, senão até mesmo com injustiça. Assim, resumindo toda a posição, pensamos que podemos ver que Eliú não estava muito errado. Sendo o mundo como ele é e o que é, se a perfeição for reivindicada pelo homem, obviamente todo o mal que existe deve ser atribuído a Deus.

Em resposta a Jó, o primeiro ponto de Eliú é a suprema grandeza de Deus. Portanto, lutar contra Ele é inútil. É o homem que deve prestar contas a Deus, não Deus prestar contas ao homem. Nos dias de hoje, nunca esqueçamos isso.

Mas então, em segundo lugar, embora Deus não tenha de prestar contas de Seus assuntos, Ele fala ao homem, embora muitas vezes o homem não o perceba. E, tendo afirmado isso, ele passou a indicar maneiras pelas quais Deus assim fala. Ele pode falar em um sonho ou uma visão. Ele o fez muitas vezes, como registra a Escritura, e evidentemente Ele o faz ainda, particularmente com santos simples, que conhecem pouco da Bíblia e possivelmente possuem pouco da Bíblia em sua língua nativa. Onde os santos são instruídos na Bíblia e pela Bíblia – uma forma superior de orientação – os sonhos, nos quais Deus fala, são comparativamente raros. E, se Deus fala com um homem em sonho: qual a finalidade disso? Para alterar seu curso e humilhar seu orgulho no pó. Uma palavra salutar para Jó; e para todos nós.

Deus também pode falar com um homem, concedendo-lhe alguma libertação misericordiosa quando ele é ameaçado por desastre ou guerra. Isso é mencionado no versículo 18, e muitos de nós podemos recordar ocasiões em que recebemos misericórdia desse tipo, e ficamos conscientes de que Deus tinha algo a nos dizer nisso.

E mais uma vez, Deus pode falar por meio da dor e da doença, que são descritas de maneira tão vívida nos versículos 19-22, até que o sofredor seja confrontado com a própria morte. Podemos ver como a descrição de Eliú a esse respeito se encaixava exatamente no caso de Jó, e de fato em não poucos de nós, embora no nosso caso não tenham sido tão extremo quanto o de Jó. Quantas vezes um pecador descuidado, quando ferido assim, foi levado a se voltar para Deus e despertado para sua salvação eterna. Quantas vezes um santo teve que olhar para trás para um período de doença grave como uma ocasião de muitas bênçãos espirituais.

Esses momentos de emergência são oportunidades aos quais Eliú chamou de um “mensageiro”, um “intérprete” (cap. 33:23), que podem mostrar o que Deus tem a nos dizer por meio dessas coisas. Embora não sejam comuns, como bem sabemos, são de grande valor e Eliú os chamou de “um entre milhares”, o que indica raridade. Pode haver muitos que possam se compadecer e às vezes condenar o aflito, assim como fizeram os três amigos de Jó. Apresentar a mente de Deus é outra coisa e é algo maior.

Quando o intérprete chegou, o que ele tinha a dizer? Ele mostra para o homem que sua retidão é, obviamente, julgar a si mesmo e, portanto, honestamente tomar seu lugar diante de Deus como um que confessa a si mesmo como pecador. Isto Jó ainda não havia feito, mas é para isso que ele foi levado quando o final da história foi alcançado. É o fim que todos nós devemos alcançar se nos importamos com Deus. Alcançamos todos nós isso?

Quando esse ponto é alcançado, qual é o resultado? Uma exibição de graça da parte de Deus, resultando em libertação para que o homem não desça à cova, e isso, porque o próprio Deus havia encontrado um resgate. A palavra traduzida como “resgate” aqui significa simplesmente “cobertura”, semelhante à palavra traduzida como “expiação” no Velho Testamento. Antes de Cristo vir, Deus cobriu diante de Seus santos olhos o pecado do pecador arrependido, esperando o tempo em que toda a propiciação deveria ser feita no sacrifício todo-suficiente de Cristo. Daí a palavra sobre “remissão dos [passagem por sobre os – JND] pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus” (Rm 3:25). Esses pecados dantes cometidos foram os dos santos antes de Cristo; Jó está entre eles.

O versículo 25 tem uma referência especial ao caso de Jó; mas os versículos 26-30 têm uma ampla aplicação. O pecador resgatado está diante de Deus em justiça e com gozo e, como mostram os próximos versículos, ele pode confessar alegremente tanto seu pecado quanto sua libertação diante dos homens. As palavras de Eliú aqui foram instruções para Jó, projetadas para levá-lo a uma confissão honesta diante de Deus. Elas são igualmente verdadeiras para nós, e isso de uma maneira muito mais ampla e perfeita, quando olhamos para trás, para a obra completa de Cristo.

