F. B. Hole

O Evangelho Segundo LUCAS

O Evangelho Segundo LUCAS

Comentário Sobre o

Novo Testamento

F. B. Hole

O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS – Comentário Sobre o Novo Testamento

F. B. Hole

Título do original em inglês: The New Testament CommentaryLuke

Texto obtido com autorização de STEM Publishing

www.stempublishing.com

Traduzido, publicado e distribuído no Brasil por:

ASSOCIAÇÃO VERDADES VIVAS, uma associação sem fins lucrativos, cujo objetivo é divulgar o evangelho e a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo.

atendimento@verdadesvivas.com.br

Primeira edição em português – Setembro 2019

e-Book v.1.0

Abreviaturas utilizadas:

ARC – João Ferreira de Almeida – Revista e Corrigida – SBB 1969

ARA – João Ferreira de Almeida – Revista e Atualizada – SBB 1993

TB – Tradução Brasileira – 1917

ACF – João Ferreira de Almeida – Corrigida Fiel – SBTB 1994

AIBB – João Ferreira de Almeida – Imprensa Bíblica Brasileira – 1967

JND – Tradução inglesa de John Nelson Darby

KJV – Tradução inglesa King James

Todas as citações das Escrituras são da versão ARC, a não ser que outra esteja indicada.

LUCAS 1

Nos versículos de abertura, Lucas declara o objeto que tinha diante de si ao escrever seu evangelho; ele queria trazer certeza à mente de um certo gentio convertido. Deus lhe dera um perfeito entendimento de todas as coisas desde o princípio, então agora ele as escreveu “em ordem” ou “com método” (JND); e veremos à medida que prosseguimos que ele às vezes ignora a ordem histórica para apresentar as coisas em um método que é moral e espiritual. O entendimento dessa ordem moral e espiritual, juntamente com os fatos claramente escritos, traria certeza a Teófilo, como também trará para nós. Vemos aqui como certeza é ligada com as Sagradas Escrituras – a Palavra de Deus. Se não tivéssemos as Sagradas Escrituras, não teríamos certeza de nada.

O primeiro e o segundo capítulos nos apresentam fatos relativos ao nascimento de Cristo, e com imagens muito interessantes do remanescente piedoso em Israel, de quem, de acordo com a carne, Ele Se manifestou. A primeira figura – versículos 5-25 – diz respeito ao sacerdote Zacarias e sua esposa. Eles eram “justos perante Deus”, dos quais podemos deduzir que era um casal marcado pela fé e, consequentemente, eram marcados pela obediência às instruções da lei. No entanto, quando contada por um anjo que sua esposa idosa e estéril deveria ter um filho, ele pediu um sinal de algum tipo para ser dado em apoio à Palavra de Deus desvendada. Nisto ele provou ser um “crente incrédulo”, embora algo muito verdadeiro ao tipo, pois “os judeus pedem sinal” (1 Co 1:22); e ele sofreu de forma governamental, na medida em que o sinal concedido foi a perda de seu poder de fala. No entanto o sinal foi bastante apropriado. O salmista disse: “Cri, por isso falei” (Sl 116:10). Zacarias não creu e, portanto, não podia falar.

A predição do anjo sobre o filho de Zacarias era que ele deveria ser grande aos olhos do Senhor e ser cheio do Espírito Santo, para que no espírito e poder de Elias ele pudesse “preparar ao Senhor um povo bem disposto [povo preparado – JND]. Nos versículos 6, 9, 11, 15-17, “Senhor” equivale a “Jeová” do Velho Testamento, de modo que o advento do Messias é o advento de Jeová. Deveria haver pessoas na Terra que estivessem preparadas para receber a Cristo quando Ele viesse. O evangelho começa então com um sacerdote piedoso cumprindo o ritual da lei no templo, e a confirmação de uma promessa que tinha a ver com um povo esperando pelo aparecimento do Messias na Terra. Pedimos atenção especial a isto, pois acreditamos que iremos ver que este evangelho nos dá a transição da lei para a graça e da Terra para o céu de modo que termine com as boas-novas da graça a todas as nações e com Cristo subindo aos céus para ocupar ali o serviço sacerdotal. No capítulo 1, o sacerdote terreno estava mudo. Nos versículos finais do evangelho, os homens que deveriam ser sacerdotes na nova dispensação do Espírito Santo, estavam no templo e eram tudo menos mudos – eles louvavam e bendiziam a Deus.

Nos versículos 26-38, temos o anúncio do anjo a Maria sobre a concepção e nascimento de seu Filho. Ela foi o vaso escolhido para este grande evento. Alguns detalhes de muita importância devem ser brevemente anotados. Em primeiro lugar, o versículo 31 deixa abundantemente claro que Ele era verdadeiramente um Homem; “nascido de mulher”, como Gálatas 4:4 diz.

Em segundo lugar, os versículos 32 e 33 deixam claro que Ele era muito mais do que um simples homem. Ele era “Grande”, de uma maneira que nenhum outro homem jamais foi, sendo o Filho do Altíssimo; e Ele está destinado a ser o esperado Rei sobre a casa de Jacó, e assumir um reino que permanece para sempre. Observamos que ainda não há qualquer indício de nada fora daquelas esperanças quanto ao Messias que poderia ser baseado nas profecias do Velho Testamento. O Filho do Altíssimo estava vindo para reinar, e esse reinado pode ser imediato no que diz respeito a esta mensagem.

Uma dificuldade ocorreu à mente de Maria, que ela expressou no versículo 34. A Criança que vinha deveria ter Davi como Seu ancestral e ainda ser o Filho do Altíssimo! Ela não pediu por um sinal, já que ela aceitou as palavras do anjo, mas ela pediu por uma explicação. “Como será isso?” (ARA) A pergunta de Maria e a resposta do anjo nos versículos 35-37, deixam bastante claro, em terceiro lugar, a realidade do nascimento virginal e o caráter totalmente sobrenatural da humanidade de Jesus.

Deveria haver uma ação do Espírito Santo, gerando “o Ente Santo” (ARA), e então a sombra do Poder do Altíssimo – um processo, acreditamos – protegendo “o Ente Santo”, enquanto ainda não nascido. Como resultado, haveria um vaso adequado de carne e sangue para a encarnação do Filho de Deus. Ele é Filho de David verdadeiramente, como é indicado no final do versículo 32, mas Romanos 1:3 mostra que era o Filho de Deus O qual Se tornou Filho de Davi segundo a carne. No versículo 35 de nosso capítulo, o artigo “o” está realmente ausente – “chamado Filho de Deus” – isto é, indica o caráter e não a Pessoa definida. Quando o Filho de Deus tornou-Se o Filho de Davi por meio de Maria, houve uma tal manifestação do poder de Deus como assegurando que “o ente Santo” nascido de Maria deveria ser “Filho de Deus” em caráter e, portanto, o vaso adequado para a Sua encarnação. Foi um milagre da primeira ordem; mas então, como o anjo disse, “para Deus nada é impossível”.

A fé de Maria e sua submissão em agradar a Deus surgem formosamente no versículo 38. Os versículos 39-45 mostram a piedade e o espírito profético que caracterizaram Isabel, pois ao ver Maria, imediatamente reconheceu nela a mãe “de meu Senhor”. Ela estava cheia do Espírito Santo, e reconheceu Jesus como seu Senhor mesmo antes de nascer, uma ilustração instrutiva de 1 Coríntios 12:3.

Isto é seguido pela declaração profética de Maria nos versículos 46-55. Foi invocado por seu senso da extraordinária misericórdia que lhe fora demonstrada em suas humildes circunstâncias. Embora descendesse de Davi, ela estava desposada a um humilde carpinteiro de Nazaré. Na misericórdia mostrada a ela, viu a garantia da exaltação final daqueles que temem a Deus e da dispersão dos orgulhosos e poderosos deste mundo. Ela viu, além disso, que a vinda de seu filho seria o cumprimento da promessa feita a Abraão – a promessa incondicional de Deus. Ela não pensava que Israel merecia algo sob o pacto da lei. Tudo dependia do pacto da promessa. Os famintos estavam sendo saciados e os ricos despedidos vazios. Esse é sempre o caminho de Deus.

Não devemos deixar de notar que Maria falou do “Deus meu Salvador”. Embora sendo a mãe de nosso Salvador, ela mesma encontrou seu Salvador em Deus.

No devido tempo, nasceu o filho de Zacarias e Isabel e, no momento de sua circuncisão, a boca de seu pai foi aberta. Ele escreveu: “o seu nome é João”, mostrando que agora aceitava plenamente a palavra do anjo e, portanto, o nome de seu filho era uma questão resolvida. Finalmente, ele cria, embora fosse a fé que segue a visão – a do verdadeiro tipo judaico; consequentemente, sua boca foi aberta. Ele louvou a Deus e, cheio do Espírito Santo, profetizou.

Uma coisa surpreendente sobre essa profecia é que, embora tenha sido provocada pelo nascimento de seu próprio filho João, essa criança estava apenas diante de sua mente de uma maneira inferior e secundária. O grande tema de sua declaração era o Cristo de Deus, ainda não nascido. Ele manteve as coisas na proporção correta. Este foi o fruto de estar cheio do Espírito, que sempre magnifica a Cristo. Se ele tivesse falado meramente no entusiasmo gerado pelo nascimento do filho inesperado, ele teria falado principalmente ou exclusivamente sobre ele e sobre a exaltada função profética à qual foi chamado.

Ele falou da vinda de Cristo como se já tivesse se materializado e celebrava os efeitos de Sua vinda como se já tivessem sido realizados. Esta é uma característica comum da profecia: fala de coisas realizadas que historicamente ainda estão no futuro. Por enquanto, o profeta é levado em seu espírito fora de todas as considerações de tempo. Na iminente Aparição de Cristo, Zacarias viu o Senhor Deus de Israel visitando Seu povo para redimi-los. A salvação que Ele traria os libertaria de todos os seus inimigos e os capacitaria a servi-Lo em liberdade, e em santidade e justiça todos os dias da vida deles. E tudo isso seria em cumprimento de Sua promessa e juramento a Abraão. Observe como o Espírito Santo o inspirou a se referir à promessa incondicional a Abraão, assim como Maria havia feito. A bênção de Israel será nessa base da promessa e não na base do pacto da lei.

Em tudo isso, não observamos ainda nenhuma distinção clara entre a primeira e a segunda vindas de Cristo. Os versículos 68-75 contemplam coisas que somente serão levadas a efeito, em pleno sentido, em Sua segunda vinda. É verdade que a redenção foi feita por Cristo em Sua primeira vinda, mas foi redenção por sangue e não por poder; e é verdade, claro, que a santidade e a justiça, na qual um Israel restaurado e libertado servirá ao seu Deus por todo o brilhante dia milenar, será baseada na obra da cruz. Ainda nestes versículos as duas vindas são consideradas como um todo.

Os versículos 76 e 77 referem-se diretamente a João, que acabara de nascer. Ele deveria ir ante a face de Jeová preparando Seus caminhos. Ele deveria dar conhecimento da salvação ao Seu povo pela remissão dos seus pecados. Isso ele fez como o versículo 3 de Lucas 3 registra, em conexão com o seu batismo. Observe que aqui “Seu povo” adquire um novo sentido – não Israel a nível nacional, mas aqueles que eram o remanescente crente em meio a esse povo. Tudo está no terreno de misericórdia mesmo com João e seu ministério no caráter de Elias. É “a remissão dos seus pecados pelas [por causa das – JND] entranhas de misericórdia do nosso Deus”.

Nos versículos 78 e 79, Zacarias retorna à vinda de Cristo e, é claro, está na base dessa mesma misericórdia, pois a palavra “por causa das” conecta o que segue com a misericórdia que acabamos de mencionar. O “Oriente do alto” é uma descrição peculiarmente amável de Cristo. Palavras alternativas para “Oriente” seriam “Alvorecer do dia” ou “Nascer do Sol”. Seu advento foi de fato o alvorecer de um novo dia. Todo nascer do Sol na Terra tem sido, aos olhos humanos, de baixo para cima. Este era “do alto”, isto é, de cima para baixo. O Espírito de Deus moveu Zacarias a anunciar, por inspiração, o alvorecer de um dia que seria novo, embora a maravilha completa ainda estivesse oculta a seus olhos.

Ele viu, porém, que isso significava trazer tanto luz quanto paz para os homens; e aqui ele começa a falar de coisas que foram realizadas abençoadamente na primeira vinda de Cristo. Quando Ele surgiu em Seu ministério público, a luz começou a brilhar, e o caminho da paz foi bem e verdadeiramente estabelecido em Sua morte e ressurreição, e os pés de Seus discípulos seguiram a isso imediatamente depois. A profecia de Zacarias se encerra nesta nota admiravelmente bela. No primeiro vislumbre que temos dele, ele é um homem perturbado e temeroso. Sua última palavra registrada nas Escrituras é “paz”. Ele havia visto por fé a vinda do Salvador, como o alvorecer de um novo dia de bênção, e isso fez toda a diferença.

O versículo 80 resume toda a vida de João até o início de seu ministério. Deus tratou com ele em segredo nos desertos, educando-o em vista de sua solene pregação de arrependimento nos dias por vir.

LUCAS 2

O versículo de abertura deste capítulo mostra como Deus pode usar os grandes homens da Terra sem que percebam, para a realização de Seus desígnios. O caso aqui é o mais notável, visto que o decreto de Augusto não foi cumprido imediatamente, mas adiado até que Cirênio fosse governador da Síria. No entanto, a profecia havia indicado Belém como o local de nascimento do Messias, e o decreto do imperador veio no tempo certo para enviar José e Maria a Belém, embora, posteriormente, seu cumprimento tenha sido suspenso por algum tempo. Foi devido a este perturbado estado de coisas, sem dúvida, que a estalagem estava cheia, e o fato de que o menino Cristo nasceu em um estábulo foi um testemunho da pobreza de José e Maria, pois inconvenientes podem sempre ser evitados por dinheiro. No entanto, era simbólico do lugar separado que Cristo deveria ter desde o início em relação ao mundo e sua glória.

Os versículos 8-20 se ocupam com o episódio em conexão com os pastores. Isto se tornou tão conhecido em conexão com hinos e canções que, talvez, estejamos em perigo de perder seu pleno significado. Os pastores, como classe, não eram muito estimados naqueles dias, e estes eram os homens que tinham seu expediente de noite, sem qualificação, em comparação com os homens que cuidavam das ovelhas durante o dia. Para esses homens extremamente humildes e desconhecidos, os anjos apareceram. O segredo do céu a respeito da chegada do Salvador foi revelado a pessoas tão insignificantes como essas!

A coisa se torna ainda mais notável quando comparamos este capítulo com Mateus 2. Lá a cena acontece entre os grandes em Jerusalém – o rei Herodes, seus cortesãos, principais sacerdotes e escribas – e eles são completamente ignorantes deste evento maravilhoso por meses depois, e então só ouvem falar dele por meio da chegada dos magos do Oriente, homens que eram completamente estranhos em relação à nação de Israel. A explicação nos é dada nas palavras do salmista: “O segredo do Senhor é para os que O temem” (Sl 25:14). Deus não faz acepção à pessoa de ninguém, mas respeita a humildade e a integridade de coração diante de Si mesmo; então Ele ultrapassou os grandiosos em Jerusalém, e enviou uma delegação de seres angélicos para servir um pequeno grupo de desprezados vigias noturnos para que eles pudessem ser introduzidos no segredo dos caminhos do céu. Esses pastores eram alguns do remanescente piedoso esperando pelo Messias, como as palavras e ações subsequentes nos mostram.

Primeiro veio a mensagem do anjo e depois o louvor dos anjos. A grande alegria da mensagem centrou-se no fato de que era como Salvador que Ele havia vindo. Eles tinham tido o Legislador e os profetas, mas agora havia chegado o Salvador, e Ele como Cristo, o Senhor, era O grandioso. Essa boa notícia foi para “todo o povo” – não “todo povo” como a versão King James apresenta. No momento, um círculo mais amplo do que todo Israel não está em vista. O sinal deste evento maravilhoso foi um que nunca poderia ter sido previsto. Os homens poderiam ter esperado ver um poderoso guerreiro envolto em trajes de glória e sentado em um trono. O sinal era um Bebê envolto em panos, deitado em uma manjedoura. Mas então o sinal indicou toda a maneira e espírito de Sua aproximação aos homens neste momento.

O louvor dos anjos é compactado em dezesseis palavras, registradas no versículo 14 – embora poucas em número, eram palavras de significado profundo. Elas registram os resultados finais que fluiriam do advento do Bebê. Deus deve ser glorificado nos assentos mais altos de Seu poder, o próprio lugar onde o mais insignificante insulto lançado sobre Seu nome seria mais intensamente percebido e sentido. Na Terra, onde desde a queda, guerras e lutas têm sido incessantes, a paz deve ser estabelecida. Deus encontrará o Seu bom prazer nos homens. “Bom prazer nos homens” é a tradução de J. N. Darby. Desde o momento em que o pecado entrou não houve prazer para Deus em Adão ou em sua raça: mas agora havia aparecido aqu’Ele que é de ordem de humanidade distinta da de Adão, devido ao Virginal nascimento, que tem sido claramente afirmado no primeiro capítulo. N’Ele o bom prazer de Deus repousa em medida suprema, assim como repousará nos homens que estão n’Ele como o fruto de Sua obra. Resultados maravilhosos de fato!

Para tudo isso, os pastores deram a resposta de fé. Eles não disseram: “Vamos… e vejamos se isso aconteceu”, mas “Vamos… e vejamos isso que aconteceu”. Eles vieram apressadamente e viram, com seus próprios olhos, o Bebê; então prestaram testemunho a outros. Poderiam então dizer: “Deus tem dito e nós temos visto isto” – o testemunho divino comprovado por experiência pessoal. Tal testemunho está destinado a ter efeito. Muitos questionaram, e a própria Maria guardou estas coisas, ponderando-as em seu coração; pois evidentemente ela ainda não entendia o pleno significado disso tudo. Quanto aos pastores, eles imitaram o espírito dos anjos, glorificando e louvando a Deus. Assim houve louvor na Terra bem como louvor no céu nesta grande ocasião; e nos atrevemos a pensar que o louvor desses humildes homens aqui abaixo tinha em si uma nota que estava ausente do louvor dos anjos do Seu poder acima.

Nos versículos 21-24 nos é permitido ver que todas as coisas que a lei ordenou foram observadas no caso da santa Criança, e quando A apresentaram ao Senhor no templo dois santos idosos, andando no temor do Senhor, estavam lá para saudá-La como guiados pelo Espírito de Deus. Acabamos de observar como os grandes homens de Jerusalém estavam totalmente fora de contato com Deus e não sabiam nada sobre Ele: havia aqueles em contato com Deus e eles logo souberam, embora nenhum anjo lhes aparecesse. O Espírito Santo estava sobre Simeão e, pelo Espírito, ele não apenas sabia que deveria ver o Cristo de Jeová antes de morrer, mas também ele veio no templo no exato momento em que o menino Jesus estava lá. O mesmo acontece com Ana, já de idade avançada. Sua visita foi perfeitamente sincronizada, de modo que ela O viu.

Lendo os versículos 28-35, podemos sentir o quão comovente a cena deve ter sido. O ancião se dirigiu a Deus e depois se dirigiu a Maria. Ele estava pronto para partir em paz, depois de ter visto a salvação de Jeová na santa Criança. Ele realmente foi um passo além do anjo, pois ele reconheceu que a salvação de Deus havia sido preparada diante da face de “todos os povos” – a palavra está no plural desta vez. Jesus não era apenas para ser a glória de Israel, mas também uma “luz para revelação aos gentios” (TB). Foi revelado a ele que a graça iria fluir além das estreitas fronteiras de Israel.

Foi revelado a ele também que o Cristo veio para ser contraditado. Vagamente talvez ele tenha visto isso, mas ali estava – a sombra da cruz quando a espada deveria atravessar a alma de Maria. Isso aprendemos com as palavras de Simeão para ela.

Podemos nos maravilhar, talvez, de que Simeão, podendo ter vivido até que efetivamente tivesse o Salvador em seus braços, estava tão pronto para partir “em paz”. Poderíamos ter imaginado que ele teria sentido uma coisa tentadora em ver o começo da intervenção de Deus dessa maneira, e mesmo assim ter que partir antes que o clímax fosse alcançado. Mas, evidentemente, foi dado a ele, como um profeta, prever a rejeição de Cristo, e, portanto, ele não esperava a chegada da glória imediatamente, e estava preparado para partir.

Ele anunciou que a Criança colocaria Israel em prova. Muitos que eram altos e elevados cairiam, e muitos que eram humildes e desprezados seriam elevados; e como Ele seria alvo de contradição e rejeitado, os pensamentos de muitos corações viriam à luz quando entrassem em contato com Ele. Na presença de Deus todos os homens são forçados a se apresentar em seu verdadeiro caráter, de forma que esta característica sobre Cristo era um tributo involuntário à Sua divindade. Além disso, a própria Maria deveria ser traspassada com tristeza, como por uma espada; uma palavra que se cumpriu quando ela ficou diante da cruz.

A muito idosa Ana, completa esta bela imagem do remanescente piedoso em Israel. Ela servia a Deus continuamente e, quando viu o Cristo, “falava d’Ele”.

Podemos recapitular neste ponto, resumindo as características que marcaram essas pessoas piedosas. Os pastores ilustram a fé que os caracterizou. Eles aceitaram imediatamente a palavra que chegou a eles por meio do anjo, então seus próprios olhos verificaram tudo, então glorificaram e louvaram a Deus.