Nessas palavras notáveis, Eliú certamente estava representando o papel do intérprete para com Jó, mostrando qual é o bom desígnio de Deus em Seus tratos, aparentemente tão adversos para os homens. Ele pretende libertá-los da “cova” da autoestima e complacência nesta vida, e da “cova” do julgamento e condenação na vida futura. Tendo interpretado os caminhos de Deus até agora, Eliú evidentemente interrompeu sua fala para ver se naquele momento havia algo que Jó desejava dizer.

Não havendo resposta da parte de Jó, Eliú retomou seu discurso e, como Jó 34:2 indica, tinha um público maior em vista. Ele se dirigiu também aos três amigos e a outros espectadores, desafiando-os se eles tinham a sabedoria e o conhecimento que lhes permitissem provar as palavras: e escolher o que é bom e certo. Ele sabia muito bem que o efeito do pecado é perverter o julgamento do homem e cegá-lo quanto ao que é correto.

Tendo em vista a audiência maior, Eliú começou a falar sobre Jó, e não a Jó, como havia feito anteriormente. Não parece que Jó tenha dito: “Eu sou justo”, em tantas palavras; isso ele tinha dado a entender cantando seus próprios louvores, da maneira como registrada em Jó 29. Mas, voltando a Jó 27:2, notamos que ele definitivamente disse: “vive Deus, que me tirou o direito” (ARA). Daí a atitude dele claramente era: “Devo mentir contra o meu direito?” (Jó 34:6 – JND)

Seu “direito” era, como sustentava, ser livre dessas calamidades e não pretendia dizer o contrário. Sua ferida realmente parecia incurável, mas ele sustentava que ela não foi provocada por nenhuma transgressão de sua parte. Os versículos 5 e 6 resumem a posição de Jó, como Eliú as viu. Ele não alegou estar sem pecado, mas afirmou que não era culpado de nenhuma transgressão que justificasse Deus impor-lhe tais aflições. Na verdade chegou ao ponto em que ele estava certo e Deus estava errado.

Eliú agora mostra que em tudo isso Jó realmente se aliou aos ímpios. Jó poderia beber o desprezo dos homens como água, mas não conseguia fazer o mesmo com relação ao julgamento de Deus. Eliú afirma a perfeição absoluta e a retidão de todos os caminhos de Deus; uma questão da maior importância, pois Ele é supremo em toda a Terra. Ele tem “o governo da Terra”, de modo que tem “autoridade sobre todo o mundo” (AIBB). O versículo 14 diz: “Se Deus pensasse apenas em Si mesmo e para Si recolhesse o seu espírito e o seu sopro” (ARA); então o resultado seria que toda a carne expiraria juntamente e o homem retornaria ao pó. Tal é a grandeza, bem como a retidão de Deus.

Daí o argumento dos versículos seguintes. Deveria o governo estar nas mãos dos injustos? E se está nas mãos do TODO-Justo, aquilo que Ele ordena deve ser desafiado? Os homens não falavam assim dos reis ou príncipes. Então muito menos deveriam falar assim de Deus. O que Ele ordena está correto.

Eliú passa a falar do esquadrinhador julgamento de Deus, que é absolutamente imparcial, estimando os ricos tanto quanto os pobres. Além disso, “não há trevas nem sombra de morte”, onde aqueles que praticam o mal possam se esconder. Ele continuou afirmando que os julgamentos de Deus são sempre corretos e que Ele age como Lhe parece bem aos Seus olhos, quebrando em pedaços e derrubando homens poderosos, mas, por outro lado, ouvindo o clamor dos aflitos. Ele pode dar tranquilidade aos aflitos e quem pode perturbá-la? Ele pode esconder o Seu rosto dos ímpios e quem pode vê-Lo? E isso é verdade seja em relação a uma nação ou apenas um indivíduo.

O restante deste capítulo é mais diretamente uma palavra para Jó. Teria sido mais conveniente se ele aceitasse humildemente o castigo, admitindo que havia iniquidade em si mesmo, da qual era ignorante, e quanto a isso ele precisava que Deus o ensinasse, para que corrigisse o que estava errado. Em vez disso, ele havia desafiado o julgamento de Deus em favor do seu próprio pensamento e, ao fazê-lo, havia acrescentado ao seu pecado, a rebelião contra Deus.

Em Jó 35, parece que Eliú interrompeu sua fala novamente e, sem resposta, ele continuou a expor o desvio dos argumentos de Jó. Ao alegar que não havia cometido nenhum pecado que exigisse suportar os extremos sofrimentos que haviam vindo sobre ele, Jó elevou sua própria justiça acima da de Deus e concluiu que não havia proveito em uma vida de piedade. A resposta para isso seria proveitosa para os companheiros de Jó e para ele próprio.

A resposta que Eliú deu foi baseada na suprema grandeza de Deus como Criador. Eliú não podia ir além disso, mas esse conhecimento ele tinha em comum com todos os homens após o dilúvio. Desse conhecimento primordial, a massa da humanidade logo se afastou, como declara Romanos 1:20-21. No entanto, os homens que ouvimos neste livro foram exceções a essa triste regra, e eles mantiveram esse conhecimento e argumentaram a partir dele.

Deus estava muito acima de Seus céus, e tão grande que nada de errado, cometido por um insignificante homem, poderia feri-Lo, e nada que fosse correto poderia acrescentar algo a Ele. Nossos erros podem causar danos aos nossos semelhantes, e nossas ações corretas podem ser proveitosas para eles. E se erramos para com nossos companheiros, eles reclamam, mas Deus é esquecido. Ninguém pensou em Deus, que é Criador, e que pode elevar o espírito e dar salmos mesmo na noite de tristeza.

O Deus, que dá as canções durante a noite, ensina o homem a quem Ele fez; seres de uma ordem muito superior à dos animais e pássaros, capazes de ter relacionamento com Ele, seja em canções de gozo ou em clamores de necessidade. O versículo 10 menciona as canções e o versículo 12 os clamores. E por que os homens clamam e ainda não recebem resposta? A resposta é: por causa do orgulho; e no versículo 13, Eliú diagnostica a causa raiz de tudo isso como sendo vaidade, que é abominável para Deus, algo que Ele desconsidera completamente. Esta instrução não é para nós? Não vemos aqui uma explicação de muitos clamores e orações sem resposta?

Eliú disse essas coisas a fim de levar o assunto ao coração de Jó, como ele fez no último versículo do capítulo. Jó abriu a boca “em vão” ou “em vaidade” (JND) e, portanto, embora suas palavras tivessem sido abundantes, tinham sido sem conhecimento. A excelência da vida exterior de Jó o traíra em um espírito interior de vaidade, que estava na raiz de sua falta de um verdadeiro conhecimento de si mesmo. Veremos que o próprio Jó confessou isso, quando chegarmos ao capítulo 42:3.

Mais uma vez, parece que Eliú fez uma pausa por um momento para ver se Jó tinha alguma resposta a dar, mas não havendo resposta alguma, ele retomou seu discurso cuja conclusão ocupa os capítulos 36 e 37. Eliú começou dizendo que ainda tinha palavras a dizer da parte de Deus; e, ao lermos esses dois capítulos, notaremos que ele tinha pouco mais a dizer a Jó sobre suas declarações, mas preferiu falar sobre a grandeza e poder de Deus e em Seus justos tratos com os filhos dos homens. Eliú disse: “ao meu Criador atribuirei a justiça”.

Ele passou a exaltar a maneira pela qual Deus, que é perfeito em conhecimento, trata tanto com os iníquos quanto com os justos. Deste último, Ele não retira Seus olhos; isto é, Ele os mantém sempre sob observação e, finalmente, os exalta como reis. Contudo, antes que esse final feliz seja alcançado, Ele pode permitir que eles sejam “presos em grilhões” e “amarrados com cordas de aflição”, exatamente como o pobre Jó naquele momento. E, se Ele permite isso, é com um propósito, como é mostrado nos versículos 9-11. Observe que são os justos que são tratados, pois mesmo um Abraão ou um Jó, embora justos, não eram sem pecado, e os procedimentos disciplinares de Deus são exercidos para tais, e não para aqueles que excluem Deus de sua vida.

Os argumentos dos três amigos levaram à conclusão de que Jó não era um homem justo. Eliú parece preferir admitir que ele era justo, e que, porque era, Deus havia permitido que essa severa disciplina viesse sobre ele; e no versículo 16 ele aplica o que está dizendo a Jó, pois, afinal de contas, o profundo orgulho e vaidade do coração humano é a maior de todas as ofensas.