Maria exemplifica o espírito pensativo e meditativo, que espera em Deus por entendimento – versículo 19.

Simeão era o homem que estava esperando o Cristo sob a instrução e poder do Espírito de Deus. Ele estava satisfeito com Cristo quando ele O encontrou, e profetizou a respeito d’Ele.

Ana foi quem servia a Deus continuamente e testemunhava do Cristo, quando ela O encontrou.

Por fim, houve grande cuidado em que todos os detalhes concernentes ao Cristo fossem cumpridos conforme havia ordenado a lei do Senhor. Cinco vezes acima é afirmado que a lei foi observada – versículos 22, 23, 24, 27 e 39. Esta excelente característica, presumimos, deve ser creditada a José, o marido de Maria – esta obediência cuidadosa à Palavra de Deus.

Estamos agora esperando por Seu segundo advento. Como seria bom se, em nossos casos, essas excelentes características fossem fortemente marcadas.

O versículo 40 abrange os primeiros doze anos da vida de nosso Senhor. Transmite-nos o fato de que o desenvolvimento normal da mente e do corpo, que é próprio da humanidade, O marcou; um testemunho de sua verdadeira Humanidade.

Isto é reforçado também pelo vislumbre adicional que nos é dado aos doze anos de idade. Ele não estava ensinando os homens instruídos, mas estava ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas de modo a admirarem-se ao questioná-Lo. Aqui, novamente, vemos que Ele cumpre perfeitamente aquilo que é próprio de uma criança de tal idade, ao mesmo tempo em que manifesta características que eram sobrenaturais. Sua resposta à Sua mãe também mostrou que Ele estava consciente de Sua missão. No entanto, por muitos anos vindouros, Ele tomou o lugar de sujeição em relação a José e Maria, e assim demonstrou toda a perfeição humana adequada a Sua idade.

LUCAS 3

O início do ministério de João está plenamente determinado nos dois primeiros versículos. Eles mostram que as coisas estavam inteiramente fora de curso; o governo havia passado aos gentios, e mesmo em Israel as coisas estavam em confusão, pois havia dois sumos sacerdotes em vez de um. Por isso, o arrependimento foi a nota dominante em sua pregação. Os profetas anteriores haviam arrazoado com Israel e lhes lembraram da quebra da lei. João não faz mais isso, mas exige arrependimento. Eles deveriam reconhecer que estavam irremediavelmente perdidos com base na lei e deveriam tomar seu lugar como homens mortos nas águas de seu batismo. Foi “o batismo de arrependimento para o perdão [a remissão – ARA] de pecados”. Se ouvissem João e se arrependessem, estariam moralmente preparados para receber a remissão de pecados por meio daqu’Ele que estava para vir. Assim, o caminho diante do Senhor seria endireitado.

Note como esta citação de Isaías fala da vinda de Jeová e como esta vinda de Jeová é obviamente cumprida em Jesus. O versículo 5 declara a mesma verdade que tínhamos em Lucas 1:52-53 e 2:34, apenas colocando na linguagem mais figurativa. O versículo 6 mostra que, como aqu’Ele que estava para vir era Um não menos do que Jeová, a salvação que Ele traria não deveria ser confinada aos estreitos limites de Israel, mas seria para “toda carne” (ARA). A graça estava prestes a chegar e transbordaria em todas as direções. Essa graça é um dos temas especiais do evangelho de Lucas.

Mas João não apenas pregou o arrependimento de uma maneira geral, ele também fez disso um assunto muito contundente e pessoal. Multidões se aglomeravam a ele, e seu ameaçador batismo começou a se tornar como que um culto popular, quase uma atividade em moda. As coisas funcionam da mesma maneira hoje: qualquer ordenança religiosa, como o batismo, se degenera muito facilmente em uma espécie de festa popular. Evidentemente, João não teve o menor medo de ofender sua audiência e estragar sua própria popularidade. Nada poderia ser mais vigoroso do que suas palavras registradas nos versículos 7-9. Ele disse ao povo o que eles claramente eram; avisou-os da ira vindoura; ele clamou pelo arrependimento genuíno que produziria frutos; ele mostrou que nenhum lugar de privilégio religioso lhes valeria, pois Deus estava prestes a julgar as próprias raízes das coisas. O machado estava prestes a cortar, não os galhos, mas prestes a atingir a raiz para derrubar a árvore inteira. Esta era uma figura muito explicativa; e cumprida não na execução do julgamento exterior, como marcará o segundo Advento, mas naquele julgamento moral que foi alcançado na cruz. O segundo Advento será caracterizado pelo fogo que consumirá a árvore morta: o primeiro Advento conduziu à cruz, onde a sentença judicial de condenação foi promulgada contra Adão e sua raça; ou em outras palavras, quando a árvore foi cortada.

João exigiu ações, não palavras, como frutos práticos do arrependimento, e isso levou à pergunta do povo, registrada no versículo 10. Os publicanos e os soldados seguiram com perguntas semelhantes. Por suas respostas em cada caso, João colocou o dedo sobre os pecados particulares que marcaram as diferentes classes. No entanto, embora as respostas variassem, podemos ver que a cobiça provocou todos os erros com os quais ele lidou. De todas as ervas daninhas que florescem no coração humano, a cobiça é mais profunda e difícil de lidar: como o dente-de-leão, suas raízes penetram a uma grande profundidade. O verdadeiro arrependimento leva à verdadeira conversão do antigo caminho de pecado, e João sabia disso.

Assim, João preparou o caminho do Senhor, e não apenas isso, mas também apontou fielmente para Ele, e nem por um momento permitiu que o povo pensasse grandes coisas de si mesmo. Ele se proclamou ser apenas o mais humilde servo da grande Pessoa que estava vindo – tão humilde a ponto de ser indigno de realizar o serviço mais simples de desamarrar Suas sandálias. O que viria era tão grande que Ele batizaria os homens com o Espírito Santo e com fogo: o primeiro para abençoar e o último para o julgamento, como o próximo versículo torna abundantemente claro. Aqui, novamente, podemos notar que os dois Adventos não são ainda claramente distinguidos. Houve um batismo do Espírito, registrado em Atos 2, como resultado do Primeiro Advento, mas o batismo com fogo, de acordo com o versículo 17, aguarda o Segundo Advento.

Lucas registra o ministério fiel de João e, em seguida, rapidamente o descarta a fim de abrir caminho para Jesus. O aprisionamento de João não ocorreu exatamente nessa ocasião, mas Lucas se desvia da ordem histórica para colocar a coisa diante de nós de maneira moral e espiritual. O ministério de João, semelhante ao de Elias, desaparece diante daqu’Ele que seria o Vaso da graça de Deus; e Quem foi batizado, e assim introduzido ao Seu ministério. Não nos é dito aqui que foi João quem O batizou, mas nos é dito que Ele estava orando quando foi batizado, algo que não é mencionado em qualquer outra parte. Este evangelho evidentemente enfatiza a perfeição da humanidade de nosso Senhor. A graça para o homem é investida em Alguém que é o Homem perfeito, e a primeira característica da perfeição no homem é a dependência de Deus. A oração é uma expressão dessa dependência, e vamos notar neste evangelho quantas vezes é registrado que Jesus orou. Esta é a primeira instância.

Neste Homem de oração e dependente, o Espírito Santo desceu em forma corpórea como uma pomba, enquanto a voz do Pai declarava que Ele era o Filho amado, o Objeto de todo o deleite divino. Assim, finalmente, a verdade da Trindade se tornou manifesta. O Espírito tornou-Se por um momento visível; o Pai tornou-Se audível; o Filho estava aqui em carne e osso e, consequentemente, não apenas visível e audível, mas tangível também. É maravilhoso que o céu é aberto e toda a sua atenção se concentre em um Homem orando na Terra. Mas naqu’Ele Homem que orava, Deus deveria ser conhecido, pois “n’Ele toda a plenitude da Divindade tinha prazer em habitar” (Cl 1:19 – JND).

Tendo assim, a voz do Pai O reconhecido como o Filho amado, Lucas agora apresenta Sua genealogia por meio de Maria para mostrar quão realmente Ele também é Homem. Mateus traça Sua descendência desde Abraão, o depositário da promessa, e desde Davi, o depositário da realeza. Lucas traça Sua ascendência até Adão e até Deus, pois é simplesmente a Sua Humanidade que é o ponto, e isso foi por Maria, pois José era apenas Seu suposto pai. Ele é verdadeiramente um Homem, embora o Filho de Deus. Ele é o segundo Homem, o Senhor do céu, aqu’Ele que transborda com a graça de Deus.

LUCAS 4

Nosso capítulo se inicia com Ele voltando do Seu batismo, cheio do Espírito Santo. Mas antes de começar Seu serviço, Ele deve ser tentado por quarenta dias pelo diabo. O Espírito levou-O para esta prova, e aqui vemos o contraste glorioso entre o Segundo Homem e o primeiro.

Quando o primeiro homem foi criado, Deus pronunciou que tudo era muito bom, mas Satanás entrou imediatamente em cena, tentou o homem e o arruinou. O Segundo Homem apareceu, e a voz do Pai pronunciou Sua excelência; então novamente Satanás entra em cena com prontidão, mas desta vez ele encontra o Homem, cheio do Espírito Santo, que é imune a suas artimanhas. Quando o primeiro homem caiu, ele não conhecia as ânsias da fome, pois habitava no fértil jardim plantado pela mão do seu Criador. O Segundo Homem vitoriosamente Se manteve, embora o jardim tivesse se transformado em um deserto e Ele estivesse faminto.

Lucas evidentemente nos relata as tentações na ordem moral e não histórica. Mateus nos dá a ordem histórica e nos mostra que o fim da tentação foi quando o Senhor ordenou que Satanás se retirasse, conforme registrado no versículo 8 de nosso capítulo. A ordem aqui concorda com a análise que João faz do mundo em 1 João 2. A primeira tentação foi evidentemente projetada para apelar à concupiscência da carne, a segunda à concupiscência dos olhos e a terceira à soberba da vida. Mas tais concupiscências ou orgulho não tinham lugar em nosso Senhor, e as três provas serviram apenas para revelar Sua perfeição em seus detalhes.

O Senhor Jesus tornou-Se verdadeiramente um Homem, e em resposta à primeira tentação Ele tomou o lugar apropriado do homem em total dependência de Deus. Assim como a vida natural do homem depende de se alimentar do pão, sua vida espiritual depende de se alimentar da Palavra de Deus e sua obediência a ela. Em resposta à segunda tentação foi vista Sua dedicação à Deus de todo o Seu coração. Poder e glória e domínio em si mesmos não era nada para Ele; Ele estava totalmente pronto para a adoração e serviço a Deus. Ele enfrentou a terceira tentação, na qual Ele foi instigado a colocar a fidelidade de Deus à prova, como Sua inabalável confiança em Deus. O grande adversário não encontrou nenhum ponto fraco n’Ele. Ele confiava em Deus sem testá-Lo.

As três características manifestadas de modo tão proeminente – dependência, devoção, confiança – são aquelas que marcam o Homem perfeito. Elas são muito distintamente vistas no Salmo 16, que pelo Espírito de profecia expõe Cristo em Suas perfeições como Homem.

Tendo sido testado por Satanás e triunfado sobre ele no poder do Espírito Santo, o Senhor Jesus retornou à Galileia para começar Seu ministério público no poder do mesmo Espírito, e Sua primeira declaração escrita está na sinagoga de Nazaré, onde Ele havia sido criado. Ele leu as palavras iniciais de Isaías 61, parando no ponto em que a profecia passa do primeiro advento para o segundo. “O dia da vingança do nosso Deus” ainda não tinha chegado, mas parando no ponto em que Ele o fez, onde em nossa versão apenas aparece uma vírgula (ARA), Ele pôde começar Seu sermão dizendo: “Hoje se cumpriu esta escritura em vossos ouvidos”. Ela apresentava-O como o Ungido pelo Espírito de Deus, em Quem a plenitude da graça de Deus devia se fazer conhecida aos homens.

Esta apresentação de Si mesmo parece ser característica do evangelho de Lucas. Embora Ele fosse Deus na plenitude de Sua Pessoa, ainda assim Ele vem diante de nós como o Homem dependente, cheio do Espírito Santo, falando e agindo no poder do Espírito, e derramando graça para os homens. O que maravilhou os ouvintes em Nazaré foram “as palavras de graça que saíram da Sua boca”. A lei de Moisés tinha sido constantemente repetida dentro das paredes da sinagoga, mas nunca a graça fora assim proclamada ali. Mas não era suficiente proclamar a graça em abstrato: Ele passou a ilustrar a graça para que as pessoas pudessem perceber o que isso envolvia. Ele citou dois exemplos de suas próprias Escrituras, onde a bondade de Deus havia sido demonstrada, e em ambos os casos os recebedores da graça eram dos gentios pecadores. A viúva sidônia estava em uma situação desesperadora – “sem força”. O soldado sírio estava entre os “inimigos” de Deus e do Seu povo. Assim, os dois casos ilustram muito bem Romanos 5:6-10, pois a mulher foi salva e sustentada, e o homem foi purificado e reconciliado.

Esta bela apresentação da graça em sua obra prática não adequou o povo de Nazaré. Em resumo, palavras graciosas eram todas muito agradáveis, mas quando perceberam que a graça não pressupõe nada além do demérito naqueles que a recebem, eles se levantam em orgulhosa rebelião e grande fúria, e teriam matado Jesus se Ele não tivesse escapado pelo meio deles. As boas coisas que a graça traz eram suficientemente aceitáveis, mas eles não as queriam no terreno da graça, uma vez que isso supunha que eles não eram melhores que os gentios pecadores. A mente moderna provavelmente aprovaria a graça sendo oferecida na favela, enquanto a consideraria uma afronta se pregada na sinagoga. A mente judaica nem sequer ouviria falar da graça ser exercida na favela!

Assim, de uma maneira muito definida, houve uma rejeição da graça logo na primeira vez em que foi proclamada, e isto não era em Jerusalém entre os escribas e fariseus, mas nas partes mais humildes da Galileia, no próprio lugar onde Ele havia sido criado. Sua familiaridade com Ele agia como um véu sobre seus corações.

À luz de tudo isso, a seção de conclusão do capítulo é muito bonita. Quando os homens oferecem uma gentileza no espírito da graça, e isso é rejeitado com contundência e violência, eles são ofendidos, e se afastam com desgosto. Não foi assim com Jesus. Se fosse assim, onde deveríamos estar? Ele retirou-Se de Nazaré, mas passou para Cafarnaum e ali pregou. Seu ensinamento os surpreendeu, sem dúvida por causa da nova nota de graça que o caracterizou, e também por causa da autoridade divina com a qual estava revestida.

Na sinagoga Ele entrou em conflito com os poderes das trevas. A sinagoga era algo morto, por isso homens possuídos por demônios poderiam estar presentes sem serem detectados. Mas assim que o Senhor apareceu o demônio se revelou, e também mostrou que ele sabia Quem Ele era, mesmo que o povo estivesse em ignorância. Jesus era realmente o Santo de Deus, mas em vez de aceitar o testemunho do demônio, Ele o repreendeu e expulsou-o de sua vítima. Assim Ele provou o poder da Sua Palavra.

No versículo 36 temos tanto autoridade como poder, a última palavra que significa força dinâmica. No versículo 32 a palavra é realmente autoridade. Então, temos a graça da Sua Palavra no versículo 22, seguida da autoridade da Sua Palavra e do poder da Sua Palavra. Não é de admirar que o povo estivesse dizendo: “Que Palavra é essa!” E nós, que recebemos neste dia o evangelho da graça de Deus, temos igual motivo para tal exclamação. Que maravilhas da regeneração espiritual estão sendo produzidas pelo evangelho hoje!

Da sinagoga Ele passou para a casa de Simão onde a doença estava dominando, mas que desapareceu diante de Sua Palavra. E então, ao anoitecer, veio aquela maravilhosa manifestação do poder de Deus na plenitude da graça. Todos os tipos de doenças e enfermidades foram trazidos à Sua presença e houve libertação para todos. Ele “punha as mãos sobre cada um deles e os curava”. Assim, Ele exemplificou a graça de Deus, pois fluir para todos é exatamente o caráter da graça, independentemente do mérito ou demérito. Da parte de Deus, é oferecida livremente e para todos. O versículo 40 inspirou o hino:

Quando se põe o Sol ao entardecer,

e certamente todos nos regozijamos em cantar,

Teu toque ainda tem seu antigo poder,

Nenhuma palavra de Ti pode sem fruto ficar.

Mas, por mais belo que esse hino seja, a realidade mencionada no versículo 40 é muito mais adorável. Tal é a graça do nosso Deus.

E a graça que foi exibida naquela noite memorável não foi esgotada pela sua manifestação. Ele saiu para outro lugar a pregar o reino de Deus – um reino a ser estabelecido não com base nas obras da lei, mas sobre a base que seria colocada pela graça como fruto de Sua própria obra.

LUCAS 5

No capítulo anterior vimos o Senhor Jesus vindo no poder do Espírito para anunciar a graça de Deus e ser confrontado imediatamente com a rejeição do homem. Vimos, no entanto, que Ele seguiu Seu caminho de graça inabalado a tudo isso. Este capítulo apresenta-nos agora uma série de imagens encantadoras, ilustrando o que a graça realiza no caso daqueles que a recebem. Quatro homens vêm diante de nós – Pedro, o leproso, o paralítico, Levi – e uma característica diferente marca cada um deles. Eles seguem um ao outro em uma ordem que é moral, se não estritamente cronológica.

Tanto Mateus como Marcos nos diz como o Senhor chamou os quatro pescadores para serem Seus seguidores, mas apenas Lucas nos informa sobre a milagrosa quantidade de peixes apanhada, que causou uma impressão tão profunda em Pedro. O Senhor usou seu barco e não ficaria seu devedor, mas foi a graça que lhe rendeu uma recompensa tão abundante. Tornou-se ainda mais impressionante o fato de que eles haviam passado uma noite cheia de trabalho e totalmente infrutífera. Ora não havia apenas abundância, mas superabundância. Onde trabalho infrutífero abundou, aí os ricos resultados abundaram muito mais. A única falha estava ligada à sua capacidade de conservar o que a graça concedia.

O barco de Pedro saiu duas vezes para o lago, uma vez à noite, quando podia haver expectativas por peixe, uma vez ao dia, quando não havia. O lugar era o mesmo nas duas ocasiões, assim como os homens, e também o equipamento deles. O que fez a diferença? Uma coisa e uma coisa só. Cristo havia entrado no barco. Pedro teve seus olhos abertos para ver esse fato e isso evidentemente fez o Salvador brilhar diante dele em uma luz que era divina. Encontrando-se na presença de Deus, embora fosse Deus presente na plenitude da graça, forjou no coração de Pedro a convicção de sua própria pecaminosidade.

Ora esta é a primeira coisa que a graça traz consigo – a convicção do pecado. A graça produz essa convicção em uma medida mais profunda do que jamais a lei produziu, e a graça atrai enquanto a produz a convicção. Aqui está o maravilhoso contraste. A lei de Moisés, quando dada no Sinai, provocou convicção de inaptidão por parte do povo, e repeliu-os e enviou-os para longe do monte em chamas. A graça na Pessoa de Jesus convenceu de tal maneira a Pedro que confessou estar cheio de pecado e, mesmo assim, se colocou aos joelhos de Jesus, se aproximando do Salvador o máximo que pôde.

O próximo incidente, apropriadamente, é sobre um homem, não exatamente cheio de pecados, mas cheio de lepra, que é um tipo do pecado. Tão cheio de lepra era ele que se sentia um objeto demasiado repulsivo para contar com confiança na bondade de Jesus. Ele estava confiante em Seu poder, mas duvidoso quanto à Sua graça. Então ele se aproximou com as palavras: “Senhor, se quiseres revelando-se completamente cheio de lepra e parcialmente cheio de dúvidas. A graça do Senhor imediatamente se elevou ao seu auge. Todo o poder estava em Sua Palavra, mas Ele estendeu a mão e tocou-o, como se para apagar de sua mente para sempre a última dúvida que persistia e colocá-lo perfeitamente à vontade.

Agora, aqui vemos que a graça traz a purificação, a purificação que a lei não trouxe, embora fizesse provisão para o reconhecimento pelos sacerdotes de qualquer purificação que deveria ser efetuada a qualquer momento pelo poder de Deus. Ali estava o poder de Deus operando na plenitude da graça, e era de fato uma visão adorável! Não nos admiramos de que grandes multidões se ajuntassem para ouvir e ser curadas, como registra o versículo 15.

Não deixe escapar o versículo 16. Jesus tomou o lugar do Homem em dependência de Deus, agindo pelo poder do Espírito. A graça tem fluído livremente d’Ele, e Ele aplica tempo para a comunhão em oração, retirado do ambiente dos homens, antes de entrar mais profundamente em contato com a necessidade humana.

Em seguida vem o caso do homem atacado pela paralisia e reduzido a um estado de total desamparo. Nada é dito quanto à sua fé, embora fé impressionante e enérgica tenha sido demonstrada pelos homens que o trouxeram, e o Senhor a respondeu abundantemente. Os fariseus e os doutores da lei, que estavam presentes, completam a imagem com uma espécie de fundo sombrio. Eles tinham muitas necessidades e o poder do Senhor estava presente para curá-los, já que a graça traz seus amplos suprimentos gratuitamente e para todos. Estavam presentes, no entanto, para dar e não para receber. E o que deram foi crítica, e ela foi comprovada estar errada! Eles lançaram suas críticas e perderam a bênção.