O versículo 18 foi endereçado a Jó. Devemos lembrar de que naquele dia distante, quase dois milênios antes de Cristo aparecer, a vida e a incorruptibilidade não haviam sido trazidas à luz, como mostra 2 Timóteo 1:10; e, portanto, uma salvação eterna não era conhecida como a conhecemos agora. Se hoje citássemos esse versículo, deveríamos fazê-lo para um incrédulo.

A advertência de Eliú a Jó, no entanto, foi oportuna, particularmente o versículo 21. Ao se afastar da “aflição”, Jó se declinou para a “iniquidade” de sustentar sua própria justiça. Mas a aflição deve ser preferida à iniquidade, como somos lembrados na primeira epístola de Pedro – “aquele que sofreu na carne deixou o pecado” (Pe 4:1 – ARA). Os primeiros Cristãos podiam escapar do sofrimento ao pecarem, e assim nós também, se for apenas uma questão do que pode vir sobre nós do mundo, da carne ou do diabo.

Tendo avisado Jó, Eliú voltou a se concentrar na grandeza de Deus, como evidenciado na criação, e o resto de seu discurso gira em torno desse tema. Particularmente ele considerou o controle exercido pelo Criador naquilo que está totalmente fora do controle do homem – as nuvens, os ventos, os trovões, os raios, a chuva, a neve, a geada. Quando essas coisas vieram à sua mente, ele teve que confessar que seu coração tremia e estava profundamente comovido.

Em nossos dias, os homens fizeram muitas descobertas e ganharam certo controle sobre alguns dos misteriosos poderes que há na maravilhosa criação de Deus, mas as coisas que Eliú mencionou não se podem dominar. Quando, como ele colocou no versículo 9, “da câmara do Sul sai o tufão, e do Norte o frio” (TB), o homem mais inteligente só pode aceitar a situação e procurar abrigo ou se aquecer, conforme o caso.

Eliú reconheceu que Deus ordenou o tempo com um propósito sábio, e o que Ele envia pode ser “para correção”, isto é, disciplina sobre más ações; ou “para Sua terra”, isto é, para manter a produtividade comum da terra; ou “por beneficência [misericórdia – ARA], isto é, efetuar alguma libertação misericordiosa. Isso também teve influência no caso de Jó.

Jó não sabia, e nenhum de nós sabe, como Deus exerce Seu poder supremo. O Senhor Jesus demonstrou o poder da Sua divindade quando acalmou o vento e as ondas no lago da Galileia. Ele fez isso com misericórdia. Eliú terminou suas palavras com a afirmação de que com Deus, o Todo-Poderoso, há “uma tremenda majestade**”** e todos os Seus feitos são em _justiça_. Portanto, por mais sábio que qualquer um de nós – incluindo Jó – possa se considerar, nossa atitude diante d’Ele não deve ser a de críticas e questionamentos, mas a de _temor_.

Jó 38-42

Tomando o lugar do “intérprete” dos caminhos de Deus, para que Jó reconhecesse o que a “retidão” exigia, Eliú encerrou seu discurso sobre o elevado tema da majestade e da justiça de Deus, e assim chegou o momento da intervenção divina. Ele é Deus e Todo-Poderoso, como os versículos finais de Jó 37 declararam: Ele também é Jeová e falou do redemoinho a que Eliú também havia mencionado.

É notável também que Eliú falou do “estrondo” (cap. 37:2 – TB) ou “rugido” (JND) de “Sua voz”. O vento não é visível; contudo, em movimento violento, os homens sentem sua pressão e ouvem seu rugido. À medida que o redemoinho se aproximava e sua pressão era sentida, seu rugido era a voz do próprio Jeová. Suas palavras foram dirigidas especialmente e somente a Jó. Se o que Ele disse foi inteligível para os outros, não nos é dito. Colocado face a face com Jeová, Jó teve que reconhecer que todas as suas muitas palavras haviam entenebrecido e não esclarecido o assunto em questão.

Se nos referirmos ao início de Jó 23, podemos nos lembrar de que Jó de maneira autoconfiante havia expressado seu desejo de entrar em contato com Deus, tendo certeza de que poderia defender sua causa diante d’Ele e encher sua boca de argumentos e conhecer as palavras pelas quais Deus responderia a ele. Havia chegado o momento de seu desejo ser cumprido, e Jeová mandou que Jó cingisse seus lombos como um homem e estivesse preparado para responder à voz de Deus. Os questionamentos agora devem vir de Deus. Eles começam com o versículo 4.

As palavras de Jeová preenchem quatro capítulos, com um breve intervalo na abertura de Jó 40. Pergunta após pergunta é proposta para Jó considerar e responder, se pudesse; e todas dizem respeito ao magnífico poder que agiu na criação. Mais uma vez, vemos que apenas a revelação original sobre Deus é assumida. Se, como alguns pensam, foi Moisés quem escreveu este livro, ele escreveu sobre coisas que aconteceram antes da lei ser dada, ou, pelo menos, sobre esferas onde a lei não era conhecida. Somos lembrados do que lemos em Romanos 2:12-15, como observamos que “a obra da lei” foi escrita no coração de Jó. Jeová julgou Jó à luz do que ele sabia e, ao Ele fazer isso, descobriremos como a consciência de Jó prestou testemunho e seus pensamentos que o desculpava começaram a acusá-lo. A lei não torna os homens responsáveis, apenas aumenta a responsabilidade deles.

Nos versículos 4-38 de Jó 38, o Senhor afirma Sua própria grandeza e a insignificância de Jó à luz de Seus poderosos atos criadores. Começou com Ele fundando a Terra, o que ocasionou júbilo entre os seres angelicais que testemunharam o fato; e então Ele continuou a falar dos mares irrompendo, embora nas trevas, e então a luz aparecendo para que houvesse uma manhã e uma tarde. Depois disso, foram mencionadas as maravilhas da neve, granizo e chuva, bem como as maravilhas exibidas nas estrelas, as constelações e as ordenanças do céu. Não podemos deixar de nos lembrar da parte inicial de Gênesis 1, até o ponto em que lemos: “fez também as estrelas” (Gn 1:16 – ARA). O que Jó sabia dessas coisas? Ele havia entrado nas fontes do mar? Ou os portões da morte se abriram para ele?

Do versículo 38 e até Jó 39, as perguntas se referem a animais e pássaros, cuja criação está relacionada na parte final de Gênesis 1. Aqui, novamente, se cuidadosamente consideradas, inúmeras maravilhas nos confrontam, e foram levantadas questões que Jó não poderia responder.

Assim, nos versículos iniciais de Jó 40, Jeová desafiou Jó sobre isso e Jó imediatamente se rendeu. Ele reconheceu que tinha falado demais e que agora o silêncio convinha a ele. Diante de seu Criador, Jó percebeu quão vil era.

Mas a convicção que agora havia se apoderado de Jó tinha que ser levada a ele ainda mais profundamente. Por isso, novamente, ele foi desafiado. Ele havia sido culpado de anular o julgamento de Deus e condená-Lo para manter sua própria justiça. Este foi realmente um pecado muito grande, e nos versículos 9-14 ele é julgado da maneira mais perspicaz. Linguagem irônica é usada. Que ele não contenda com Deus, mas volte sua atenção para os orgulhosos e poderosos entre os homens, e reprima-os; então se poderia admitir que Jó pudesse se salvar.

Do versículo 15 ao final de Jó 41, o Senhor faz mais referências às maravilhas de Sua criação. Ele chamou a atenção de Jó para o beemote e o leviatã – provavelmente o hipopótamo e o crocodilo. Eles tinham força bruta, mas nenhuma inteligência humana. Seria mais fácil subjugá-los do que derrubar um homem orgulhoso. Nos dias de Jó, as invenções humanas mal haviam começado, então isso provavelmente não era tão aparente como em nossos dias, quando essas poderosas criaturas são facilmente subjugadas – mas, aos homens orgulhosos, não se pode subjugar tanto assim!

Jó, porém, não podia enfrentar o leviatã ou o beemote, nem subjugar o homem orgulhoso. Como então ele poderia contender com Deus? Isso foi poderosamente levado para o fundo do seu coração.

No capítulo 42, a voz de Jeová que vinha do redemoinho, cessou, e Jó se humilhou em plena medida. Ele confessou o erro de suas declarações anteriores. Ele teve que se abominar e se arrepender no lugar da morte – pó e cinzas. Esses momentos na presença de Deus produziram um resultado que todo o discurso dos três amigos, e até de Eliú, não havia alcançado. O homem, que era tão excelente entre os homens, e tinha um testemunho do próprio Deus, havia descoberto sua própria pecaminosidade nas fontes mais profundas de seu ser. Uma descoberta que todos nós temos que fazer!