O homem obteve a bênção – o poder foi concedido a ele. Isso era exatamente o que precisava. O homem cheio de pecado não só precisa ser purificado do seu pecado, mas também precisa de poder sobre o seu pecado, e precisa desse poder em conexão com o perdão. Evidentemente, no caso deste homem, sua paralisia foi o resultado de seu pecado, e o Senhor lidou com a raiz do problema antes de dirigir a Si mesmo ao fruto. Esse é o caminho que a graça sempre toma, pois nunca há nada de superficial em seus métodos. Os fariseus que criticavam não podiam libertar o corpo do homem das garras da paralisia nem livrar sua alma da culpa de seus pecados. Jesus poderia fazer as duas coisas: e Ele provou Seu poder para realizar a maravilha do perdão, que estava fora da observação humana, realizando a maravilha da cura bem diante de seus olhos.

Os fariseus estavam certos em acreditar que ninguém, apenas Deus, pode perdoar. Mas quando O ouviram dar a absolvição, denunciaram-No como blasfemo. Deduzimos disso que Ele é Deus. Cada um de nós tem que enfrentar essa alternativa nítida e clara, e feliz é aquele que tomar a decisão certa. A cura que o homem recebeu foi dada à maneira de Deus. Ele levantou-se um homem forte, capaz de levantar a cama imediatamente e marchar para sua casa. Ele fez isso glorificando a Deus, e os espectadores foram movidos da mesma maneira. A graça, quando manifestada, leva à glória de Deus.

Em quarto lugar, Levi entra em cena e ilustra o fato de que a graça fornece um objeto para o coração. Quando Jesus o chamou, ele estava ocupado na agradável tarefa de receber dinheiro. Sua mente e coração foram instantaneamente desviados de seu dinheiro e ele começou a seguir o Senhor, com o resultado que vemos adiante ao vê-lo invertendo o processo, e distribuindo ao dar aos pobres de acordo com o Salmo 112:9. Levi convidou uma grande companhia de publicanos e outros para sua festa, mostrando como imediatamente seus pensamentos haviam sido colocados em sintonia com seu recém-encontrado Senhor, e que ele havia captado o espírito da graça. No entanto, Cristo foi o verdadeiro Objeto da festa, pois diz que “fez-Lhe Levi um grande banquete em sua casa”. Os fariseus estavam totalmente discordes com este espírito de graça, mas suas objeções só serviam para trazer a grande palavra: “Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores, ao arrependimento”.

Tudo o que temos dito pode ser resumido nisto: Graça produz convicção de pecado, e depois trabalha limpando do pecado. Então ela confere poder, e também conforma o recebedor à semelhança daqu’Ele em Quem a graça é expressada. Cristo Se tornando o Objeto de Levi, podemos ver como ele começou a captar o espírito de seu Mestre.

Do versículo 33 até o capítulo 6, outra coisa começa a emergir claramente; e isso é que a graça liberta da escravidão e conduz à liberdade. Os fariseus não gostavam da graça e eram muito fortes quanto aos jejuns e orações e outras cerimônias prescritas pela lei. A lei gera escravidão e a graça traz liberdade: isso é ensinado completamente na epístola aos Gálatas. A plena verdade exposta ali não poderia ser revelada até que a morte e a ressurreição de Cristo fossem cumpridas e o Espírito tivesse sido dado, ainda aqui encontramos o Senhor começando a falar das coisas que tão cedo iriam brilhar claramente. Ele usa linguagem parabólica ou ilustrativa, mas seu significado é claro. Sendo o verdadeiro Messias, Ele era o “Noivo” (TB), e Sua presença com Seus discípulos proibia que eles estivessem sob aquelas restrições.

Então, além disso, Ele estava introduzindo o que era novo. N’Ele a graça de Deus começava a brilhar e, como um pedaço de tecido novo, não podia ser tratado como um remendo a ser colocado na velha vestimenta da lei. O novo imporá tal tensão ao velho tecido que ele se rasgará, e também não haverá adequação entre o novo e o velho. Eles se mostrarão totalmente incongruentes.

Novamente, mudando a figura, a graça com sua expansividade pode ser comparada à ação do novo vinho; enquanto as formas e ordenações da lei são marcadas pela rigidez dos odres velhos. Se a tentativa é feita para confinar um dentro do outro, o desastre é certo. Novos vasos devem ser encontrados que sejam capazes de conter o novo poder.

Desta maneira marcante o Senhor indicou que a graça de Deus, que havia chegado em Si mesmo, criaria suas próprias novas condições, e que as “ordenanças da carne” (ARA) instituídas em Israel sob a lei só foram “impostas até ao tempo da correção [reforma – ARA] (Hb 9:10). Mas ao mesmo tempo Ele indicou que os homens naturalmente preferem a lei à graça – o vinho velho é melhor do que o novo. Uma grande razão para isso é que, pelo simples fato de dar a lei aos homens, supõe-se que eles talvez fossem capazes de guardá-la; enquanto a graça é oferecida sobre a base convicta de que o homem é uma criatura irremediavelmente perdida.

LUCAS 6

Ao abrimos este capítulo, vemos os fariseus e escribas tentando limitar as ações dos discípulos, e depois também o poder de graça do Senhor, dentro dos limites do sábado judaico, como eles estavam acostumados a fazer cumprir. Isso ilustra Seu ensinamento no final do capítulo 5, e como resultado o “odre” do sábado judaico explode, e a graça flui apesar deles.

As palavras “no sábado segundo-primeiro” cremos que se refiram a Levítico 23:9-14, e se destinem a nos mostrar que o “molho das primícias” já havia sido oferecido e, portanto, não havia impedimento à ação dos discípulos, exceto a estrita imposição do sábado pelos fariseus. A resposta do Senhor à sua objeção foi dupla: primeiro, Sua posição; segundo, Sua Pessoa.

Sua posição foi análoga à de Davi quando entrou na casa de Deus e comeu do pão da proposição. Davi era o rei ungido de Deus e ainda rejeitado, e não era a mente de Deus que Seu ungido e seus seguidores devessem morrer de fome a fim de manter pequenos detalhes técnicos da lei. Todo o sistema de Israel estava fora de curso pela recusa do rei, e não havia tempo para se concentrar nos detalhes menores da lei. Então aqui, os fariseus estavam preocupados com trivialidades enquanto rejeitavam o Cristo.

O versículo 5 enfatiza a Sua Pessoa. O homem, como originalmente criado, foi feito senhor da criação terrena. O Filho do Homem é o Senhor sobre uma esfera muito mais ampla. Ele não estava preso ao sábado, o sábado estava à Sua disposição. Quem então é este Filho do Homem? Isso era o que os fariseus não sabiam, mas o Senhor indicou Sua grandeza por essa afirmação que fez.

O incidente relativo ao homem com a mão mirrada segue nos versículos 6-11. Aqui, novamente, surgiu a questão do sábado, e os fariseus pressionaram suas objeções técnicas ao proibir o exercício da misericórdia naquele dia. Aqui vemos não a afirmação da posição do Senhor, nem da Sua Pessoa, mas do Seu poder. Ele tinha poder para curar em graça e aquele poder Ele exerceu, quer tenham gostado ou não. Ele aceitou o desafio deles, e fazendo o homem se levantar no meio, Ele o curou da maneira mais pública possível. Os príncipes dos filisteus tentaram amarrar as mãos de Sansão com “sete vergas de vimes frescos”, mas tentaram em vão. Os príncipes de Israel estavam tentando fazer cordas da lei do sábado, com o objetivo de amarrar as mãos de graça de Jesus, e eles também tentaram em vão.

Não conseguindo fazê-lo, ficaram cheios de raiva e começaram a planejar Sua morte. Em face de seu ódio crescente, Jesus Se retirou para o isolamento da comunhão com Deus. No último capítulo, vemos Ele Se retirando para a oração, quando multidões O apertavam e o sucesso parecia ser d’Ele. Ele faz exatamente o mesmo quando negras nuvens de oposição parecem envolvê-Lo. Em todas as circunstâncias, a oração era o recurso do Homem perfeito.

É significativo ainda que o que se seguiu a esta noite de oração foi a escolha dos doze homens que deveriam ser enviados como apóstolos. Entre os doze estava Judas Iscariotes, e porque ele deveria ter sido incluído nos parece misterioso. O Senhor o escolheu, no entanto, e assim sua escolha estava certa. Nenhum erro foi cometido depois daquela noite de oração.

Do versículo 17 até o final do capítulo, recebemos um registro da instrução que Ele deu aos Seus discípulos e, especialmente, a esses doze homens. Podemos dar um resumo geral de Suas declarações dizendo que Ele os instruiu quanto ao caráter que seria produzido neles pela graça de Deus que Ele estava dando a conhecer. O discurso se parece muito com o Sermão da Montanha de Mateus 5-7, mas a ocasião parece ter sido diferente. Sem dúvida, o Senhor repetidamente disse coisas muito semelhantes a multidões variadas de pessoas.

Nessa ocasião, o Senhor dirigiu-Se a Seus discípulos pessoalmente. Em Mateus, Ele descreveu determinada classe e diz que deles é o reino. Aqui Ele diz: **“**vosso é o reino”, identificando aquela classe com os discípulos. Seus discípulos eram os pobres, os famintos, os que choravam, os odiados e reprovados. Uma descrição como essa mostra que ele já estava tratando Sua própria rejeição como uma certeza, e os versículos seguintes (24-26) mostram que Ele estava dividindo o povo em duas classes: havia aqueles que se identificaram com Ele mesmo, compartilhando Suas tristezas e aqueles que eram do mundo e compartilhando as transitórias alegrias mundanas; sobre a cabeça de uns Ele invocou uma bem-aventurança, sobre a cabeça dos outros, um “ai”. Isto, claro, envolvia uma tremenda contradição. O triste e rejeitado é o abençoado; o alegre e popular está sob julgamento. Mas um segue os passos do Filho do Homem e sofre por causa d’Ele: e outro segue no caminho dos falsos profetas.

Tendo assim pronunciado uma bênção sobre Seus discípulos, Ele lhes dá instruções que, se colocadas em prática, significaria que elas refletiriam Seu próprio espírito de graça. Ele na verdade não os envia por enquanto, mas os instrui em vista de seu envio para representá-Lo e servir aos Seus interesses. O espírito de graça é especialmente marcado nos versículos 27-38. O amor que pode sair e até mesmo abraçar um inimigo não é humano, mas divino; enquanto qualquer pecador pode amar aquele que o ama. O discípulo de Jesus deve ser um amante, um abençoador, um doador; e, por outro lado, ele não deve ser aquele que julga e condena. Isso não significa que um discípulo não tenha poderes de bom senso e discernimento, mas significa que ele não deve ser caracterizado pelo espírito censurador que é rápido em atribuir motivos errados e assim julgar outras pessoas.

Essas instruções foram exatamente adequadas àqueles que foram chamados a seguir a Cristo durante Sua permanência na Terra. O espírito deles aplica-se igualmente àqueles chamados a segui-Lo durante Sua ausência da Terra. Este é o dia da graça, em que o evangelho da graça está sendo pregado, e é, portanto, da maior importância que devamos ser marcados pelo espírito da graça. Quantas vezes, infelizmente, nossa conduta desmentiu a causa com a qual estamos identificados. Uma grande quantidade de pregação da graça pode ser totalmente anulada por um pequeno comportamento indelicado por parte do pregador ou de seus amigos. Pela manifestação do amor, provamos ser os verdadeiros filhos de Deus – o Deus que é “benigno até para com os ingratos e maus”.

Não é tão fácil discernir a sequência do ensinamento contida nos versículos 39-49, mas há uma sequência indubitavelmente. Estes discípulos deveriam ser enviados como apóstolos em pouco tempo, então eles precisam estar vendo a si mesmos como pessoas. Se eram para estar vendo, deveriam ser ensinados; e para isso deveriam tomar o lugar humilde aos pés de seu Mestre. Eles não estavam acima d’Ele: Ele estava acima deles, e o objetivo colocado diante deles era ser como Ele. Ele era perfeição, e quando seu “curso universitário” fosse concluído, eles seriam como Ele é.

Para que isso seja assim, um espírito de julgamento próprio deve ser cultivado. Nossa tendência natural é julgar os outros e perceber suas menores falhas. Se julgarmos a nós mesmos, podemos descobrir algumas falhas muito substanciais. E a fé julgando-nos plenamente, poderá nos habilitar, eventualmente, a ajudar outros.

Do versículo 43, a profissão externa de discipulado é contemplada. Ao falar assim o Senhor pode ter tido alguém como Judas especificamente em vista. Entre aqueles que tomaram a posição de serem seus discípulos, pode ser encontrado tanto “um homem mau”, como “um homem bom”. Eles devem ser discernidos por seus frutos, vistos tanto em palavras como em ações. A natureza é revelada pelos frutos. Não podemos penetrar nos segredos da natureza, nem em uma árvore, nem em um homem, mas podemos facilmente e corretamente deduzir a natureza pelo fruto.

Isso leva à consideração de que a mera profissão não tem qualquer valor. Os homens podem repetidamente chamar Jesus de seu Senhor, mas se não houver obediência à Sua palavra, não há discipulado que Ele reconheça. O tipo de fundamento que não pode ser abalado sob as provas é estabelecido apenas pela obediência. O simples ouvir de Sua palavra à parte da obediência pode erigir um edifício que se pareça com a coisa real; mas se mostrará um desastre no dia da prova.

Vamos todos nos colocar sob o poder perscrutador desta palavra. O verdadeiro crente precisa enfrentá-lo, e nenhum de nós pode escapar disso. Isso se aplica a todo o círculo da verdade. Nada é real e solidamente nosso até que o submetamos à obediência da fé – não apenas a concordância da fé, mas a OBEDIÊNCIA da fé. Então, e somente então, nos tornaremos estabelecidos nela, de tal maneira que estaremos com “os alicerces sobre a rocha”.

Estas palavras de nosso Senhor revelam para nós, sem dúvida, o segredo de muitos trágicos colapsos no que diz respeito ao seu testemunho, por parte dos verdadeiros crentes; como também colapso e abandono da profissão de discipulado por parte daqueles que a adotaram sem qualquer veracidade.

A veracidade é aquilo que, acima de todas as coisas, o Senhor requer.

LUCAS 7

Lucas registrou a escolha dos doze apóstolos pelo Senhor e também as instruções que lhes deu, particularmente quanto ao espírito de graça que deveria caracterizá-los e a veracidade que deveria marcá-los. Descobrimos que Ele não os enviou imediatamente em sua missão, mas os reteve em Sua companhia, para que eles pudessem aprender mais de Si mesmo tanto por Suas Palavras como por Suas ações. O envio para servir não ocorre até o começo do capítulo 9.

Já notamos como esse evangelho é caracterizado pela revelação da graça. Vemos neste capítulo a continuação desse tema, mostrando de forma muito impressionante a extensão que a graça alcança. A bênção vai para os gentios, para o morto, para o corrompido. Além disso, a maneira pela qual a graça é recebida vem muito claramente à luz – pelo arrependimento e fé.

O primeiro caso registrado é o dos gentios. O centurião mostrou que ele aceitou seu lugar entre os “separados da comunidade d’Israel, e estranhos aos concertos da promessa” (Ef 2:12), enviando ao Senhor uns anciãos judeus para intercederem por ele. Os anciãos, fiéis à sua educação segundo a lei, teriam estragado totalmente a graça apresentando o centurião como digno. Sua dignidade, segundo eles, consistia em sua atitude gentil e atos para com eles mesmos! Isso era bem típico da mente judaica. Em vez de ver como a sua própria lei os condenava, eles a trataram como uma distinção conferida a eles; tornaram-se egocêntricos, tornaram eles mesmos e o tratamento que lhes era concedido, como o critério para outros. Assim, julgados por seus padrões, esse gentio era um homem digno.

O próprio centurião, no entanto, não tinha ilusões sobre o assunto. Ele confessou ser indigno, e assim manifestou o espírito de arrependimento. Ao mesmo tempo, ele manifestou notável fé na graça e poder do Senhor. Ele ocupava uma posição inferior de autoridade na organização militar de Roma, mas seu poder era absoluto em seu pequeno círculo. Ele discerniu no Senhor Um que exercia autoridade em um domínio vastamente maior, e estava confiante de que uma palavra d’Ele produziria tudo o que era necessário. Nosso falar deve ser semelhante ao dele. É suficiente que Ele diga “uma palavra”, e não precisamos de nada além disso. A fé que simplesmente crê n’Ele e em Sua palavra, sem raciocínios, sentimentos ou experiências, é “grande fé” (KJV) segundo o nosso Senhor. Além disso, vemos como intimamente a fé e o arrependimento estão conectados. Eles andam de mãos dadas.

Deste caso, passamos para o do homem morto, sendo levado de Naim para o túmulo. Aqui a fé não é visível de forma alguma: Suas compaixões e Sua ação preenchem a cena. Graça e autoridade são igualmente e harmoniosamente manifestadas. A compaixão divina brilhou nas palavras: “Não chores”, ditas à mãe aflita. Sua autoridade foi demonstrada; quando Ele tocou o esquife toda a procissão fúnebre parou. Então Sua palavra de poder trouxe o jovem de volta à vida.

Aqui está aqu’Ele que fala e os mortos O obedecem. “Eu te mando: levanta-te!” (ARA) Quem é esse “Eu”? Podemos muito bem fazer essa pergunta. O povo, evidentemente, perguntou-o, e eles decidiram que Deus havia levantado um grande profeta no meio deles, e as notícias dessas coisas chegaram até João Batista em sua prisão. Ora, uma questão, quanto a Quem Ele era afinal de contas, estava naquele momento predominando na mente de João, de modo que este incidente com relação aos mensageiros de João vem apropriadamente neste momento.

Os versículos 19-35 parecem ser uma espécie de parênteses em que nos é demonstrado que o poder exercido na graça, e não em pompa externa, é a prova da presença do Messias. Aos mensageiros de João foi permitido que vissem amplas provas desse poder em graça. Eles O viram fazendo o que Isaías 61:1 dissera que Ele faria. Essa foi uma prova ampla de Quem Ele era.

Então, voltando-Se para o povo quando os mensageiros de João se foram, Ele apontou que o próprio João, Seu precursor, não tinha sido um mero desprezível, nem tinha aparecido em pompa e luxo. Sua missão inteira tinha sido estritamente de acordo com o caráter daqu’Ele que ele anunciou, que era infinitamente grande e ainda assim veio em humilde graça. Ele designou João como um profeta tão grande que não havia nenhum maior do que ele. Isto evidentemente mostrou de imediato que quando o povo falava do próprio Cristo como “um grande profeta” eles estavam falhando ao ficar muito aquém da verdade a respeito d’Ele.

No que dizia respeito a João, embora tão grande, o menor no vindouro reino de Deus deveria ser maior do que ele – não moralmente, mas na posição que lhe pertencia. Moralmente João era realmente muito grande e seu testemunho de tamanha importância que o destino dos homens era determinado por sua atitude em relação a seu testemunho. Os publicanos e pecadores aceitaram o testemunho de João e, assim, justificando a Deus, foram finalmente levados a Cristo. Os fariseus e os doutores da lei o rejeitaram e, no devido tempo, rejeitaram a Cristo. O versículo 28 só pode ser entendido quando distinguimos entre essa grandeza moral, que depende do caráter de um homem, e a grandeza que brota da posição à qual Deus pôde ter Se agradado em nos chamar, o que varia em diferentes dispensações.

O Senhor agora dá, em uma pequena e surpreendente parábola, o caráter da geração incrédula que O rodeava. Eles eram como crianças irreverentes que não concordavam com nada; Eles não aceitariam nem os alegres nem os austeros. Assim, os judeus não se curvaram ao testemunho perscrutador de João, nem se regozijaram no ministério de graça de Jesus. Eles denunciaram um como sendo possuído por um demônio, e criticaram falsamente o Outro. Ainda havia aqueles que discerniram a sabedoria divina em ambos os testemunhos, e estes eram os verdadeiros filhos da sabedoria.

No incidente que encerra este capítulo, temos tudo isso mais notavelmente exemplificado. Simão, o fariseu, estava entre os críticos, a quem nada agradou, embora tenha convidado Jesus para uma refeição em sua casa. A pobre mulher da cidade era uma daquelas que justificava Jesus, e assim ela provou ser uma verdadeira filha da sabedoria, e também ela mesma foi justificada.

A tristeza e a contrição da mulher não significavam nada para o orgulhoso fariseu. Satisfeito consigo mesmo, era um crítico de Jesus, imputando a Ele os sentimentos que ele nutria por tal pessoa. Como resultado, ele teve certeza de que Jesus absolutamente não era um profeta. O versículo 16 nos mostrou que as pessoas comuns pelo menos pensavam que Ele era um profeta e grande profeta; Simão não chegara nem mesmo a isso. Eles tiveram um lampejo de luz; ele era totalmente cego, porque a religião falsa é a coisa mais cegante do mundo. No entanto, o Senhor rapidamente deu a Simão uma amostra dos grandes poderes proféticos que possuía.

Simão apenas “falava consigo”. Ele pensava que Jesus não tinha discernimento quanto à mulher. O Senhor mostrou-lhe imediatamente que conhecia sua hipocrisia e que lia seus secretos pensamentos, propondo-lhe a parábola dos dois devedores. Um devedor estava envolvido numa dívida dez vezes “maior” do que o outro; no entanto, como nenhum dos dois tinha recursos, ambos estavam igualmente falidos. E o credor os tratava da mesma forma; havia perdão para ambos. Essa parábola tinha a intenção de convencer que, embora seus pecados pudessem ser menores do que os da mulher, ele também estava totalmente sem condições de pagar e precisava de misericórdia perdoadora tanto quanto ela.

Ora, os devedores geralmente não amam seus credores, mas um senso da graça que perdoa provoca amor, e até mesmo Simão pôde julgar corretamente isso. Mas então, a aplicação era fácil. Simão, obstinadamente, se absteve de oferecer ao Senhor as cortesias mais comuns, de acordo com os costumes daqueles dias. Nem a água para os Seus pés, nem o beijo de boas-vindas, nem o óleo para a cabeça foram oferecidos. Ele havia recebido o Senhor de uma maneira que equivalia a oferecer-Lhe um insulto; mas a pobre mulher compensara tudo isso com abundância. Ele não tinha nenhum sentimento de culpa e nenhum amor por aqu’Ele que veio em graça perdoadora: ela tinha um verdadeiro e profundo arrependimento, juntamente com fé em Jesus, e um fervoroso amor por Ele.

Assim, vemos como a graça flui para os corrompidos, e novamente vemos como o arrependimento e fé andam de mãos dadas: eles são como a cara e coroa de uma única moeda. A graça que fluiu para esta mulher é a mais impressionante, na medida em que a alcançou de um modo puramente espiritual. Ela não veio com doenças corporais e aflições para ser curada; seus males eram espirituais; Seu fardo era o de seus pecados. A graça concedeu-lhe um abundante perdão, e Simão foi claramente informado de que tal era o caso.

Mas o Senhor não apenas falou de seu perdão ao fariseu, mas também tratou dela pessoalmente quanto a isso. Que bálsamo para seu espírito cansado deve ter sido aquelas palavras: “os teus pecados te são perdoados”. Os santos dos primeiros dias traziam o sacrifício apropriado para cada transgressão ou pecado, e então sabiam que o pecado em particular foi perdoado; eles mal conheciam uma completa absolvição tal como as palavras ditas por Jesus deram a ela. Os espectadores podem muito bem perguntar: “Quem é Este que até perdoa pecados?” Deus estava aqui na plenitude da graça no humilde Salvador.

Ele não apenas perdoou; Ele deu à mulher a certeza da salvação e também declarou que sua fé havia sido o meio da sua salvação. Não fora esta palavra, ela poderia ter imaginado que havia sido obtida por sua tristeza ou lágrimas. Mas não: fé é o que estabelece o contato absolutamente essencial com o Salvador o qual traz a salvação. Ela poderia, de fato, ir “em paz”, pois ela não só tinha perdão, que cobria todo o seu passado, mas a salvação, o que significava uma libertação do mal que a escravizara. É isso que a graça realiza.

LUCAS 8

Os versículos de abertura mostram a maneira completa e sistemática em que o Senhor Jesus evangelizou as cidades e aldeias. Ele anunciou o reino de Deus, que envolve a autoridade de Deus sendo estabelecida e a salvação do homem garantida por meio do julgamento. Ainda era muito cedo para o evangelho de 1 Coríntios 15:1-4 ser pregado, no entanto, agora que temos esse evangelho, ainda podemos pregar o reino de Deus em sua forma atual. Os doze estavam com Ele e estavam sendo treinados sob Seus olhos. Os outros evangelhos nos mostram isso, mas somente Lucas nos conta como certas mulheres, que experimentaram Seu poder libertador, O seguiram e ministraram a Ele com seus bens. Isto vem muito apropriadamente após a história da salvação da mulher pecadora da cidade.

Nos versículos 4-15, temos a parábola do semeador e sua interpretação. Isso nos revela o agente que a graça divina usa para realizar seus resultados benignos – a Palavra de Deus. O fruto do qual a parábola fala não é algo que é natural ao homem: é produzido somente pela Palavra, como aquela Palavra sendo recebida em corações preparados. Em nossa condição natural, nosso coração é marcado pela insensibilidade, como o caminho habitual, ou são superficiais sem convicção, ou preocupados com cuidados ou deleites. O coração preparado como o bom terreno é aquele que foi despertado e exercitado pelo Espírito Santo de Deus. Quando o coração é assim tornado “honesto”, a Palavra é retida e valorizada e, por fim, produz fruto.

O versículo 16 acrescenta o fato de que a luz, assim como o fruto, é produzida pela verdadeira recepção da Palavra. Toda verdadeira conversão significa o acender de uma nova vela neste mundo de trevas. Ora, assim como os cuidados, as riquezas e os deleites sufocam a palavra, assim também algum “vaso”, falando de trabalho e labuta diária, ou “cama”, falando de falta de esforço, esconde a vela que foi acesa. Toda vela iluminada pela recepção da Palavra deve ser visivelmente manifestada para o benefício dos outros. Vamos todos considerar profundamente isso para nós mesmos, pois o fato é que, se a luz estiver realmente lá, ela não pode ser totalmente escondida, como o versículo 17 indica. Se ano após ano nada se manifesta, apenas uma conclusão pode ser tirada – não há nada a ser manifestado.

Todas essas considerações nos levam a concluir como é imperativo ouvirmos a Palavra corretamente. Consequentemente, como a ouvimos é de toda importância. O que ouvimos é de igual importância, e isso é enfatizado em Marcos 4:24. Se não a ouvirmos corretamente, perdemos até o que parece que possuímos. Isto é afirmado no versículo 18, e é ilustrado acima, no caso dos ouvintes à beira do caminho, sobre solo pedregoso e os entre os espinhos.

Os versículos 19-21 acrescentam um fato ainda mais notável: se a palavra for corretamente recebida, ela traz o seu receptor para o relacionamento com o próprio Cristo. O Senhor mostra claramente aqui que o relacionamento que Ele iria reconhecer não se baseava na carne e no sangue, mas nas realidades espirituais – no ouvir e no praticar a Palavra. Esse pensamento é expandido nas epístolas: Paulo falando de “ouvir com fé” (Gl 3:2 – AIBB; Rm 10:8-17); Tiago falando das obras de fé, pois “a fé sem as obras é morta” (Tg 2:20). Se consultarmos Mateus e Marcos, provavelmente concluiremos que esse incidente, com relação à mãe e aos irmãos do Senhor, não ocorreu exatamente neste momento, mas aqui Lucas observa novamente uma ordem que é moral e não histórica. A Palavra recebida em fé produz frutos para Deus, luz para os homens e introduz o que a recebe no verdadeiro relacionamento com o próprio Cristo. Há uma sequência moral nessas coisas.

Nos versículos 22-25, chegamos à tempestade no lago que foi tão milagrosamente acalmada. Aqui, novamente, acreditamos que vemos uma sequência moral. Ele havia acabado de apontar que a relação que Ele reconhecia tinha uma base espiritual, e os discípulos eram aqueles que haviam entrado nela. Agora eles têm que descobrir que o relacionamento com Ele significa oposição e problemas no mundo. A água do lago era açoitada para dentro do barco em violentas ondas pelo poder do vento, assim como Satanás, que é “o príncipe da potestade do ar”, açoita homens e nações em furiosa oposição contra Cristo e todos os que estão ligados a Ele. Os discípulos entraram nessa tempestade em particular por causa de sua identificação com Ele.

Por um momento, foi uma experiência aterrorizante, mas que, posteriormente, deve ter lhes proporcionado muito encorajamento. Ela serviu como uma oportunidade para Ele mostrar Seu completo domínio sobre o vento e o mar, e sobre o poder que estava por trás deles. No momento, a fé dos discípulos era pequena. Eles estavam pensando em sua própria segurança, e ainda tinham pouco entendimento de Quem Ele era. Quando mais tarde o Espírito foi dado, e viram todas as coisas claramente, devem ter se maravilhado com sua própria insensatez, que eles tinham tão pouco apreendido a majestade de Sua ação. Se eles a tivessem apreendido, seus corações teriam se acalmado, igualmente com as águas do lago.

No lago o Senhor triunfou sobre o poder de Satanás trabalhando nos elementos da natureza. Chegando à terra dos gadarenos Ele foi confrontado pelo mesmo poder, mas de forma muito mais direta, exercido sobre o homem por meio de demônios. Oposição deve ser esperada, mas o poder de Sua Palavra é supremo. Este homem apresentava um caso extremo de possessão demoníaca. Havia “muito tempo” que estava dotado de força sobre-humana, de modo que nenhuma restrição ordinária o detinha; isso o levou a desertos e ao lugar da morte – os túmulos. Além disso, ele foi escravizado não por um demônio, mas por muitos. Por alguma razão ele se tornou como uma fortaleza, fortemente mantida por Satanás por toda uma legião de demônios; então, quando Jesus o encontrou, houve uma prova de força, de fato.

O grito do homem endemoninhado, no qual ele reconheceu Jesus como “Filho do Deus Altíssimo”, está surpreendentemente em contraste com a exclamação dos discípulos: “Quem é Este!” Os demônios não tinham dúvidas quanto a Quem Ele era, e sabiam que haviam encontrado seu supremo Mestre, que poderia tê-los banido para “o abismo”, com uma única palavra. Em vez disso, Ele permitiu que eles entrassem nos porcos. Isso significava libertação para o homem, mas desastre para os porcos. Aliás, também, deve ter significado degradação para os demônios mudarem sua habitação de um homem para um rebanho de porcos; e essa nova habitação foi perdida em poucos minutos enquanto os porcos se afogavam no lago. Satanás gostaria de ter afogado o grande Mestre e Seus discípulos no lago por volta de uma hora antes; mas na verdade, foram os porcos, dos quais ele havia se apossado por seus agentes, que se afogaram.

Assim como o vento e a água obedeceram à Sua Palavra, os demônios tiveram de obedecer. O homem foi completamente libertado e o seu caráter mudou totalmente. Nas palavras “vestido, e em seu juízo, assentado aos pés de Jesus”, podemos ver uma bela imagem do que a graça realiza para os homens, que foram mantidos cativos pelo poder de Satanás. Também podemos ver neste homem libertado outra característica que é boa para nós. Também não estamos autorizados a estar com o nosso Libertador: temos que voltar aos nossos amigos e mostrar o que foi feito em nós. Quanto mais completa for a mudança, como no caso deste homem, mais eficaz é esse tal testemunho.

O testemunho foi perdido pelo povo gadareno, que havia perdido seus porcos. Eles apreciavam os porcos, mas não a graça, então recusaram o Libertador. Jesus aceitou a recusa deles e voltou para o outro lado do lago para continuar a manifestação de Sua graça lá.

Os discípulos haviam testemunhado o triunfo de seu Senhor sobre a oposição tanto no lago quanto na terra dos gadarenos, e agora veriam mais triunfos do lado do mar de Cafarnaum. O submundo dos demônios reconheceu Seu poder, assim como os elementos da natureza o reconheceram: agora a doença e a morte são permitidas estar em Sua presença. É digno de nota que aquele que se aproximou do Senhor primeiro não foi o primeiro a receber a bênção.

Jairo era um que representava os filhos de Israel; a morte estava invadindo sua casa e ele apelou ao Senhor, encontrando uma resposta imediata. No caminho, Jesus foi interceptado por uma mulher não identificada que sofria de uma doença incurável. Seu toque de fé lhe trouxe cura instantânea. Embora chegando mais tarde e não agindo de maneira normal em seus procedimentos, ela foi a primeira a experimentar a graça libertadora do Senhor. Podemos traçar aqui uma analogia com os atuais caminhos de Deus. Enquanto ainda está a caminho de ressuscitar e abençoar a “filha de Israel”, os outros, e esses principalmente gentios, estão dando o toque de fé e obtendo a bênção.

Era apenas um toque, e era apenas na orla de Suas vestes, mas a bênção se tornou dela em sua plenitude – ilustrando assim o fato de que a medida de nossa fé não determina a medida da bênção que a graça concede – pois ela foi perfeitamente curada. Também vemos que um toque por si mesmo não trazia nada, pois a palavra de protesto de Pedro mostrou que muitos tinham, por várias razões, entrado em contato com Ele, apertando-O e oprimindo-O. Apenas o toque da fé contava. Em outras palavras, era a coisa totalmente essencial, e nisso podemos nos exercitar hoje, embora o toque da fé só possa ser dado espiritualmente e não fisicamente.

Por Suas perguntas Jesus trouxe a mulher ao ponto da confissão. De acordo com o espírito do evangelho, a fé de seu coração tinha que ser seguida pela confissão de seus lábios, e isso lhe trouxe um acesso à bênção, pois ela recebeu as palavras: “Tua fé te salvou. Vai em paz”. Sem essa palavra, sua mente poderia ter sido ofuscada pelo pavor da recorrência do seu fluxo. Sua fé, expressa no toque, trouxe a cura; mas sua confissão trouxe a palavra de segurança que tranquilizou sua mente. Quantos podem existir hoje que não têm plena certeza da salvação, porque lhes faltou coragem para confessar plenamente o Seu nome.

Naquele momento veio a notícia da morte da filha de Jairo, e isso forneceu uma nova oportunidade para que a importância da fé fosse enfatizada. Para os homens a morte é o fim de toda esperança; no entanto, a palavra de Jesus era: “Não temas; crê somente”. Para seus pais e amigos, era a morte, mas para Ele era apenas o dormir; contudo, a própria incredulidade dos que a pranteavam nos permite ver que ela realmente estava morta. Os incrédulos zombadores foram todos expulsos e apenas alguns poucos que criam viram a Sua obra de poder. Com Sua palavra, o espírito dela voltou e foi restaurada à vida.

A exortação de “que a ninguém dissessem o que havia sucedido” era totalmente contrária a todas as ideias humanas. Os homens amam a notoriedade, mas não o Senhor. Ele trabalhou para tornar Deus conhecido, e somente a fé entendia Suas obras, e foi confirmada por meio disso.

LUCAS 9

Os discípulos agora tiveram plena oportunidade de aprender o espírito, os métodos e o poder de seu Mestre; então foram enviados, e os versículos 1-6 nos dizem como eles foram comissionados. Ele “convocou-osdeu-lhesenviou-osdisse-lhes. A ordem dos quatro verbos é muito instrutiva. A escolha é Sua e não nossa. Mas então Ele não apenas chama, mas também dá a autoridade e o poder adequados para o serviço ao qual Ele chama. Ele não os envia até que esse poder seja dado. E então, ao enviar Ele dá as instruções específicas que são para controlá-los e guiá-los em seu serviço. As instruções que Ele lhes deu eram exatamente adequadas aos homens que foram enviados para apoiar o testemunho prestado pelo Messias, o Filho do Homem, presente pessoalmente na Terra.

O testemunho a que somos chamados a prestar hoje não é esse, mas sim o de Cristo que está ressuscitado e foi glorificado nas alturas; qualquer serviço que ainda possamos prestar está sujeito exatamente às mesmas condições. Ele deve convocar e enviar. Se Ele chamar qualquer um de nós, Ele dará o poder e a graça necessários para o trabalho; e quando enviados também devemos ter o cuidado de observar as instruções que Ele nos deixou.

Os discípulos saíram com o poder do seu Senhor por trás deles, e o testemunho sendo assim multiplicado, a atenção de até mesmo um monarca ímpio como Herodes foi atraída para o Senhor. A grande questão era: “Quem é Esse?” As pessoas perguntavam e se entregavam à especulações. Herodes indagou com uma mente inquieta, pois ele já havia decapitado João. Seu desejo de ver Jesus foi cumprido, mas dificilmente da maneira que ele havia previsto – veja Lucas 23:8-11.

Todos os detalhes da missão dos discípulos são passados em silêncio. No versículo 10 está registrado que eles retornaram e contaram ao seu Mestre tudo o que haviam feito, e Ele, tomando-os à parte, os levou a um lugar em particular. Assim será para todos nós quando chegarmos a Ele em Sua vinda. Isso significará ser manifestado diante de Seu tribunal; e será na privacidade e no descanso de Sua presença.

Nesta ocasião, havia muito pouco descanso para Ele. No deserto, porém, as pessoas se aglomeravam em busca d’Ele e ninguém era deixado de fora. Ele os recebeu, Ele lhes falou do reino de Deus, Ele os curou e, quando a noite se aproximava e eles estavam com fome, Ele os alimentou.

Os discípulos eram como nós mesmos: tinham muito a aprender. Apesar de terem sido enviados como Seus mensageiros, não tinham um senso adequado de Seu poder e suficiência, e, portanto, julgavam a situação difícil à luz de seus próprios poderes e recursos, em vez de julgar tudo por Ele. Quando lhes disse: “Dai-lhes vós de comer”, pensaram em seus pães e peixes – lamentavelmente poucos e pequenos. Eles poderiam ter dito: “Senhor, é para Ti que olhamos: de bom grado daremos a eles tudo o que Tu deres para nós”.

Quão facilmente podemos ver o que eles poderiam ter dito e, no entanto, falhar da mesma maneira em que eles falharam! Temos de aprender que, se Ele comanda, Ele capacita. Ele capacitou nesta ocasião, e os discípulos foram usados em dispensar Sua generosidade. Assim, eles foram instruídos quanto à plenitude do suprimento que estava n’Ele.

Antes de multiplicar os pães e os peixes, Jesus olhou para o céu, conectando assim publicamente Sua ação com Deus. No versículo 18, novamente o encontramos em oração particular, expressando assim o lugar dependente que Ele havia tomado em Humanidade. A graça era a graça de Deus, embora fluindo para os homens por Ele.

Tendo dado a Seus discípulos este vislumbre de Sua plenitude, Ele os advertiu de Sua rejeição que se aproximava e de seus resultados no que lhes dizia respeito. As pessoas ainda estavam completamente em trevas quanto a Quem Ele era, mas Pedro – e sem dúvida os outros discípulos também – sabia que Ele era o Cristo de Deus, ou o Messias. Essa confissão de Pedro encontrou o mandamento do Senhor de não dizer isso a ninguém. Esse comando deve ter sido uma grande surpresa para eles, pois até esse ponto as boas-novas que haviam encontrado sobre o Messias deve ter sido o item principal de seu testemunho. Agora, porém, o momento havia chegado para eles saberem que o que estava diante d’Ele não era a glória terrena do Messias, mas a morte e a ressurreição. Ao trazer a notícia disso, o Senhor falou de Si mesmo como o Filho do Homem – um título com implicações mais abrangentes. O Messias deve governar Israel e as nações, de acordo com Salmo 2: o Filho do Homem deve ter todas as coisas sob os Seus pés, de acordo com o Salmo 8.

Ao falar de Si mesmo dessa maneira, o Senhor estava começando a conduzir seus pensamentos para os novos desenvolvimentos que estavam prestes a acontecer, embora Ele ainda não estivesse revelando quais eram os acontecimentos. Ainda assim, Ele disse-lhes muito claramente que, se a morte estivesse diante d’Ele, também estaria diante deles. Este certamente é o significado das palavras “negue-se a si mesmo e tome cada dia a sua cruz”. Negar a si mesmo é aceitar a morte interiormente – a morte está nos movimentos da própria vontade. Tomar a cruz diariamente é aceitar a morte exteriormente, pois se o mundo visse um homem carregando sua cruz, saberia que ele estava sob sua sentença de morte.

Os versículos 24-26 aumentam esse pensamento. Existe vida de acordo com o conceito deste mundo, composta de todas as coisas que apelam para os gostos naturais do homem. Se procurarmos salvar essa vida, só a perdemos. O caminho para o discípulo é perder essa vida por amor a Cristo, e então salvamos a vida no sentido apropriado, aquilo que é realmente vida. O homem do mundo agarra a vida deste mundo e termina se perdendo; e isso é a perda de um tipo irreparável e eterno. O discípulo que perde a vida neste mundo não é perdedor no final. O versículo 26 fala somente daquele que é envergonhado. O contrário, no entanto, é verdade: aquele que não é envergonhado será reconhecido pelo Filho do Homem no dia da Sua glória.

O Senhor sabia que estas Suas palavras cairiam como um golpe na mente dos discípulos e, portanto, Ele imediatamente lhes ministrou grande encorajamento, não tanto por palavras, mas dando-lhes uma visão de Sua glória. Isso foi concedido não a todos, mas aos três escolhidos, e eles poderiam comunicá-lo ao resto. Na transfiguração eles viram o reino de Deus, pois naquele breve momento eles foram “testemunhas oculares da Sua majestade” (2 Pe 1:16). A expressão que o Senhor usou – “provar a morte” – é digna de nota. Ela cobriria não apenas a morte real, mas também a experiência espiritual que Ele havia indicado no versículo 23. A mesma coisa vale para nós em princípio. É somente quando vemos o reino pela fé que estamos preparados para provar a morte dessa maneira experimental.

Mais uma vez, nós O encontramos orando, e é somente Lucas quem registra que a transfiguração ocorreu quando Ele orou. É um fato marcante que foi o Homem dependente e de oração que brilhou em glória como o Rei. Muito antes disso, Davi dissera: “Aqu’Ele que domina sobre os homens com justiça, que domina no temor de Deus” (2 Sm 23:3). Aqui vemos aqu’Ele que assumirá o reino e o manterá para Deus, governando como o Homem dependente. Todos os elementos do reino vindouro estavam lá em forma de amostra. O próprio Rei foi manifestado como o objeto central. Moisés e Elias apareceram do mundo invisível e celestial, representando os santos celestiais que aparecerão com o Rei quando Ele Se manifestar: Moisés representando os santos que ressuscitaram dos mortos e Elias os arrebatados ao céu sem morrer. Então Pedro, Tiago e João representaram os santos que estarão na Terra, abençoados à luz da Sua glória.