A história toda tem uma grande lição para nós, como percebemos, ao lermos Tiago 5:11. Agora vamos ver “o fim que o Senhor lhe deu” em tudo isso, o que revela que realmente “o Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo” (ARA). Qual foi então o fim que o Senhor tinha em vista, quando permitiu que todas essas provadoras catástrofes viessem sobre Jó?

Primeiro, ele obteve o que podemos chamar de conhecimento de Deus em primeira mão. Anteriormente, ele o conhecia pelo “ouvir dos seus ouvidos”; isto é, por tradição. Mas agora, disse ele: “Te veem os meus olhos”; isto é, Deus foi apreendido de uma maneira nova e vital. Ele não “viu” em um sentido literal, como temos certeza em 1 Timóteo 6:16, mas o olho é apenas o órgão da visão e é a mente que vê. Repetidamente, dizemos: “posso ver”, quando algo, que não atraiu nossos olhos, aprofundou em nossa mente. Jó agora conhecia a Deus em Seu poder, santidade, retidão, tanto quanto Ele poderia ser conhecido naqueles dias.

É nosso privilégio conhecer a Deus como Ele foi revelado em nosso Senhor Jesus Cristo, e por esse conhecimento recebemos “tudo o que diz respeito à vida e piedade” e “grandíssimas e preciosas promessas”, além de receber, dia após dia, “graça e paz”. É o que nos dizem os versículos iniciais da segunda epístola de Pedro. De fato, podemos dizer que, conosco assim como com Jó, um conhecimento de Deus em primeira mão e por experiência está na base de tudo.

Mas em segundo lugar, como fruto desse conhecimento de Deus, Jó se viu sob uma luz totalmente nova. Anteriormente, ele havia entoado seus próprios louvores. Agora, a retidão de seu comportamento exterior desapareceu de sua mente, e ele viu as profundezas presunçosas de sua natureza caída. Por isso, em verdadeiro arrependimento, ele abominou a si próprio.

Esse espírito de julgamento próprio é produzido em todos os que realmente têm a ver com Deus. Exemplos disso abundam na Escritura. Por exemplo: quando Abraão se viu na presença de Deus, ele disse: “sou pó e cinza” (Gn 18:27). Da mesma forma, Isaías disse: “estou desfeito” (Is 6:5 – JND); e Daniel, “transmudou-se o meu semblante em corrupção” (Dn 10:8). E Pedro diz: “Senhor, ausenta-Te de mim, que sou um homem pecador” (Lc 5:8), e Paulo: “pecadores; dos quais eu sou o principal” (1 Tm 1:15). E todos esses eram santos eminentes em seus dias. Eles não teriam sido eminentes se não tivessem tido tal experiência. Já tivemos essa experiência?

E agora aparece outra característica que, no final, o Senhor tinha em vista. Os três amigos de Jó foram condenados, pois não haviam falado corretamente, nem se humilharam como Jó, justificando a Deus e condenando a si mesmos. Eles foram instruídos a ir a Jó, oferecer sacrifícios e buscar sua intercessão em favor deles: sem dúvida um processo muito humilhante para eles. Embora tivessem visitado Jó para se compadecer dele e o consolar, foram levados no progresso dos argumentos a lançar acusações e censuras contra ele, e ao fazê-lo, desenvolveram eles mesmos um espírito de justiça própria. Assim, não tendo se humilhado como Jó, eles foram publicamente humilhados por Deus.

Mas e Jó? O Senhor conhecia bem que uma revolução completa tinha sido produzida em seu espírito, enquanto ainda seu pobre corpo estava inalterado. Ele disse: “Meu servo Jó orará por vós; por ele Eu aceitarei” (JND). Não muito tempo antes, com calor e sarcasmo, ele havia argumentado contra eles. Agora, com bondade e graça em seu coração, ele ora por eles! O homem que adquiriu um verdadeiro conhecimento de Deus e, consequentemente, aprendeu a se abominar, está bastante transformado em suas relações com seus antigos oponentes. O ressentimento deu lugar à reconciliação. O ganho espiritual disso foi imenso.

Deve ter sido uma cena extraordinária. O versículo 10 mostra que a mudança na condição corporal de Jó e em sua sorte ocorreu quando ele orou por seus amigos, e não antes. Ali estavam os três amigos, favorecidos cavalheiros do Oriente com seus sacrifícios; Jó, numa aparência extremamente emagrecida, coberto de furúnculos. Contudo, este pobre destroço humano está em contato com Deus e é capaz de levantar as mãos em intercessão graciosa e sacerdotal. Quando algo assim foi visto no Oriente? Não é de admirar que a história tenha sido escrita para encontrar um lugar entre os oráculos de Deus.