Enquanto os discípulos estavam carregados de sono, os santos celestiais conversavam com o seu Senhor a respeito de Sua morte que se aproximava, que é fornecer a base sobre a qual a glória deve repousar. Lucas fala disso como Sua “partida” (ARA) ou “êxodo”, pois significava que Ele estava saindo da ordem terrena na qual Ele havia entrado e Sua entrada no mundo deles (Moisés e Elias) pela ressurreição dentre os mortos. Quando os discípulos despertaram, o único pensamento de Pedro foi perpetuar a ordem terrena e manter seu Mestre nela. Ele teria detido Moisés e Elias também, se lhe fosse permitido fazer seus três tabernáculos. Até agora ele não tinha abraçado a realidade da ordem celestial das coisas exposta diante de seus olhos, e ainda não tinha a devida apreensão da suprema glória de Jesus.

Por isso, naquele momento veio a nuvem – evidentemente a conhecida nuvem da presença divina – que os ofuscou com seu brilho, e os silenciou com temor. Então a voz do Pai proclamou a suprema glória de Jesus e O destacou como o único a Quem todos devem ouvir. Nenhum Moisés, nenhum Elias é por um momento para ser juntado a Ele. Jesus é de fato para ser “achado só”. Embora naquele momento Pedro não entendesse o significado completo de tudo aquilo e, portanto, “por aqueles dias não contaram a ninguém”; ele o fez depois, como mostra sua alusão a isso em sua segunda epístola. Isso confirmou para ele, e para nós, a palavra profética, dando a certeza de que, antecipando “o reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”, não estamos seguindo “fábulas engenhosamente inventadas” (ARA), mas descansando em verdade sólida.

Quão grande foi o contraste quando no dia seguinte desceram do monte! Acima, tudo tinha sido a glória, o poder e a glória de Cristo, com a sua ordem e paz que as acompanhavam. Abaixo, tudo estava sob o poder de Satanás, com desordem e distração. Os nove discípulos deixados no pé do monte foram testados pelo menino possuído por um demônio particularmente violento e falharam. O pai perturbado apelou ao Senhor, embora evidentemente com pouca expectativa de poder fazer alguma coisa. Jesus instantaneamente agiu pela libertação do menino, e “E todos ficaram maravilhados ante a majestade de Deus”. O poder majestoso que Ele mostrou em meio aos distúrbios no pé do monte era igual à glória que havia sido manifestada em sua excelência no dia anterior.

Então, mais uma vez, justamente quando Ele manifestou Seu poder, Ele falou de Sua morte. Disse Ele: “Ponde vós estas palavras em vossos ouvidos”. Que palavras? Podemos perguntar, pois Lucas não registrou nenhuma palavra em particular relacionada à expulsão do espírito imundo. As palavras referem-se talvez às palavras ditas sobre o monte santo, onde Sua morte foi o tema. Mas aquele era o problema com os discípulos naquele momento: eles não podiam tirar de suas mentes as expectativas de um reino imediato na Terra, de modo a perceber que Ele estava prestes a morrer. A triste consequência disso é vista no versículo 46.

Por natureza somos criaturas com importância própria, amando proeminência e grandeza acima de tudo; e a carne em um discípulo não é diferente daquela em um incrédulo. Jesus rebateu o pensamento do coração deles pela lição objetiva do menino, e por palavras que indicavam que a verdadeira grandeza é encontrada onde a pequenez de um menino é manifestada, e onde aquele “menor” discípulo é verdadeiramente um representante de seu Mestre. Receber um menino insignificante é receber o Mestre divino, se o menino vier “em Meu Nome”. O significado está no nome, não no menino.

Este episódio, evidentemente, agitou a consciência de João, de modo que ele mencionou um caso que havia ocorrido algum tempo antes. Eles haviam proibido algum zeloso trabalhador porque “não segue conosco” (ARA). Atribuíam demasiada importância ao “conosco” que, afinal de contas, é apenas um grupo de indivíduos, cada um dos quais não tem importância em si mesmo. Toda a importância, como o Senhor acaba de mostrar, está no Nome. Ora, aquele que havia expulsado os demônios – a coisa exata que eles não conseguiram fazer – fazia isso “em Teu Nome”. Então ele tinha o poder do Nome e eles tinham a importância imaginada do “conosco”. O Senhor tratou gentilmente com João, porém com firmeza. O homem não deveria ser proibido. Ele era pelo Senhor e não contra Ele.

Lucas agora agrupa quatro outros incidentes no final do capítulo. Parece que o Senhor, tendo mostrado aos discípulos o poder de Sua graça e do reino de Deus, está agora os instruindo quanto ao espírito que convém a eles como aqueles trazidos sob ambos; e Ele também os adverte sobre coisas que seriam obstáculos para isso.

O primeiro obstáculo é obviamente o egoísmo. Isso pode tomar uma forma intensamente pessoal, como no versículo 46. Ou pode ser coletivo, como no versículo 49. No entanto, mais uma vez pode estar sob o disfarce de zelo pela reputação do Mestre, e esta é a forma mais sutil de todas. Os samaritanos estavam completamente errados em sua atitude. Mas Ele estava indo para Jerusalém para morrer, enquanto Tiago e João desejavam reivindicar Sua importância – e, consequentemente, a deles mesmos – ao trazer morte sobre outros. Elias de fato agiu assim quando confrontado pela violência de um rei apóstata, mas o Filho do Homem é de outro espírito. Esse foi o problema com os discípulos; eles ainda não entraram no espírito da graça – a graça que caracterizou o seu Mestre.

Os três incidentes que brevemente fecham o capítulo nos mostram que, se fôssemos verdadeiramente discípulos e adequados ao reino, deveríamos ter cuidado com a mera energia natural. Uma energia mais do que natural é necessária se quisermos seguir um Cristo rejeitado. Também não deve haver indiferença e indecisão. As reivindicações do reino devem ter precedência acima de tudo o mais.

LUCAS 10

Tendo os discípulos sido instruídos desta maneira, o Senhor ampliou ainda mais a esfera do testemunho que deveria ser prestado em conexão com Sua presença na Terra, ao nomear e enviar setenta outros discípulos, dois e dois diante de Sua face. Esta declaração sobre a grandeza da ceara e dos poucos trabalhadores parece, segundo Mateus 9:37-38, ter sido proferida em outra ocasião. Lá, a oração é respondida pelo envio dos doze: aqui, pelo envio dos setenta.

As instruções que o Senhor deu aos setenta são semelhantes àquelas dadas aos doze. Deveria haver a mesma simplicidade e ausência de egoísmo, e a mesma dependência n’Ele para o suprimento de suas necessidades. Eles tinham, no entanto, advertências adicionais que indicavam crescente oposição pelo povo. Eles foram informados de que deveriam ser como cordeiros entre lobos, uma comparação muito impressionante. No entanto, apesar da rejeição, deveriam deixar bem claro que o reino estava próximo do povo.

Estes setenta não tinham o lugar distinto dos doze, mesmo assim representavam plenamente o Senhor, como o versículo 16 torna manifesto. Este versículo estabelece o mesmo princípio que Lucas 9:48, só que aqui o Senhor leva o assunto de volta a “aqu’Ele que Me enviou”. Os setenta deviam ser pessoas humildes, talvez dependessem da atitude dos homens em relação à sua mensagem. Cafarnaum e outras cidades daquele dia, tendo este testemunho, teriam maiores responsabilidades; e a rejeição mereceria um julgamento mais severo do que as cidades que nunca tiveram tal testemunho prestado a elas.

Nenhum detalhe é dado sobre o que aconteceu durante o serviço dos setenta, e um versículo (cap. 9:6) foi suficiente para resumir os trabalhos anteriores dos doze. Observamos isso porque Lucas foi escolhido por Deus para registrar os feitos dos discípulos nos Atos; mas isso foi depois que o Espírito Santo foi dado. Antes que o Espírito fosse dado, o trabalho deles tinha muito menos significado, e qualquer luz que houvesse no trabalho era eclipsada pelo brilho da luz perfeita em seu Mestre. No versículo 17, vemos o seu retorno no final de sua missão.

Eles voltaram com gozo, regozijando-se principalmente com o que era mais espetacular – a sujeição de até mesmo demônios por meio do Nome de seu Mestre. Ora isso era realmente uma grande coisa, e uma garantia da derradeira expulsão de Satanás dos céus. A alusão no versículo 18 não é, cremos, a queda original de Satanás, mas a sua expulsão final, como previsto em Apocalipse 12:7-9. O tempo verbal no passado é frequentemente usado em declarações proféticas para descrever eventos futuros. Ele é usado nesses versículos de Apocalipse, como também em Isaías 53:3-9. Assim, o Senhor confirmou a autoridade que naquele momento Ele lhes dera, exercida sobre todo o poder do inimigo, mas ao mesmo tempo indicou algo que ia além de todo poder exercido sobre a Terra.

Ele lhes disse: “vossos nomes estão escritos no céu” (TB). É mais do que provável que naquele momento eles não tenham apreciado a maravilha dessa afirmação. Mais tarde, eles devem ter apreciado isso, e devemos também fazê-lo, já que se aplica também a nós. A figura é simples. Nossos nomes estão inscritos na cidade ou distrito, onde estamos domiciliados. O Senhor disse a esses homens que, na verdade, uma cidadania celestial seria deles, e essa é uma causa de maior regozijo do que qualquer poder conferido na Terra. O evangelho de Lucas nos dá especialmente a transição da lei para a graça e da Terra para o céu, e este versículo é um marco distinto nessa direção. Foi a primeira indicação da verdade que vem completamente à luz em Filipenses 3:20: “nossa cidade [comunidade – JND] está nos céus”.

Naquela mesma hora – a hora do regozijo dos setenta – Jesus mesmo Se regozijou. Ele viu não apenas a queda vindoura de Satanás, com a consequente derrubada de todos os seus desígnios malignos, mas também a ação do Pai para o estabelecimento de todos os Seus desígnios. Na base desses brilhantes desígnios está o fato de que Ele mesmo deve ser perfeitamente revelado e conhecido, e que os “pequeninos”, e não os sábios e prudentes deste mundo, receberão a revelação.

O Filho havia entrado na Humanidade para assim revelar o Pai aos homens. E não apenas isso, Ele é o próprio Herdeiro de todas as coisas. O Homem dependente na Terra sabia que todas as coisas haviam sido entregues a Ele pelo Pai. Além disso, o próprio fato de que Ele Se tornou Homem acrescenta um elemento em Sua causa que desafia todo o entendimento humano. Ele Se tornou Homem para que o Pai fosse conhecido: como Homem, Ele é o Herdeiro de todas as coisas; contudo, que nenhum homem pretenda sondar o mistério que deve cercar uma humilhação tão infinita. Se nos estimamos sábios e prudentes, podemos tentar sondar esse mistério para nossa própria ruína. Se, de fato, somos pequeninos, aceitaremos o mistério com mentes humildes e santas e nos regozijaremos em tudo o que Ele nos revelou do Pai e dos Seus desígnios.

Tendo assim Se regozijado em Sua própria missão, e na graça que tomou os insignificantes “pequeninos”, o Senhor voltou-Se para os discípulos para lhes mostrar a grandeza do presente privilégio que tinham. Eles estavam vendo coisas que tinham sido o desejo dos piedosos de épocas passadas. Eles viram e ouviram coisas que tinham a ver com a manifestação do Pai na Terra, e a realização de uma obra que resultaria no chamado de um povo para o céu. Tudo isso era para o momento privado com os discípulos.

Publicamente, não havia nada além de conflito. A questão do doutor da lei, registrada no versículo 25, aparentemente tão sincera, foi realmente feita com malignas segundas intenções. Ele perguntou o que deveria fazer, e o Senhor, que conhecia o motivo do homem, tratou com ele na base do que ele fazia. Era a lei que exigia do homem o que fazer: daí a pergunta do Senhor. Ao dizer que a exigência suprema da lei era o amor; primeiramente para com Deus, e então para com o próximo, o homem respondeu corretamente. Jesus tinha simplesmente que dizer: “Faça isso e viverás” – não “terás a vida eterna”, mas apenas “viverás”. Não há vida para a Terra, a não ser que a lei seja guardada.

O doutor da lei saiu para apanhar o Senhor e agora se viu apanhado por sua própria resposta. Desejoso de justificar-se, ele perguntou quem era seu próximo; como se ele pudesse deduzir que, se ele tivesse próximos suficientemente atraentes, não encontraria dificuldade em amá-los. Essa indagação foi recebida pela parábola do samaritano, e o doutor da lei foi deixado para julgar por si mesmo quem era o seu próximo. Novamente o homem respondeu corretamente, apesar da antipatia sentida pelo judeu contra o samaritano. Assim julgando, ele respondeu à sua própria pergunta, e foi deixado sob a obrigação de agir como o samaritano por um lado, e de amar o samaritano como a ele mesmo por outro lado.

O ensino desta parábola, no entanto, vai além da mera resposta da pergunta do homem. Na ação do samaritano podemos ver uma imagem da graça que marcou a vinda do próprio Senhor. O sacerdote e o levita, representantes do sistema da lei, passaram do outro lado. A lei não foi instituída para ajudar os pecadores, muito menos para salvá-los, e ter o homem meio morto em suas mãos, tanto o sacerdote quanto o levita seriam contaminados e por um tempo desqualificados do exercício de seu ofício. Como o samaritano, Jesus era o Rejeitado, e mesmo assim Ele era o Ministro da graça e da salvação. Se no versículo 20 vemos indicada a transição da Terra para o céu, nesta parábola vemos indicada a transição da lei para a graça.

À luz disso, também está claro que o Senhor Jesus era o melhor e mais verdadeiro Próximo que o homem já teve – o perfeito Próximo, de fato. Ele também era Deus, perfeitamente revelado e conhecido. Deus e o Próximo estavam unidos n’Ele e, ao odiá-Lo e rejeitá-Lo, os homens romperam de imediato e de forma irremediável ambos os valores da lei.

Mas nem todos O rejeitaram: alguns O receberam. E assim acontece no final deste capítulo e na primeira parte de Lucas 11, onde há indicações muito felizes das maneiras pelas quais tais pessoas são colocadas em contato com Ele. Existe a virtude da Sua Palavra,oração, e o dom vindouro do Espírito Santo.

Maria havia descoberto o poder de Sua Palavra. Isso abriu para Maria uma porta de entrada para os pensamentos de Deus, então sentou-se a Seus pés e O ouviu. Parece que, ao servir, Marta estava apenas cumprindo o dever que, com razão, pertencia a ela. Seu problema era visar muito o servir: ela queria fazer a coisa em um estilo muito especial, e isso a “atrapalhou” ou “distraiu”. Sua distração era tal que ela falou de uma maneira que era uma difamação não apenas para sua irmã, mas para o Senhor. Maria, ela pensou, estava negligenciando seu dever, e o Senhor era indiferente à sua negligência. Marta representa distração e Maria, comunhão.

A distração de Marta foi o resultado de ter muito serviço às mãos, uma coisa que em si é muito boa. Ela se tornou ansiosa e perturbada com muitas coisas, e perdeu a única coisa que é necessária. Maria havia descoberto que tudo o que ela podia fazer pelo Senhor não era nada comparável com o que Ele tinha para transmitir a ela. Receber a Sua palavra é a única coisa necessária, pois dela fluirá todo o serviço que seja aceitável para Ele. É a parte boa, que não deve ser tirada.

Cremos que grande parte da fraqueza que caracteriza os Cristãos atuais pode ser explicada por essa única palavra – distração. Tantas coisas de todos os lados, e muitas vezes inofensivas em si mesmas, nos são apresentadas de forma que nos distraímos da única coisa importante. Podemos nem sempre estar ansiosos e perturbados com elas; podemos estar apenas fascinados e ocupados com elas. Mas o resultado é o mesmo: a única coisa importante é perdida. Então somos verdadeiramente perdedores.

LUCAS 11

Novamente encontramos o Senhor em oração, e isso despertou em Seus discípulos o desejo de ser ensinados a orar. Como ainda não possuíam o Espírito como temos hoje e, portanto, orar “no Espírito Santo” (Jd 20), e a ajuda e intercessão do Espírito, da qual Romanos 8:26-27, fala, não poderiam ser conhecidos por eles como podemos conhecer. Nesse tempo, o Senhor era seu “Consolador” e Guia exterior: nós temos “outro Consolador”, que é interior. Em resposta, o Senhor deu-lhes a oração padrão e acrescentou uma ilustração para reforçar a necessidade da importunação [desinibição – JND]. Já que um homem vai se levantar à meia-noite diante da sincera solicitação de um amigo, poderemos bem vir com confiança a Deus.

O Senhor instruiu Seus discípulos a se dirigirem a Deus como Pai e as garantias que Ele deu no versículo 10 se encaixam nisso, assim como as declarações dos versículos 11-13. O Pai no céu não deve ser concebido como menos interessado e menos considerado do que um pai terreno. Ele não dará o que é inútil ou prejudicial em resposta a pedidos de comida necessária. Nem podemos acrescentar que Ele dará o que é inútil ou prejudicial se o desejarmos e pedirmos. Muitas orações não respondidas são, sem dúvida, por esse motivo.

O homem em sua condição má sabe dar boas dádivas a seus filhos; o Pai celestial dará àqueles que Lhe pedirem o maior de todos os dons – o Espírito Santo. Aqui vemos o Senhor em Seu ensinamento conduzindo os desenvolvimentos que estavam prestes a acontecer. O Espírito Santo não foi dado até que Jesus foi glorificado, como sabemos em João 7:39; mas quando foi dado, Ele encontrou um grupo de homens e mulheres que perseveravam em oração e súplicas, como Atos 1:14 registra. Vivemos no dia em que o Espírito foi dado; e assim podemos nos regozijar no fruto da Sua presença, bem como no poder da Palavra de Deus e da oração.

No parágrafo seguinte (v. 14-28) temos a rejeição definitiva da graça manifestada, e do próprio Senhor que a exibiu; o que leva o Senhor a desvendar o terrível resultado dessa rejeição e também a enfatizar ainda mais a importância da obediência à Palavra.

Tendo sido expulso o demônio mudo, a mudança no homem que havia sido sua vítima foi impressionante e inegável. Entretanto, muitos do povo adotaram o plano de difamar o que não podiam negar. O comentário sobre belzebu não é atribuído aos fariseus, como é em Mateus. Sem dúvida, eles instigaram, mas as pessoas comuns os apoiaram nisso, como Lucas registra aqui. Outros, fechando os olhos para os muitos sinais já dados, tiveram o descaramento de exigir um sinal do céu. Em Sua resposta, Jesus mostrou primeiramente que sua acusação era totalmente irracional: envolvia o absurdo de Satanás agindo contra si mesmo. Em segundo lugar, Ele mostrou que, se fosse verdade, a acusação deles ricochetearia sobre a cabeça de seus filhos, se não em suas próprias cabeças.

Mas em terceiro lugar, e o mais importante de tudo, Ele deu a verdadeira explicação do que estava fazendo. Ele chegou à cena mais forte do que Satanás. Antes de Sua vinda, Satanás havia mantido seus cativos em inabalável segurança. Agora o mais Forte estava liberando esses cativos. Sua vinda apresentou um teste para todos: eles estavam com Ele ou contra Ele. Não estar com Ele era o mesmo que estar contra Ele, pois não poderia haver neutralidade. Os homens podem parecer estar ajuntando, mas se não for com Ele, isso seria apenas uma dispersão. Este é um ponto que fazemos bem em notar. Há uma grande necessidade hoje de reunir os homens em todos os tipos de associações e grupos; mas se não for com Cristo, de forma central e dominante, é um processo de dispersão e, finalmente, se manifestará como tal.

Os versículos 24-26 são evidentemente proféticos. Naquele momento, o espírito imundo de sua antiga idolatria havia saído de Israel, mas, embora estivessem “varridos e adornados” de maneira exterior, estavam empenhados em recusar o Enviado de Deus para ocupar a casa. Como resultado, o velho espírito impuro voltaria com os outros piores do que ele e, assim, seu estado seria pior do que o inicial. Essa palavra de Jesus será cumprida quando o Israel incrédulo receber o anticristo nos últimos dias.

No entanto, nem todos estavam recusando-O. Uma mulher da multidão percebeu algo de Sua excelência e pronunciou Sua mãe ser abençoada. Isso Ele não negou, pois a primeira palavra de Sua resposta foi “antes”, indicando assim algo ainda mais abençoado. A mais verdadeira bênção para nós está no recebimento e guarda da Palavra de Deus. O elo espiritual formado pela Palavra é mais íntimo e duradouro do que qualquer elo formado na carne. O Senhor estava conduzindo os pensamentos de Seus discípulos a essas verdades espirituais, e o ouvir a Palavra era essa parte boa, como acabamos de ver no caso de Maria.

O Senhor passou a falar da insensibilidade que caracterizava o povo de Seus dias. Eles estavam pedindo um sinal como se nenhum sinal tivesse sido dado a eles. Apenas um sinal permaneceu para eles, o que Ele fala como “o sinal do profeta Jonas”. Jonas pregou para os ninivitas, mas ele também era um sinal para eles, visto que apareceu entre eles como alguém que surgiu do que parecia ser morte certa. O Filho do Homem estava prestes a entrar na morte e ressuscitar, e esse foi o maior de todos os sinais: além disso, Ele estava mostrando entre eles sabedoria muito maior do que a de Salomão e Sua pregação foi muito além da de Jonas. Por que as pessoas não foram comovidas?

Não foi porque não havia luz brilhando. Os homens não acendem uma candeia para escondê-la, como diz o versículo 33. O Senhor havia chegado ao mundo como a grande Luz e Seus raios estavam brilhando sobre os homens. O que estava errado não era com a luz, mas com os olhos dos homens. Isso é enfatizado nos versículos 34-36. O Sol é a luz de nossos corpos objetivamente: mas nossos olhos são luz para nós subjetivamente. Se o Sol se apagasse, haveria escuridão universal, mas se meu olho se apagasse, haveria escuridão absoluta para mim apenas. Se minha faculdade de ver espiritualmente é má, minha mente está cheia de trevas: se ela é simples, tudo é luz. Em outras palavras, o estado daquele sobre quem a luz brilha é de grande importância. O estado do povo estava errado, daí sua insensibilidade à luz que brilhava em Cristo.

Mas, se as pessoas não recebessem a luz para a bênção delas, o Senhor pelo menos estaria apontando o holofote da verdade sobre o estado delas. Ele começou com os fariseus, e o resto do capítulo nos dá a Sua acusação sobre eles. O fariseu que O convidou era fiel ao tipo que representava; um crítico e obcecado com detalhes cerimoniais. A hora chegou para o crítico ser criticado e exposto. Nada poderia ser mais incisivo do que as palavras do Senhor. Ao lê-las, podemos ter uma ideia de como os homens serão examinados no dia do julgamento.

A hipocrisia deles é o ponto dos versículos 39-41. Limpeza ostensiva onde os olhos dos homens alcançam, e imundície onde eles não enxergam. E, além disso, o ódio egoísta estava sob a aparente piedade deles. Estavam cheios de “rapina” ou “saque”. A palavra “dai”, no versículo 41, está em contraste com isso. Se eles se tornassem doadores, ao invés de saqueadores das outras pessoas, todas as coisas seriam limpas para eles, tanto por dentro quanto por fora. Uma mudança tão radical como essa implicaria uma verdadeira conversão.

O versículo 42 indica o seu julgamento pervertido. Eles se especializaram em coisas que não eram nem importantes nem caras e ignoravam as coisas da maior importância. O versículo 43 mostra que o amor à notoriedade e a bajulação dos homens os consumiam. Por isso, tornaram-se insuspeitados centros de contaminação para os outros, como o versículo 44 indica. Eles prejudicavam aos outros, assim como a si mesmos. Uma acusação terrível, de fato, mas que, infelizmente, se aplica em medidas variadas em todos os momentos àqueles que são promotores de uma religião meramente exterior e cerimonial.

Nesse ponto, um dos doutores da lei protestou que essas palavras também eram um insulto a ele próprio. Isso apenas levou a que a acusação fosse pressionada mais de perto contra ele mesmo. Esses mestres da lei ocupavam-se em colocar cargas sobre os outros. Eles legislavam para os outros e friamente ignoravam a lei para si mesmos. Além disso, eles foram marcados por rejeitarem a Palavra de Deus e dos profetas que a trouxeram, embora depois que os profetas foram mortos, eles os honraram com a construção de seus túmulos, esperando obter o prestígio de seus nomes agora que suas palavras não eram mais provadas por eles. Que artifício astuto esse! Mas não desconhecido mesmo em nossos dias. É fácil elogiar abertamente, um século depois de sua morte, um homem que foi ferozmente combatido durante sua vida de testemunho. As palavras do Senhor implicam que o que seus pais haviam feito seria feito novamente pelos filhos. A geração a quem Ele falava não era culpada apenas do sangue dos profetas anteriores, mas do próprio Filho de Deus.

Finalmente, no versículo 52, encontramos que, assim como os fariseus contaminavam outras pessoas (v. 44), os doutores da lei tiraram a chave do conhecimento, e faziam a obra de Satanás de impedir que outros entrassem no verdadeiro conhecimento de Deus. Eles mataram os profetas, e bloquearam o caminho da vida.

O Senhor evidentemente proferiu estas tremendas denúncias com calma de espírito. O melhor dos homens teria falado de forma diferente. Por isso, vem a nós a determinação: “irai-vos e não pequeis” (Ef 4:26). Facilmente pecamos por estarmos irados contra o pecado. Ele não precisava de tal comando. Seus oponentes pensaram que tinham apenas que provocá-Lo ainda mais e Ele iria facilmente sucumbir. Ele não fez tal coisa como previram, como mostra o próximo capítulo.

LUCAS 12

Em vez de ser provocado pela veemente oposição dos escribas e fariseus, o Senhor aproveitou a ocasião, instruindo calmamente Seus discípulos na presença da enorme multidão, de modo que a controvérsia desvaneceu imediatamente. Ele tinha acabado de direcionar o holofote da verdade sobre os líderes religiosos: Ele agora virou a mesma luz sobre os discípulos e seus caminhos.

Em primeiro lugar, Ele os advertiu contra a hipocrisia que Ele acabara de desmascarar nos fariseus. É de fato um “fermento”; isto é, um tipo de mal que, se não julgado, fermenta e cresce. O hipócrita visa em primeiro lugar ter as coisas “encobertas” dos olhos de Deus e depois dos olhos de seus semelhantes. Tudo, porém, está vindo para a luz, de modo que, a longo prazo, a hipocrisia é fútil. Ainda assim é absolutamente fatal para a alma ter que se ver com Deus de alguma forma, enquanto ela existir. Portanto, do ponto de vista moral, a advertência contra ela deve vir em primeiro lugar. Para o discípulo de Cristo, nada deve estar encoberto dos olhos do Senhor.

Em segundo lugar Ele os advertiu contra a se temer o homem – versículos 4-11. Ele não escondeu deles o fato de que iriam encontrar rejeição e perseguição. Se eles estivessem livres da hipocrisia em um mundo que é tão amplamente dominado por ela, eles não poderiam esperar ser populares. Mas, por outro lado, se eles não tivessem nada encoberto aos olhos de Deus, seriam capazes de se levantar sem covardia na presença de homens perseguidores. Aqueles que temem muito a Deus, temem pouco os homens.

O Senhor não apenas exortou Seus discípulos a não temerem os homens, mas também lhes revelou coisas que se provariam ser grandes encorajamentos para esse fim. No versículo 4, Ele Se dirigiu a eles como “amigos Meus”. Eles sabiam que eram Seus discípulos, Seus servos, mas essa palavra deve ter colocado as coisas em uma nova e muito animadora luz. Na força de Sua amizade, eles e nós podemos enfrentar a inimizade do mundo. Então, nos versículos 6 e 7, Ele colocou diante deles, de uma forma muito comovedora, o cuidado de Deus em favor deles. Tão íntimo é que os próprios cabelos da nossa cabeça não estão apenas contados, mas numerados (JND).

No versículo 12, Ele garante que, em seus momentos de emergência, eles poderiam contar com o ensino especial do Espírito Santo. Eles não teriam necessidade de elaborar sua defesa quando acusados perante as autoridades. O ódio e a oposição dos homens lançariam uma mentira para responsabilizá-los: mas que dons maravilhosos são estes – a amizade de Cristo, o cuidado de Deus, o ensino do Espírito Santo. E, além disso, a sua confissão de Cristo diante dos homens hostis seria recompensada por Sua confissão a respeito deles diante dos santos anjos.

Nesse ponto de Seu discurso, o Senhor foi interrompido por um homem que desejava que Ele interferisse em seu favor numa questão de dinheiro. Tivesse Ele sido o reformador social ou socialista, que alguns imaginam que Ele fosse, aqui estava a oportunidade para Ele ter estabelecido as regras corretas para a divisão da propriedade. Ele não fez nada disso: entretanto, Ele desmascarou a avareza [cobiça – AIBB] que levou o homem a fazer tal pedido, e falou a conhecida parábola concernente ao rico tolo. Reconstruir seus celeiros, de modo a conservar todos os frutos dados a ele pela generosidade de Deus, era apenas uma prudência normal. Armazenar tudo para si mesmo e negligenciar todas as riquezas divinas para a alma era a essência de sua loucura.

O rico tolo estava cheio de cobiça, pois considerava todos os seus bens como garantia do cumprimento de seu programa – “descansa, come, bebe e folga [alegra-te – JND]. Este é precisamente o programa do homem comum do mundo de hoje – muito lazer, muito para comer e beber, muita diversão e entretenimento.

Ora, o crente é “rico para com Deus”, como o versículo 21 deixa bem claro. Então, quando o Senhor retomou Seu discurso aos Seus discípulos, no versículo 22, Ele começou a aliviar suas mentes de todos aqueles cuidados que são tão naturais para nós. Já que somos enriquecidos com o reino, cobiça alguma deve nos caracterizar; e cuidado algum deve nos sobrecarregar_,_ uma vez que temos o todo-suficiente cuidado de Deus em nosso favor. Suas palavras foram: **“vosso Pai sabe”**. Assim, Ele ensinou Seus discípulos a conhecer a Deus como Alguém que Se interessou paternalmente por eles e em todas as suas necessidades relacionadas a esta vida.

Mas isso Ele fez, a fim de que eles pudessem ser libertados em espírito para buscar coisas que no momento estão fora desta vida. Não há contradição entre os versículos 31 e 32. O reino nos é dado e ainda assim devemos buscá-lo. Devemos procurá-lo porque ainda não está em manifestação; consequentemente não é encontrado nas coisas desta vida, mas reside nas realidades espirituais e morais conectadas com as almas daqueles que são trazidos sob a autoridade divina. No entanto, o reino deve ser uma realidade manifesta neste mundo, e o título de propriedade dele já é uma certeza para o povo de Deus. Como nossos pensamentos e nossas vidas hoje estão cheios das coisas e do serviço de Deus, buscamos o reino de Deus.

Por isso, a vida dos discípulos devia seguir linhas diametralmente opostas às dos devotos deste mundo. Em vez de acumular bens para um tempo prazeroso de descanso, o discípulo deve ser aquele que é um doador, aquele que deposita um tesouro no céu, aquele cujos lombos são cingidos para atividade e serviço, e cuja luz de testemunho está brilhando. Ele deve ser, de fato, como um homem esperando pelo retorno de seu senhor. Já notamos as coisas que não devem nos caracterizar: aqui temos as coisas que devem nos caracterizar.

Como servos, devemos estar esperando por nosso Senhor, e não apenas esperando, mas “vigiando” (v. 37), “apercebidos [prontos – JND] (v. 40) e “fazendo” (v. 43) – fazendo a tarefa que nos foi atribuída. O tempo de recompensa será quando nosso Senhor retornar. Então, o próprio Senhor Se comprometerá a ministrar para a plena bênção daqueles que vigiaram por Ele. Isso, que encontramos no versículo 37, indica uma recompensa de um tipo geral. O versículo 44 fala de uma recompensa de um tipo mais especial a ser dada àqueles marcados pelo serviço fiel e diligente aos interesses de seu Mestre.

O discurso do Senhor a Seus discípulos se estende até o final do versículo 53. Alguns pontos destacados são estes:

  1. O céu é novamente colocado diante dos discípulos. Em Lucas 10, como notamos, eles são instruídos de que sua cidadania está nos céus. Agora eles são ensinados a agir de modo que seu tesouro possa estar no céu e, consequentemente, o seu coração também. Eles devem viver em princípios completamente opostos àqueles que governam o rico tolo.

  2. O Senhor assume a Sua rejeição completamente e fala disso ainda mais claramente até o fim – versículos 49-53. “Fogo” é simbólico daquilo que investiga e julga, e já estava aceso por Sua rejeição. Por Seu “batismo” Ele indicou Sua morte e, até que isso fosse realizado, Ele foi “constrangido” (JND) ou “angustiado” (ARA), isto é, estreitado ou reprimido. Somente quando a expiação foi realizada, o amor e a justiça fluíram em pleno poder. Mas então, o fogo sendo aceso e o batismo realizado, tudo seria levado a uma conclusão, e a linha de demarcação claramente traçada. Ele Se tornaria a prova e a divisão aconteceria mesmo nos círculos mais íntimos. Ao antecipar tudo isso, o Senhor assume Sua ausência, e consequentemente fala livremente de Sua segunda vinda.

  3. O Senhor não deu uma resposta direta à pergunta de Pedro (v. 41). Ele não limitou definitivamente Suas observações ao pequeno círculo de Seus discípulos, nem ampliou o círculo para abraçar os milhares de Israel que estavam em volta. Em vez disso, Ele colocou todo o peso de Suas palavras sobre a responsabilidade de Seus ouvintes. Se os homens estivessem no lugar de Seus servos – não importa como chegassem lá – eles seriam recompensados de acordo com suas obras, se eles provassem ser fiéis ou maus. O servo mau não deseja a presença do Senhor e, consequentemente, em sua mente, ele adia a Sua vinda. Sendo assim incorreto em relação ao Mestre, ele se torna incorreto em suas relações com seus companheiros de serviço e é incorreto em sua vida pessoal. Quando o Senhor vier, sua porção será com os incrédulos, na medida em que ele provou ser apenas um incrédulo. Os versículos 47 e 48 mostram claramente que a pena, bem como a recompensa, serão graduadas com equidade, de acordo com o grau de responsabilidade.

  4. As marcas do verdadeiro servo são que ele se dedica aos interesses de seu Mestre enquanto Ele está ausente, e espera por sua recompensa até que Ele retorne. Três vezes neste discurso o Senhor Se refere a comer e beber, como uma figura de ter um bom tempo. O mundano tem seu bom tempo de alegria (v. 19), que termina em morte. O falso servo tem seu bom tempo quando começa “a comer, a beber e a embriagar-se” (v. 45), que termina em desastre com a vinda de seu Mestre. O falso servo não estava apenas alegre; ele estava bêbado o que é pior. Na verdade, quando homens não convertidos tomam o lugar de serem servos de Deus, eles parecem cair mais facilmente sob a entorpecente influência de noções religiosas e filosóficas sedutoras do que qualquer outra pessoa. O verdadeiro servo espera por seu Mestre, O qual o assentará para comer e beber e ser o Servo de sua alegria (v. 37). Então chegará o seu bom tempo.

No versículo 54, o Senhor voltou-Se dos discípulos para o povo com palavras de advertência. Eles estavam em uma posição mais crítica e não sabiam disso. Eles foram bem capazes de ler os sinais do clima, mas incapazes de ler os sinais do tempo. Por sua rejeição ao Senhor, estavam forçando-O à posição de seu “adversário”, isto é, a parte contrária em uma ação judicial. Se persistissem em sua atitude, e o caso chegasse ao Juiz de todos, eles se encontrariam completamente errados e a pena máxima viria sobre eles. Eles teriam que pagar até “o último centavo” (ARA).

LUCAS 13

Naquele momento, alguns dos presentes mencionaram o caso de certos infelizes homens da Galileia, que haviam pagado a pena extrema sob Pilatos. Eles tinham a impressão de que aqueles eram pecadores mais profundamente manchados. O Senhor acusou seus ouvintes de que a culpa deles próprios era tão grande quanto a daqueles, e que também pereceriam, e citou o caso dos dezoito mortos pela queda da torre em Siloé. Na visão popular, esses foram acontecimentos excepcionais que indicavam maldade excepcional. As pessoas que O escutavam estavam comprometidas com piores perversidades ao falhar em entender suas oportunidades; e, rejeitando-O, eles não escapariam. Assim, Ele os advertiu sobre a retribuição que vinha sobre eles.

Na parábola da figueira, vemos estabelecido o terreno da retribuição (vs. 6-10). Deus tinha todo o direito de esperar frutos do povo; Ele procurou, mas não encontrou nenhum. Então, por um ano, haveria ministério para a árvore em vez de demanda da árvore. Jesus estava entre eles, ministrando-lhes a graça de Deus, em vez de lhes pressionar as exigências da lei. Se não houvesse resposta a isso, então o golpe deveria cair. Em tudo isso, Seu ensinamento flui a partir do final do capítulo 12: não há ruptura real entre os capítulos.

Agora vem o belo incidente, versículos 10-17, no qual é apresentado figurativamente o que a graça realizará, onde ela for recebida. A pobre mulher, embora curvada e desamparada, era alguém que esperava na provisão de Deus na sinagoga. Sua condição física era uma figura adequada da difícil situação espiritual de muitos. Eles estavam cheios de enfermidades espirituais, e achavam a lei ser um jugo opressivo, tanto que sob seu peso eles estavam juntamente curvados, incapazes de se endireitarem e olhar para cima.

Esta mulher era uma “filha de Abraão”, isto é, uma verdadeira filha da fé – veja Gálatas 3:7. No entanto, Satanás tinha parte em seu triste estado, aproveitando-se de sua enfermidade. Além disso, o príncipe da sinagoga teria usado a lei cerimonial para impedir que ela fosse curada. Mas o Senhor pôs tudo isso de lado. Por Sua Palavra e por Seu toque pessoal, Ele realizou sua libertação imediata. Muitos são os que diriam: “Comigo estavam a lei, a enfermidade, a escravidão sem esperanças e o poder de Satanás, até que Cristo interveio no poder de Sua graça: então, que mudança!” Libertações como essas envergonham os adversários e enchem muitos de alegria. São, de fato, “coisas gloriosas que eram feitas por Ele”.

Nesse ponto, o Senhor mostrou que mesmo a introdução da graça e do poder do reino não resultaria em um estado de coisas absolutamente perfeito. As parábolas do grão de mostarda e do fermento, trazidas aqui, indicam que, embora houvesse muito crescimento e expansão na forma exterior do reino, ele seria acompanhado por elementos indesejáveis e até pela corrupção.

Com o versículo 22 de nosso capítulo, uma ruptura distinta vem de um ponto de vista histórico. O Senhor agora é visto viajando para Jerusalém, ensinando nas cidades e aldeias pelas quais passava. Mas, embora isso seja assim, não parece haver nenhuma ruptura marcante registrada em seu ensino. A pergunta no versículo 23 parece ter sido motivada pela curiosidade e, em resposta, o Senhor deu uma palavra de instrução e advertência que estava muito de acordo com o que acabara de acontecer. Já que a chegada da graça do reino iria resultar na mistura das coisas, retratada nas parábolas do grão de mostarda e do fermento, então o caminho estreito da vida deve ser procurado com muita sinceridade e seriedade.

A palavra “porfiai [esforçai-vos – ARA], no versículo 24, não significa trabalhos de qualquer tipo, mas dedicação de tal intensidade como se fosse quase uma agonia. É como se Ele dissesse: “Agonize-se para entrar pela porta estreita enquanto a oportunidade perdura”. Muitos buscam uma entrada mais ampla por meio de coisas do tipo cerimonial, como indicado no versículo 26. Mas somente aquilo que é pessoal e espiritual contará. Não há entrada real senão por meio do caminho estreito do arrependimento. Então, novamente aqui o Senhor mostra a futilidade de uma religião meramente exterior. Deve haver realidade interior.

As parábolas dos versículos 18-21 mostram que haverá mistura no reino em sua forma atual; mas o versículo 28 mostra que em sua forma vindoura não haverá nenhuma mistura. Então os patriarcas estarão no reino e os meros cerimonialistas serão expulsos. O versículo 29 dá uma sugestão do chamamento dos gentios que estava iminente, pois a graça estava prestes a sair por todo o mundo com efeitos poderosos. A graça, como vimos muito antes neste evangelho, não pode ser confinada dentro dos limites ou formas judaicas. Como novo vinho, vai estourar os odres. Historicamente o judeu foi o primeiro, mas na presença da graça seu arraigado legalismo muitas vezes o impediu, de modo que ele chegou em último lugar. O gentio, que não tinha impedimento assim, torna-se o primeiro quando a graça está em questão.

O capítulo se encerra com uma nota muito solene. Agora não é o judeu, mas Herodes que vem para o julgamento. Herodes encobriu sua animosidade com a astúcia de uma raposa, mas Jesus o conhecia completamente. Ele sabia também que a Sua própria vida, caracterizada pela misericórdia para o homem, deveria ser aperfeiçoada1 pela morte e ressurreição. O ódio de Herodes, no entanto, era uma coisa pequena. A grande coisa foi a rejeição, por Jerusalém, de Cristo e de toda a graça que estava n’Ele. Eles eram o povo ao qual Deus havia rogado pelos profetas e que agora Ele iria reunir por Seu Filho. A figura usada é muito bonita. Os profetas haviam lembrado a eles de seus deveres sob a lei quebrada, enquanto previam a vinda do Messias. Agora Ele veio na plenitude da graça, e o abrigo de Suas asas protetoras poderia ter sido deles. Tudo, no entanto, foi em vão.

Jerusalém se gabou da bela casa que estava no meio dela. Jesus havia falado dela antes como “a casa de Meu Pai”, agora Ele a renuncia dizendo ser “vossa casa”, e Ele a deixa para eles desolada e vazia. Jerusalém havia perdido sua oportunidade e logo não iria ver seu Messias até que o clamor do Salmo 118:26 seja ouvido, que procede “desde a casa do Senhor”. Esse clamor não será ouvido nos lábios de Jerusalém até o dia de Seu segundo advento.

LUCAS 14

Nos versículos finais do capítulo anterior, o Senhor aceitou Sua rejeição e predisse seus resultados para Jerusalém; contudo, Ele não cessou Suas atividades em graça nem Seus ensinamentos da graça, como mostra a parte inicial deste capítulo. Os fariseus desejavam usar a lei do sábado deles como um cordão com o qual amarrariam Suas mãos de misericórdia para impedi-las de agir. Ele quebrou a corda e mostrou que no mínimo teria tanta misericórdia do homem afligido quanto eles costumavam mostrar aos seus animais domésticos. Sua graça abundava acima de todos os seus preconceitos legais.