Não nos permitamos perder a aplicação de tudo isso a nós mesmos. Questões de disputa surgem entre aqueles que são irmãos em Cristo, e se tratadas fora da presença de Deus, o debate pode ser feroz e pode ocorrer divisão. Que a presença de Deus seja sentida, que o eu seja julgado e abominado, que um espírito totalmente diferente prevaleça e uma solução correta seja alcançada.

A oração de Jó foi eficaz, já que agora ele estava correto para com Deus, e não apenas para com seus amigos. Temos a afirmação definitiva: “O Senhor aceitou a Jó” (AIBB). O homem que se condenou e se repudiou está em aceitação diante de Deus. Este sempre foi o caminho de Deus. Encontramos testemunhos disso em outras Escrituras do Velho Testamento; por exemplo, Isaías 57:15; 66:2. Mas temos que passar para o Novo Testamento para encontrar a base sobre a qual repousa a aceitação. O caráter da aceitação que temos hoje é encontrado nas palavras “agradáveis [aceitos – KJV] no Amado” (Ef 1:6). Nos dias de Jó isso não tinha vindo à luz.

Até agora, observamos o que Deus operou em Jó, como resultado de tudo o que ele havia passado; agora vemos Deus agindo por ele. Até este ponto, ele foi mantido nas garras da terrível doença produzida por Satanás. Agora, o Senhor “virou o cativeiro de Jó, quando este orava pelos seus amigos” (AIBB). A libertação de seu corpo ocorreu, evidentemente com uma dramática rapidez, quando o objetivo do Senhor, quanto ao estado espiritual de Jó, foi alcançado, pois para Deus, o espiritual tem precedência sobre o que é físico ou material. O próprio Satanás foi eliminado da história no final do capítulo 2. Agora sua cruel aflição foi removida, tendo sido imposta para alcançar o propósito de Deus.

Nisto, novamente, vemos ilustrado um grande princípio dos caminhos de Deus. Ele faz com que a malevolência do diabo, assim como a ira do homem, opere para Seu próprio louvor, assim como para nosso bem. O grande exemplo disso, ao qual nenhum outro se aproxima, é obviamente a cruz. Para realizar isso, Satanás entrou em Judas Iscariotes. De tão extrema importância era isso para ele que não permitiu que nenhum demônio menor agisse por ele. No entanto, ele estava colaborando para sua própria destruição, pois quando o Senhor Jesus Se referiu à Sua Cruz, disse: “agora será expulso [lançado fora – JND] o príncipe deste mundo” (Jo 12:31). Outro exemplo vemos em 2 Coríntios 12, quando “um mensageiro de Satanás”, enviado para esbofetear Paulo, foi imposto para a preservação espiritual de Paulo. Quando as aflições vierem sobre nós, lembremo-nos dessas coisas, e tiremos proveito delas.

Ao contemplarmos “o fim do Senhor” (Tg 5:11 – TB), podemos de fato dizer, como Tiago, que “o Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo”. Observamos pelo menos cinco coisas:

  1. Jó adquiriu um conhecimento de Deus em primeira mão, como nunca havia experimentado antes;

  2. Ele se conheceu e se abominou como nunca havia feito antes;

  3. Seu espírito e caráter foram transformados, de raiva e aspereza, para graça;

  4. Ele recebeu o conhecimento de sua aceitação diante de Deus;

  5. Ele foi libertado das garras de Satanás que foram permitidas sobre seu corpo.

Mas agora aparece uma sexta coisa: “o Senhor acrescentou a Jó outro tanto em dobro a tudo quanto dantes possuía”. Anteriormente, ele era um homem de grande riqueza, conforme a riqueza era contada naqueles dias, mas agora seus bens aumentaram a tais proporções que seriam adequadas a um rei. Deus proveu um grande aumento aos animais que Jó tinha, mas também houve o que lhe veio pelos dons de seus irmãos e conhecidos. Ele foi restaurado à confiança e estima de todos os que o conheciam anteriormente: um grande ponto é esse, quando nos lembramos de sua triste queixa quanto ao tratamento que recebera, registrado em Jó 30.