No versículo 7, Lucas retoma o relato de Seus ensinamentos, e não encontramos qualquer registro adicional de Suas obras até chegarmos ao capítulo 17:11. Em primeiro lugar, o Senhor enfatizou o comportamento que deve caracterizar aqueles que são os recipientes da graça. A natureza humana caída é agressiva e age com autoafirmação, mas a graça só pode ser recebida à medida que a humildade é manifestada. O convidado a um casamento vai à festa sob o terreno de generosidade e não de direito ou mérito, e deve se comportar de acordo com isso. Pode-se notar que na sociedade mundana de hoje2 a ousada autoafirmação não seria considerada um bom modelo. Reconhecemos isso e é um testemunho do modo como os ideais Cristãos ainda prevalecem. Nos círculos pagãos, essa agressividade seria aplaudida, e veremos isso cada vez mais se manifestando à medida que os ideais pagãos prevalecerem.

A humilhação da exaltação própria e a exaltação dos humilhados às vezes são vistas nesta vida, mas serão plenamente vistas quando aqu’Ele que Se humilhou em suprema medida, até à morte de cruz, for soberanamente exaltado em público e todo joelho se dobrar diante d’Ele. No versículo 11 podemos discernir os dois Adãos. O primeiro tentou exaltar-se e caiu: o Último humilhou-Se e assenta-Se à direita da Majestade nas alturas.

Nos três versículos seguintes, encontramos o Senhor instruindo não o convidado, mas o anfitrião. Ele também deve agir no espírito que é apropriado à graça. A natureza humana é egoísta mesmo em seus benefícios, e enviará seus convites com vistas ao ganho futuro. Se, sob a influência da graça, pensarmos naqueles que nada têm a nos oferecer, não objetivaremos qualquer recompensa terrena. No entanto, há recompensa mesmo para as ações da graça, mas isso é encontrado no mundo da ressurreição que está por vir.

Ensinamentos como esses levaram alguém a exclamar: “Bem-aventurado o que comer pão no reino de Deus”. Isto foi dito muito provavelmente sob a impressão de que a entrada no reino era uma questão de grande dificuldade, e aquele a comer pão deve ser uma pessoa particularmente favorecida. Essa observação levou o Senhor a falar a parábola da “grande ceia”, na qual mostrou que a porta para o reino deve ser aberta a todos e que, se alguém não entra, é por sua própria culpa. Nesta parábola existe um elemento profético; isto é, o Senhor olhou adiante e falou de coisas que teriam seu cumprimento no dia em que vivemos. É eminentemente a parábola do evangelho.

“Um certo homem fez uma grande ceia e convidou a muitos”. O custo e o trabalho eram dele; o benefício deveria ser conferido a muitos. Os primeiros convidados eram pessoas que já possuíam algo – um pedaço de terra, bois, uma esposa. Estes representam os judeus com seus líderes religiosos na Terra, que primeiro ouviram a mensagem. Considerando-os como um todo, eles recusaram o convite, e foram os privilégios religiosos que já possuíam que os cegaram para não perceberem o valor da oferta do evangelho.

Quando sua recusa foi relatada pelo servo, o dono da casa é representado como “irado” (ARA). Em Hebreus 10:28-29, é dito que a ação de “ultrajar o Espírito de graça” (AIBB) é digna de “mais severo castigo” (ARA) do que o desprezo pela lei de Moisés. O que temos aqui está de acordo com isso. A ira do dono da casa realmente significava que nenhum daqueles que assim desprezavam seu convite deveria saborear sua ceia, como diz o versículo 24, mas as suas entranhas de bondade não se calaram. O servo foi ordenado a que fosse rapidamente e trouxesse os pobres e necessitados – os mais desqualificados do ponto de vista humano.

Estes deveriam ser reunidos das “ruas e becos da cidade”; assim eles representam, pensamos, os pobres e aflitos e os indignos de Israel – os publicanos e pecadores, em contraste com os escribas e fariseus. O próprio Senhor estava agora voltando-Se para eles e, entre esses, o trabalho continuou nos dias registrados nos capítulos anteriores dos Atos dos Apóstolos. Então chegou o momento em que o convite foi totalmente declarado entre eles e, embora muitos tenham respondido, o feliz anúncio foi feito pelo servo: “ainda há lugar”.

Isso levou a uma extensão do bondoso convite. Assim, a palavra ainda é “Sai”, e agora os pobres abandonados nos caminhos e valados (divisas), fora dos limites da cidade, devem ser trazidos para encher a casa. Isto retrata o envio do evangelho para os gentios, onde, no final de Atos, Paulo diz: “Esta salvação de Deus é enviada aos gentios, e eles a ouvirão”.

A parábola expõe definitivamente a questão do lado de Deus e não do homem. Ele faz a ceia, envia o Servo, tem Sua própria maneira e enche Sua casa apesar da perversidade do homem. O Servo que Ele envia é o Espírito Santo, pois ninguém menos do que Ele pode empunhar um poder que seja absolutamente convincente. Os subservos, mesmo tão grandes como o apóstolo Paulo, não podem ir além da persuasão dos homens (ver 2 Co 5:11); somente o Espírito do Deus vivo pode trabalhar tão eficazmente no coração dos homens, a ponto de “forçá-los a entrar”. Mas isso, bendito seja Deus, é o que Ele faz e o que fez por cada um de nós.

Ouvindo coisas tais como estas, grandes multidões foram ter com Ele. Muitos há que gostam de ouvir coisas cujo significado não representa nada para si mesmos. O Senhor virou-Se e colocou diante deles as condições do discipulado. A graça de Deus não impõe condições, mas o evangelho que anuncia que a graça conduz nossos pés no caminho do discipulado, que só pode ser pisado corretamente quando nos submetemos a condições muito estritas. Quatro são mencionadas aqui.

  1. O Mestre deve ser supremo nas afeições do discípulo; tanto é assim que todos os outros tipos de amor devem ser aborrecíveis quando comparados a esse.

  2. Deve haver o levar a cruz ao segui-Lo; isto é, uma prontidão para aceitar a sentença de morte como vinda do mundo.

  3. Deve haver o cálculo do custo em relação aos nossos recursos; uma avaliação correta de tudo o que é nosso em Cristo a Quem seguimos.

  4. Deve igualmente haver uma avaliação correta dos poderes ordenados contra nós.

Se não considerarmos corretamente qualquer uma dessas condições, muito provavelmente iremos além de nossa medida, por um lado, ou ficaremos cheios de medo e faremos concessões ao adversário, por outro. Se, como o versículo 33 diz, realmente abandonamos tudo o que temos, seremos inteiramente lançados sobre os recursos do grande Mestre a Quem seguimos, e então o caminho do discipulado se torna gloriosamente possível para nós.

Ora o verdadeiro discípulo é sal; e o sal é bom. Em Mateus 5, encontramos Jesus dizendo: “Vós sois o sal da Terra” (v. 13), mas Ele disse isso a “discípulos” (Mt 5:1). Se o discípulo fizer concessões, ele se torna como sal que perdeu seu sabor, e está apto para ser lançado fora. Que palavra para nós! A graça nos chamou e nossos pés foram colocados no caminho do discipulado. Estamos cumprindo suas solenes condições, para que nos tornemos verdadeiramente discípulos? (Jo 8:32) Que nós realmente tenhamos ouvidos para ouvir!

LUCAS 15

Dos dois versículos que abrem este capítulo, parece que essas palavras sobre graça e discipulado atraíram os publicanos e pecadores para Ele, enquanto repeliram os fariseus e escribas. Ele realmente recebeu pecadores e comeu com eles: tal ação está de acordo com a própria natureza da graça. Os fariseus lançaram o comentário como uma provocação. O Senhor aceitou isso como um elogio, e prosseguiu por parábolas para mostrar que Ele não apenas recebeu pecadores, mas os buscou efetivamente, e também para demonstrar que tipo de recepção é dada aos pecadores quando são recebidos.

Primeiro a parábola da ovelha perdida. Aqui vemos no pastor uma figura do próprio Senhor. As noventa e nove ovelhas, que representam a classe dos fariseus e dos escribas, não foram deixados no aprisco, mas no deserto – um lugar de esterilidade e morte. A única ovelha que estava perdida representa a classe dos publicanos e pecadores; aqueles que estão perdidos e sabem disso – o “pecador que se arrepende”. O Pastor encontra a ovelha; a labuta e a fadiga são Suas. Tendo a encontrado, Ele a assegura e a traz para casa. Seus ombros se tornam sua segurança. Ele a traz para casa e então Seu gozo começa. Ele nunca teve que dizer: “Sofre comigo, pois perdi a Minha ovelha que foi achada”.

É impossível encontrar na Terra os “noventa e nove justos, que não necessitam de arrependimento”, embora infelizmente seja fácil encontrar noventa e nove pessoas que se imaginam como tal. No entanto, se eles pudessem ser encontrados, haveria mais alegria no céu por um pecador arrependido do que poderia haver vinda dos noventa e nove justos. Todas as miríades de santos anjos no céu nunca causaram tanta alegria como um pecador arrependido. Que graça surpreendente é essa!

A parábola da dracma perdida prossegue no mesmo tema geral, mas com alguns detalhes especiais. A mulher com suas atividades na casa representa a obra subjetiva do Espírito nas almas dos homens, e não a obra objetiva de Cristo. O Espírito acende uma candeia dentro do escuro coração e cria a perturbação que termina na descoberta da dracma. É dito que há alegria na presença dos anjos; não é a alegria dos anjos, mas da Divindade, diante de Quem os anjos estão.

Em seguida, segue a parábola do “filho pródigo”. As palavras de abertura são muito significativas. O Senhor estava dizendo: “Que homem dentre vósnão vai após”? “Qual a mulhernãobusca com diligência?” Agora Ele não podia dizer: “Que homem dentre vós”, se tiver um filho pródigo e ele retorna, não vai “correndo, lança-se-lhe ao pescoço e o beija?” Duvidamos que alguém vá ao extremo do pai desta parábola: a grande maioria dos homens certamente não o faria. Esta parábola expõe a graça de Deus Pai. Mais uma vez, é uma figura do pecador que se arrepende, e agora podemos ver em forma de parábola as profundezas de onde o pecador é tirado, e as alturas às quais ele é elevado de acordo com o coração do Pai, pelo evangelho.

No melhor vestido vemos o símbolo de nossa aceitação no Amado: no anel, o símbolo de um relacionamento eterno estabelecido: nas sandálias o sinal da filiação; os servos entravam nas casas de seus senhores com os pés descalços. O bezerro cevado e a alegria demonstram a alegria do céu e o gozo do Pai em particular. O filho havia morrido moral e espiritualmente, mas agora ele era como alguém que foi revivido para uma nova vida.

Se o filho mais novo retrata o pecador arrependido; o filho mais velho representa com precisão o espírito do fariseu. Um estava com fome e entrou; o outro estava com raiva e ficou fora. A chegada da graça sempre divide os homens nessas duas classes – aqueles que sabem que não são dignos de nada, e aqueles que se imaginam dignos de mais do que fizeram. Disse o filho mais velho: “nunca me deste um cabrito para alegrar-me com os meus amigos”. Então ele também encontrou sua companhia e prazer em um círculo de amigos fora do círculo de seu pai. A única diferença estava no caráter dos amigos – os do filho mais novo tinham uma má reputação, enquanto os do mais velho se presumiam respeitáveis. O religioso com justiça própria não está mais em verdadeira comunhão com o coração do Pai do que o pródigo; e ele ainda acaba fora enquanto o filho pródigo é trazido para dentro.

LUCAS 16

Estas parábolas foram ditas aos fariseus, mas a que inicia este capítulo foi falada aos discípulos. Eles foram instruídos por ela quanto à posição em que os homens se encontram diante de Deus, e o comportamento que lhes convém nessa posição. Somos mordomos e fomos infiéis em nossa mordomia. O mordomo foi acusado por seu mestre de ter “dissipado (desperdiçado) seus bens”. Essa frase nos dá uma ligação com a parábola anterior, pois o filho mais novo “desperdiçou a sua fazenda, vivendo dissolutamente”. Tudo o que possuímos chegou até nós da mão de Deus, de modo que, se esbanjarmos sobre nós mesmos aquilo que podemos ter, estamos realmente desperdiçando os bens do nosso Senhor.

O mordomo infiel encontrou-se sob aviso para deixar seu ofício, após o que resolveu que usaria certas oportunidades, ainda ao seu alcance no presente, com vistas à sua vantagem no futuro. O versículo 8 é o fim da parábola. O mordomo era injusto – o Senhor claramente o chama assim – mas seu senhor não podia deixar de elogiar a desonesta sabedoria com a qual ele agira, apesar de ser em seu próprio detrimento. Em questões de astúcia mundana, os filhos desse mundo excedem os filhos de Deus.

Os versículos 9-13 são a aplicação da parábola para todos nós. Posses terrenas, dinheiro e coisas semelhantes, são “as riquezas da injustiça”, porque são as coisas pelas quais a injustiça do homem é principalmente mostrada, embora em si mesmas não sejam propriamente injustas. Devemos usar as riquezas de modo a estabelecer “um bom fundamento para o futuro” (ver 1 Tm 6:17-19), ou como o nosso versículo diz, “quando elas falharem (acabarem), vós possais ser recebidos nos tabernáculos eternos” (JND).

Portanto o versículo 9 mostra que devemos agir de acordo com o princípio tão sabiamente adotado pelo mordomo; O versículo 10 mostra que devemos nos diferenciar totalmente dele nisso; o que ele fez em infidelidade devemos fazer em toda boa fidelidade. As “riquezas da injustiça”, que os homens lutam para obter com tanta seriedade e com frequência com tanta desonestidade, é, afinal, “o pouco” (ARA). Não são propriamente nossas, mas de “outro homem” (KJV), na medida em que “a Terra é do Senhor e toda a sua plenitude”. Mas há “as verdadeiras” riquezas, que o Senhor fala como “o que é vosso”. Se realmente percebermos que nossas próprias coisas são aquelas que temos em Cristo, usaremos tudo o que temos nesta vida – dinheiro, tempo, oportunidades, poderes mentais – com vistas aos interesses de nosso Mestre. Em todas as ocasiões, não podemos servir dois mestres. Deus ou Mamom (as riquezas) nos dominará. Vamos fazer com que Deus nos domine.

Embora tudo isso tenha sido dito aos discípulos, havia fariseus ouvindo e eles zombavam d’Ele abertamente. Para suas mentes ambiciosas, esse ensino era absurdo. Eles eram ótimos defensores da lei, e a lei nunca havia estipulado coisas como essas. A resposta do Senhor para eles foi dupla. Primeiro, todos eles viviam por aquilo que era exterior diante dos olhos dos homens, meramente preocupando-se com o que os homens estimavam. Eles ignoraram o Deus que está preocupado com o estado dos corações dos homens, e cujos pensamentos são totalmente opostos aos dos homens. Em última análise, os pensamentos de Deus serão estabelecidos e os pensamentos dos homens serão derrubados.

Segundo, a lei em que eles se gloriavam estava sendo suplantada pelo reino de Deus. A lei havia estipulado as coisas necessárias para a vida do homem na Terra, e os profetas previram o reino vindouro de Deus na Terra. O tempo do reino mundial visível, ainda não era chegado, mesmo assim estava sendo introduzido em outra forma pela pregação, e já nesta forma espiritual os homens estavam começando a ser pressionados a ele. Os fariseus eram cegos para tudo isso e estavam ficando do lado de fora. Mas, embora a lei estivesse sendo suplantada dessa maneira, nenhum “til” dela iria cair. Em seu próprio domínio, a lei permanece em toda a sua majestade. O mandamento é “santo, justo e bom”, e suas ordenanças morais ainda permanecem. A ordenança particular que o Senhor enfatizou no versículo 18, foi sem dúvida uma tremenda investida contra os fariseus, que eram muito negligentes em tais assuntos, enquanto grandemente ocupados com seus dízimos de hortelã, endro e cominho.

Este golpe dirigido foi seguido pela tremenda parábola dos versículos 19-31, se de fato é uma parábola. O Senhor usa algumas expressões figurativas, como “o seio de Abraão”, mas Ele relata tudo como fato. Os versículos 19-22 relatam fatos muito comuns desta vida que terminam em morte e sepultamento, e aí a cortina cai para nós. Quando chegamos ao versículo 23, o Senhor levanta a cortina e traz à nossa visão as coisas que estão além.

O homem rico agiu precisamente no princípio oposto ao mordomo no início do capítulo. Tudo o que tinha, ele usou para o gozo egoísta e presente, e deixou o futuro cuidar de si mesmo. Não é contra as riquezas que o Senhor está protestando, mas contra o uso egoísta que o homem fazia das riquezas sem Deus. O homem rico se dava todo para o presente, tudo para este mundo; O reino de Deus não era nada para ele.

A palavra que Jesus usou para “inferno” (ARA) aqui é hades; não é o lago de fogo, mas o mundo invisível dos que partiram. Ele, portanto, nos mostra que mesmo isso, para os não salvos, é um lugar de tormento. Quatro vezes Ele afirma que hades é um lugar de tormento.

Ele também mostra que uma vez que a alma entra no hades nenhuma mudança é possível. O “grande abismo” “está posto”. Nenhuma transferência do tormento para a bem-aventurança é possível. Nenhuma “salvação universal” aparece aqui.

O homem rico tornou-se bastante evangelista no hades. Ele desejava que seus irmãos tivessem uma visitação sobrenatural para impedi-los de chegar àquele lugar horrível. O Senhor nos mostra que nenhum evento sobrenatural, se fosse possível, impediria as pessoas, se elas não fossem impedidas pela Palavra de Deus.

Hoje Deus está apelando aos homens pelo Novo Testamento, assim como por Moisés e os profetas, e no Novo Testamento está o registro daqu’Ele que ressuscitou dos mortos. Se os homens rejeitarem a Bíblia, que é a plena Palavra de Deus para hoje, nada os persuadirá, e eles alcançarão o lugar do tormento.

Oh, que uma convicção dada por Deus disso possa nos possuir! Então, com o “amor de Deus, nosso Salvador, para com os homens” (Tt 3:4 – ARF) também possuindo nosso coração, deveríamos estar cheios de zelo pelas almas dos homens. Deveríamos nos assemelhar mais a Joseph Alleine, um dos devotados homens excluídos de seus benefícios eclesiásticos sob o “Ato de Uniformidade”3, de quem se dizia ter “insaciável anseio pela conversão de preciosas almas!” E devemos ter o zelo pelas almas dos homens, enquanto ainda é o tempo aceitável e o dia da salvação.

LUCAS 17

A última parte do capítulo anterior – versículo 14 ao final – foi falada aos fariseus; no início deste capítulo, o Senhor novamente Se dirige aos Seus discípulos. O homem rico tropeçou em suas posses caindo no inferno, e agora o Senhor diz a Seus discípulos que, sendo o mundo o que é, “escândalos [ofensas – JND] ou ocasiões de tropeços são inevitáveis. O melhor é evitar ser uma “ofensa” a qualquer outra pessoa, até mesmo para os pequeninos. As consequências são tão sérias que qualquer coisa é melhor que isso.

No entanto, isso não significa que nunca devemos falar com nosso irmão por medo de fazê-lo tropeçar. Mas o contrário: se ele se desviar para o pecado, devemos repreendê-lo e se ele se arrepender, imediatamente perdoá-lo; mesmo que isso aconteça repetidamente. Podemos imaginar que podemos correr o risco de fazê-lo tropeçar ao repreendê-lo, mas na verdade podemos fazê-lo tropeçar por não repreendê-lo. É claro que é assumido que a repreensão é administrada não na ira humana, mas no poder do amor divino.

Ensinamentos como esse fizeram os discípulos sentirem que precisavam ter sua fé aumentada. A resposta do Senhor parece implicar que não é uma questão de quantidade de fé, mas da sua vitalidade. Um grão de mostarda é muito pequeno, mas está vivo! A fé viva realiza resultados de uma ordem sobrenatural. Muitas vezes as pedras de pavimentação foram forçadas por brotos tenros, provenientes de sementes vivas embaixo delas. Até mesmo a vida vegetal tem poderes que parecem milagrosos e muito mais tem a fé que é viva. No entanto, nenhuma fé que temos e nenhum serviço que prestamos nos dá qualquer tipo de reivindicação sobre Deus. Nunca podemos realizar mais do que era nosso dever fazer. Esta parece ser a verdade inculcada nos versículos 7-10.

O Senhor estava agora a caminho de Jerusalém e chegamos ao comovente acontecimento referente aos dez leprosos. Todos eles tinham alguma medida de fé n’Ele, pois apelavam para Ele como Mestre e obedeciam a Sua direção para ir aos sacerdotes, apesar do fato de que não havia no momento nenhuma mudança na condição deles. No entanto, quando a purificação chegou a eles, nove deles continuaram sua jornada aos sacerdotes, de modo a completar sua purificação cerimonial no primeiro momento. Apenas um adiou a parte cerimonial para dar o primeiro lugar ao seu Benfeitor. A mente judaica estava mais ligada ao que era cerimonial: o pobre samaritano estava livre para render louvores e ações de graças ao Salvador em primeiro lugar e depois receber sua purificação cerimonial. A soberana misericórdia havia sido dispensada, e ele foi levantado acima dos costumes da lei por um vislumbre da Pessoa que lhe dispensou a misericórdia. Como resultado, ele recebeu dos próprios lábios do Senhor, a certeza de estar curado com o reconhecimento de que sua fé havia sido o instrumento para a cura. Isso valeu muito mais do que qualquer garantia que ele pudesse obter dos sacerdotes. A fé inteligente sempre coloca Cristo em primeiro lugar.