De acordo com os dias em que ele viveu, as bênçãos registradas são de um tipo material, que garantiu a prosperidade terrestre até o fim de seus dias. Essas foram as bênçãos positivas concedidas, assim como o quinto item, mencionado acima, foi uma bênção de ordem negativa – a remoção de problemas corporais. Os quatro primeiros itens que notamos foram bênçãos de ordem espiritual e de uma importância primordial, pois uma vez recebidas, elas permanecem para sempre. Lembremo-nos de que, como Cristãos, todas as nossas bênçãos são de ordem espiritual e celestial, como afirma Efésios 1:3.

Tendo passado por essa tempestade sem precedentes, Jó viveu até a velhice sob o sorriso de Deus, enriquecido espiritual e materialmente. Viu seus bens, ovelhas, camelos, bois, jumentos, multiplicar-se até o número dobrar. Seus sete filhos e três filhas muito bonitas cresceram ao seu redor, e assim Deus lhe deu duas vezes mais do que antes.

Mas e os filhos e filhas? O número deles não foi dobrado. Eles não deveriam ser quatorze filhos e seis filhas? À medida que a nova família cresceu à sua volta e depois cessou de crescer, conforme registrado, podemos nos perguntar se isso suscitou alguma pergunta na mente de Jó, como certamente acontece na nossa. Sim, afinal de contas, Deus deu a Jó o dobro de tudo o que tinha antes, sem exceção. Os animais foram visivelmente dobrados, pois a porção anterior estava irrevogavelmente perdida, e ele nunca mais os veria. Os primeiros filhos e três filhas não estavam perdidos PARA SEMPRE.

Com relação a esses primeiros filhos e filhas, Jó tinha estado continuamente preocupado, como o primeiro capítulo do livro dá testemunho. Atuando como sacerdote de sua família, ele continuamente oferecia sacrifícios em favor deles. Eles eram exteriormente tementes a Deus; Jó não temia que eles amaldiçoassem a Deus com os lábios, mas pensava que pudessem ter feito isso no coração. No entanto, apesar disso, a vida de todos eles foi tirada juntamente num momento. Assim, dessa maneira impressionante, foi sugerido que existe outro mundo no qual o espírito deles havia entrado, que a ressurreição, sobre a qual Jó havia argumentado e debatido em Jó 14, seria alcançada no devido tempo e que Jó os encontraria novamente.

Não nos é dito em muitas palavras, de que tudo isso era claro para Jó, mas assumimos que Deus, que tão gentilmente deu essa indicação, deu a ele a capacidade de percebê-la. Isso deve ter confirmado sua fé na ressurreição, por um lado, e confortado seu coração, por outro. Confiamos que isso tenha trazido conforto ao coração de muitos mais além de Jó. Quando cheio de dias, Jó terminou sua longa vida, ele deve ter olhado para trás para esse período de provas inigualáveis, pelo qual teve que passar, como sendo apenas um túnel escuro que conduz à luz do Sol; um período de calamidade exterior, mas de enriquecimento interior. Uma Escritura tal como Ezequiel 14:14 presta testemunho de que isso foi assim. Ele é apresentado como um brilhante exemplo, juntamente com Noé e Daniel.

Ao encerrarmos nossos comentários sobre o livro de Jó, podemos fazê-lo com um canto de louvor e ação de graças em nosso coração, e também tendo, acreditamos, aprendido algumas lições necessárias. Podemos não sofrer na intensidade em que Jó sofreu, mas nenhum de nós escapa à mão corretora de nosso Deus e Pai. Quando formos castigados, possamos ser exercitados por isso; e quando observamos castigo vindo sobre os outros, tenhamos cuidado com a forma como o interpretamos.

À luz do Novo Testamento, o castigo pode ser enviado para retribuição, como paga pelo mal praticado como vemos em 1 Coríntios 11:30. Mas, por outro lado, pode não ser com esse objetivo, como vemos no caso de Paulo – 2 Coríntios 12:7 –, onde o espinho na carne era algo para prevenção; para que ele não se exaltasse e caísse. Mais uma vez, pode não ser retributivo nem preventivo, mas educacional, como mostra Hebreus 12. O Pai treina e disciplina Seus filhos e até os açoita; mas tudo é em busca de Seu objetivo – “para sermos participantes de Sua santidade”.

Nessa direção, Jó foi guiado, como vimos. Nessa direção, nós também estamos sendo guiados em todos os tratamentos do Pai conosco. Lembremo-nos sempre disso, e louvemos a Deus que é assim.

Notas

[←1]

N. do T.: O autor – Frank Binford Hole – viveu entre 2/2/1874 e 25/1/1964 e este livro foi escrito em meados do século XX.

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