Nos versículos 20 e 21, Lucas estabelece a ignorante incredulidade dos fariseus em contraste com a fé do samaritano. Eles só pensavam no reino de Deus chegando com aparências externas, de modo a serem observados por todos. O Senhor disse a eles que o reino não estava naquele tempo vindo daquela maneira, mas que já estava entre eles, visto que Ele – o Rei – estava no meio deles. O reino estava entre eles porque Ele estava entre eles. Os fariseus eram bastante cegos para perceber isso, mas o samaritano, evidentemente, enxergou isso, daí seu apressado retorno para dar graças a Seus pés.

No versículo 22, Jesus novamente Se volta para Seus discípulos, falando dos “dias do Filho do Homem”, e é claro que é o Filho do Homem que deve tomar o reino, quando a hora chegar para o seu estabelecimento público, como muito tempo antes havia sido divulgado, conforme Daniel 7:13-14. Agora eles, como o samaritano, tinham fé e já viam o poder e autoridade de Deus investidos no Senhor Jesus. Eles também iriam, no devido tempo, ver o Filho do Homem revelado em Sua glória, e disso fala o versículo 30 bem como o versículo 24. Mas enquanto isso Sua rejeição iria sobrevir, e as palavras ditas ao final do capítulo foram evidentemente endereçadas a eles como representantes dos santos que deveriam estar aqui até o tempo em que Ele for revelado em glória. Muitos foram os que desejaram ver um dos Seus dias e não o viram.

À medida que o tempo do Seu advento se aproxima, duas coisas se tornarão proeminentes. Primeiro, haverá muita atividade por parte dos poderes do mal. Os impostores se apresentarão aqui e ali, como o versículo 23 indica. Em segundo lugar, haverá na parte dos homens uma absorção generalizada pelas coisas da Terra. Nos dias de Noé e de Ló, os homens estavam absortos em seus prazeres, em seus negócios e em seus projetos; consequentemente, o julgamento os pegou de surpresa e todos eles morreram. Assim será no dia da revelação do Filho do Homem.

O grande pensamento incorporado no versículo 33 ocorre não menos que seis vezes nos evangelhos, e o Senhor parece tê-lo pronunciado em quatro ocasiões diferentes. O contexto aqui é muito impressionante. Os homens mergulham nas coisas da Terra procurando salvar suas vidas. Como resultado, eles só as perdem. O crente deve abandonar essas coisas em favor das coisas muito maiores que são reveladas a ele. Ele preserva sua vida, como será muito manifesto quando o Senhor vier. A esposa de Ló ilustrou esse princípio. Os anjos tiraram seu corpo de Sodoma, mas seu coração ainda estava lá. Ela perdeu tudo e sua própria vida também. Fazemos bem em nos lembrar dela.

Aqueles que estiverem na Terra quando o Senhor vier farão bem em lembrar-se dela também. Se o fizerem, não pensarão em tentar recuperar suas coisas da casa ou retornar de seu campo. Esse dia virá com a rapidez do mergulho de uma águia. Assim como as águias se reúnem onde quer que sua presa seja encontrada, assim o julgamento de Deus alcançará todos os que estão expostos a ele. O reino, quando estabelecido, será marcado pelo julgamento discriminativo contra o mal. O pecador será levado em juízo, e os justos serão deixados para desfrutar da bênção, não importando quão próximos eles tenham estado associados entre si. Se os fariseus tivessem percebido que o estabelecimento público do reino envolveria isso, talvez não quisessem levantar a questão de quando ele viria.

É digno de nota que os três casos mencionados pelo Senhor nos versículos 34-36, supõem o período da noite, cedo de manhã e dia inteiro, respectivamente. Quando Ele vier, os homens serão instantaneamente presos em todas as partes da Terra, do jeito que estiverem.

LUCAS 18

Ao falar a parábola, com a qual este capítulo se inicia, o Senhor estava continuando na mesma linha de pensamento, como é mostrado pela Sua aplicação da parábola nos versículos 7 e 8. Quando o reino chegar, significará julgamento para os malfeitores, mas os dias imediatamente anteriores à sua chegada significarão tribulações para os santos. Seu recurso será a oração. Mesmo um juiz injusto será movido a fazer justiça à uma viúva, se ela importuná-lo suficientemente; assim o santo pode continuar esperando em Deus com a certeza de ser ouvido na época devida.

Não há a menor dúvida sobre a vinda do Filho do Homem para responder aos clamores de Seus eleitos. A única dúvida é quanto à fé sendo encontrada em vívidos exercícios entre eles. O Senhor fez a pergunta: “Quando porém vier o Filho do Homem, porventura achará fé na Terra?”, mas Ele não a respondeu. A dedução parece ser que a fé estará em maré baixa, o que concorda com Sua própria afirmação em outro lugar de que “o amor de muitos esfriará”. Se estivermos certos em acreditar que o fim dos tempos está muito próximo, faremos bem em levar isso muito a sério e nos motivarmos para a fé e a oração. Apenas não desmaiaremos se sempre orarmos.

O homem que ora, confia em Deus. O problema de tantos é que eles confiam em si mesmos e em sua própria justiça. Para estes, é endereçada a próxima parábola. O fariseu e o publicano são homens típicos. O Senhor toma como certo que a graça de Deus, que traz justificação para os homens, estava disponível, mas mostra que tudo depende da atitude de quem precisa dela. O fariseu representa exatamente o filho mais velho do capítulo 15, o homem rico do capítulo 16, o ladrão impenitente do capítulo 23. O publicano representa o filho mais novo, Lázaro, e o ladrão arrependido.

Com o fariseu, o que valia era ele mesmo, seu caráter, seus feitos. Com o publicano, a confissão do pecado e sua necessidade de propiciação – a palavra traduzida, “tem misericórdia”, é literalmente “sê propício” (ARA). Quão cheio de significado é o versículo 13! A posição do publicano: “de longe”, indicando que ele sabia que não tinha o direito de se aproximar. Sua atitude: “nem ainda queria levantar os olhos para o céu” – o céu não era lugar para um homem como ele. Sua ação: “batia no peito”, confessando assim que ele era o homem que merecia ser golpeado. Suas palavras: “(eu) o pecador” (AIBB), pois aqui o correto é o ao invés de um (conforme traduzido na KJV). O fariseu dissera: “não sou como os demais homens”, golpeando outros homens em vez de si mesmo. O publicano, ao bater no próprio peito, atingiu o homem certo e, ao se humilhar, foi abençoado.

Quão surpreendentemente tudo isso se encaixa com o tema especial deste evangelho. A graça estava presente em abundância no perfeito Filho do Homem, mas, a menos que tenhamos, de nossa parte, o espírito humilde e arrependido, perdemos tudo o que ela oferece.

O próximo incidente, que Lucas relaciona brevemente nos versículos 15-17, impõe a mesma coisa. Meras crianças não têm importância no esquema mundial das coisas, mas o reino é composto por elas. Não é, como deveríamos pensar, que a criança deva alcançar o estado adulto para entrar, mas que o homem adulto deve chegar ao estado de criança para entrar. O primeiro pensamento poderia ter sido adequado à lei de Moisés, mas a graça está em questão aqui.

Novamente, o próximo incidente, relativo ao jovem rico, coloca sua ênfase no mesmo ponto. O Senhor acabara de falar receber o reino como uma criancinha, quando o príncipe pergunta: “que hei de fazer para herdar a vida eterna?” Sua mente voltou-se para as obras da lei, sem saber o que Paulo nos diz em Romanos 4:4: “Ora àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida”. Aproximando-Se nesta base, o Senhor o remeteu à lei, no que diz respeito ao seu dever para com o próximo, e em sua afirmação de tê-la cumprido desde a sua juventude, Ele o testou ainda além, sobre a sua relação Consigo mesmo: “Vem, e segue-Me”. Quem é esse Me? Essa foi a questão suprema, sobre a qual tudo dependia, seja para o príncipe ou para nós mesmos.

O príncipe havia se dirigido a Ele como “Bom Mestre”, e esse título elogioso o Senhor havia recusado, pois estava desvinculado do reconhecimento de que Ele era Deus. Na verdade Ele era Deus e Ele era bom, e Se apresentou ao jovem, pedindo-lhe que renunciasse ao que possuía e O seguisse – exatamente como Levi havia feito algum tempo antes. A própria lei exigia que Deus fosse amado de todo o coração. O príncipe amava a Deus assim? Ele reconheceu Deus no humilde Jesus? Infelizmente, não. Ele pode alegar ter guardado os mandamentos relacionados ao seu próximo; mas quebrou a lei completamente quando o primeiro de todos os mandamentos estava em questão. Aos seus olhos, suas riquezas tinham mais valor do que Jesus.

Com grande dificuldade um homem rico entra no reino de Deus, pois é tão difícil ter riquezas sem que o coração seja absorvido por elas até ao ponto da exclusão de Deus. Para aqueles que pensavam nas riquezas como sinais do favor de Deus, tudo isso parecia muito perturbador, mas a verdade é que a salvação é impossível ao homem, embora possível a Deus. Isso nos traz de volta ao ponto que está em questão. O reino não pode ser conquistado, muito menos a vida eterna. Todos devem ser recebidos como dádivas de Deus. E se, ao receber a dádiva, outras coisas são renunciadas, há uma recompensa abundante tanto agora como no mundo vindouro.

Essa palavra de nosso Senhor, registrada nos versículos 29 e 30, é muito abrangente. No tempo presentemuito mais para todos os que renunciaram as boas coisas da Terra por causa do reino. Qualquer dificuldade que possamos ter em entender isso é causada por nossa incapacidade de avaliar corretamente os favores espirituais que compõem o “muito mais”. Paulo ilustra isso ao nos dizer, em Filipenses 3, como ele calculou a riqueza espiritual derramada em seu seio depois que considerou “tudo como perda” (ARA). Como um camelo que, despido dos trapos que carregava, tivesse passado pelo fundo de uma agulha, apenas para se ver carregado de favores do outro lado.

Tudo isso soaria muito estranho para a mente judaica, mas o fato, que explicava tudo, era que o Filho do Homem não estava indo neste momento para tomar o reino, mas indo a Jerusalém para morrer. Então, novamente, neste ponto, Jesus falou da morte que estava bem diante d’Ele. Os profetas haviam indicado que essa era a maneira pela qual Ele entraria em Sua glória, embora os discípulos não conseguissem entendê-la. E embora Ele assim os tenha instruído novamente, eles falharam em aceitá-la. Tal é o poder com que noções preconcebidas podem atingir a mente.

O Senhor estava agora em Sua jornada final para Jerusalém, e Ele Se aproximou de Jericó pela última vez. O cego O interceptou com fé. A multidão disse-lhe que Jesus Nazareno estava passando, e imediatamente se dirigiu a Ele como o Filho de Davi e pediu misericórdia. O rico príncipe perguntou o que deveria fazer, quando o Senhor acabara de falar do reino como sendo recebido. O mendigo cego respondeu o que ele queria receber quando o Senhor perguntou o que Ele deveria fazer. Nenhuma ação aconteceu no caso do príncipe: uma ação foi completada imediatamente no caso do mendigo. O contraste entre os dois casos é muito claro.

O mendigo recebeu sua visão e o Senhor lhe disse: “a tua fé te salvou”. Isso mostra que a ação foi mais profunda do que a abertura dos seus olhos. Ele se tornou um seguidor do Jesus que estava indo para Jerusalém e para a cruz; e havia glória a Deus, tanto da parte dele como da parte de todos os espectadores. Um caso igualmente distinto de bênção espiritual veio ao encontro do Senhor quando Ele entrou e passou por Jericó.

Se o evangelho de Lucas neste ponto for comparado com Mateus 20:29-34 e Marcos 10:46-52, uma discrepância séria se torna evidente. Lucas definitivamente coloca a cura do cego quando Jesus Se aproxima de Jericó_,_ e os outros dois evangelistas definitivamente O colocam como _saindo_ de Jericó. Com o nosso conhecimento limitado, parecia impossível, neste ponto, conciliar os diferentes relatos. Mas durante os últimos anos os arqueólogos cavaram a área de Jericó e descobriram os alicerces de duas Jericós; uma, a antiga cidade original, e outra, a Jericó Romana, a uma curta distância. O cego estabeleceu o seu lugar onde mendigava entre as duas! Lucas, escrevendo para os gentios, naturalmente tem a Jericó romana em sua mente. Os outros evangelistas, muito naturalmente, estão pensando na cidade original. Mencionamos isso para mostrar como, muito simplesmente, o que parece uma objeção insuperável desaparece quando conhecemos todos os fatos.

LUCAS 19

Somente Lucas nos fala sobre a conversão de Zaqueu, que se encaixa de forma tão impressionante com o tema de seu evangelho. O publicano, embora tão desprezado pelos líderes de seu povo, era um objeto adequado para a graça do Senhor, e ele foi marcado pela fé que está pronta para recebê-la. Zaqueu não tinha necessidades físicas ou materiais; Este era um caso de necessidade espiritual apenas. As pessoas colocaram a denominação “pecador” sobre ele. Era uma verdadeira denominação e Zaqueu sabia disso, e isso provocou nele uma tentativa de se justificar relembrando suas benevolências e escrupulosa honestidade. No entanto, Jesus colocou a bênção dele na base apropriada, proclamando-o filho de Abraão – isto é, um verdadeiro filho da fé – e Ele mesmo como sendo o Único a vir buscar e salvar o que se havia perdido. Zaqueu era em si mesmo um homem perdido, mas era um crente, e assim a salvação chegou a ele naquele dia. Exatamente na mesma base chegou a cada um de nós desde aquele dia.

O Senhor mostrou aos fariseus que o reino já estava em seu meio em Sua própria Pessoa; Ele também havia novamente dito a Seus discípulos sobre Sua iminente morte e ressurreição. No entanto, eles ainda nutriam expectativas quanto ao aparecimento imediato do reino em glória. Então o Senhor acrescentou a parábola, dos versículos 11-27, como mais uma correção para esses pensamentos deles. O tempo do reino viria, quando todos os Seus inimigos seriam destruídos; mas primeiro vem um período de Sua ausência, quando a fidelidade e diligência de Seus servos seriam testadas. Para cada servo, a mesma quantia é confiada, de modo que a diferença no resultado surgiu de sua diligência e habilidade, ou de alguma outra forma. De acordo com a diligência de cada um, foram recompensados no dia do reino. O servo, que não fez nada, apenas mostrou que ele não conhecia realmente o seu Senhor. Como resultado, não só não teve recompensa, mas sofreu perda.

Este é outro lembrete de que a graça nos chama para um lugar de responsabilidade e serviço, e que o nosso lugar no reino dependerá da diligência que temos empregado com aquilo que nos foi confiado.

Tendo falado a parábola das minas, o Senhor ia caminhando adiante com Seus discípulos, subindo em direção a Jerusalém, e chegando a Betfagé e Betânia, Ele enviou a buscar o jumentinho, no qual Ele fez Sua entrada na cidade, de acordo com a profecia de Zacarias. O jumentinho era chucro, pois nenhum homem havia se sentado nele e, consequentemente, estava preso sob restrição. Foi solto da contenção, mas apenas para que Ele pudesse sentar-Se sobre ele. Sob a mão poderosa, ele estava perfeitamente contido. Uma parábola disto, de como a graça nos liberta da escravidão da lei.

Embora o reino não era para ser estabelecido em glória neste momento, mesmo assim Ele Se apresentou dessa maneira tão definidamente a Jerusalém como seu legítimo Rei enviado por Deus. Seus discípulos ajudaram nisso e, quando se aproximaram da cidade, começaram a louvar a Deus e a se regozijar. João 12:16 nos diz claramente que naquele momento eles não entendiam realmente o que estavam fazendo, mas é evidente que o Espírito de Deus tomou posse de seus lábios e os guiou em suas palavras. Eles O aclamaram como o Rei, e eles falaram de “paz no céu e glória nas alturas”.

Na encarnação, os anjos haviam celebrado “paz na Terra”, pois o Homem em Quem Deus Se comprazia havia aparecido e celebravam todo o resultado de Sua obra. Mas agora estava claro que a morte estava diante d’Ele e que Sua rejeição implicaria um período de qualquer coisa, menos paz na Terra. No entanto, o primeiro efeito de Sua obra na cruz seria estabelecer a paz na mais alta de todas as Cortes – no céu – e manifestar a glória nas maiores alturas, subindo Ele mesmo até lá em triunfo. Esta nota de louvor teve que ser soada nesta circunstância. Deus poderia ter feito as pedras clamarem, mas ao invés disso Ele usou os lábios dos discípulos, embora eles proferissem palavras sem plena inteligência do seu significado.

Agora vem um contraste impressionante. Ao se aproximarem da cidade, os discípulos se regozijaram e clamaram bendições ao rei. O próprio Rei chorou pela cidade! Em João 11:35, a palavra usada indica lágrimas silenciosas; aqui a palavra usada indica irromper em lamentação, de forma visível e audível. O lamento de Jeová sobre Israel, como registrado no Salmo 81:13, reaparece aqui, apenas grandemente acentuado ao se aproximarem do maior de todos os seus terríveis pecados. Jerusalém não conhecia as coisas que pertenciam à sua paz, por isso a paz na Terra era impossível naquele tempo, e o Senhor previu e predisse sua violenta destruição nas mãos dos romanos, que aconteceu quarenta anos depois. O Oriente do alto visitou-os, e eles não conheciam o tempo de sua visitação.

Como consequência, tudo em Jerusalém estava em desordem. Entrando na cidade, o Senhor foi direto ao seu próprio centro e no templo encontrou o mal estabelecido. A casa de Jeová, destinada a ser uma casa de oração para todas as nações, era apenas um covil de ladrões, de modo que qualquer estranho, chegando lá como alguém que buscava a Deus, era enganado na obtenção dos sacrifícios necessários. Assim, ele seria repelido do verdadeiro Deus, em vez de ser atraído por Ele. Desse modo, nas mãos dos homens, a casa de Deus havia sido totalmente pervertida quanto ao seu uso apropriado. Além disso, os homens que detinham a autoridade na casa eram potencialmente homicidas, como mostra o versículo 47: assim, ela se tornara reduto de homicidas, bem como covis de ladrões. Poderia alguma coisa ser pior do que isso? Não é de se admirar que Deus os tenha varrido pelos romanos quarenta anos depois!

LUCAS 20

Ainda nos recintos do templo onde o Senhor ensinou diariamente durante a última semana de Sua vida, também não é surpreendente que Ele tenha entrado em conflito com eles. Todo este capítulo está ocupado com detalhes do conflito. Os principais dos sacerdotes e os escribas começaram o conflito e, no final, foram deixados em silêncio e desmascarados.

Eles começaram desafiando Sua autoridade. Eles eram as pessoas com autoridade ali, e para eles Ele era apenas um novo “Profeta” de Nazaré. A pergunta deles supunha que tinham a capacidade de julgar as credenciais do Senhor, se Ele as expusesse; Por isso, Ele os convocou a resolver a questão preliminar quanto às credenciais de Seu precursor, João. Isso imediatamente os colocou em um dilema, pois a resposta que eles desejavam dar teria sido ressentida pelo povo. Eles eram oportunistas buscando popularidade, então alegaram ignorância. Para homens como esses, o Senhor não apresentaria Sua autoridade. Em vez disso, Ele começou a falar com toda a autoridade que a onisciência concede, e logo sentiram o poder dela. Não poderia haver dúvida sobre Sua autoridade quando o conflito verbal cessasse.

Na parábola, que ocupa os versículos 9-16, Ele estabeleceu com grande clareza a posição exata das coisas naquele momento. A parábola é lida como uma continuação das declarações históricas feitas em 2 Crônicas 36:15-16. Lá, em 2 Crônicas, era Deus apelando por meio de “Seus mensageiros, madrugando, e enviando-lhos”; mas todos foram zombados e escarnecidos até “que mais nenhum remédio houve” e “fez subir contra eles o rei dos caldeus”. Aqui em Lucas a história é levada um passo adiante e o “Filho Amado” é enviado, apenas para ser expulso e morto. Daí um castigo pior do que os caldeus viria sobre eles. O salmista havia profetizado que a rejeitada “Pedra” deveria se tornar a Cabeça da esquina, e Jesus acrescentou que todos os que caíssem sobre aquela Pedra, ou sobre quem Ela caísse, seriam destruídos. Eles estavam naquele momento tropeçando na Pedra, como Romanos 9:32 declara. A queda da Pedra sobre eles, e sobre os poderes dos gentios, ocorrerá no Seu segundo Advento, como mostra Daniel 2:34.

Os principais sacerdotes e escribas sentiram o ponto e a autoridade de Suas palavras, como vemos no versículo 19, mas foram apenas estimulados a uma oposição mais determinada; e enviaram homens de astúcia e engano para apanhá-Lo em Suas palavras, se possível. Eles vieram com a questão de pagar tributo a César; e nisso os fariseus e os herodianos se uniram, afundando suas animosidades no ódio comum ao Senhor.

A pergunta do Senhor: “Por que Me tentais?” mostrou que Ele estava completamente ciente de sua astúcia. Seu pedido por um denário (ARA) revela Sua própria pobreza. A inscrição na moeda foi uma testemunha da sujeição deles a César. Sua resposta, assim, foi que eles deviam dar a César seus direitos e a Deus os Seus direitos. Foi porque eles não tinham prestado a Deus as coisas que eram d’Ele que César tinha adquirido os direitos de conquista sobre eles. Tudo isso era tão indubitável, quando apontado, que esses interrogadores astutos foram silenciados.

A questão com a qual os saduceus pensavam em apanhar o Senhor baseava-se na ignorância. Sem dúvida, muitas vezes haviam confundido os fariseus com isso, mas estes não tinham mais luz do que os saduceus no ponto essencial que o Senhor tornara tão claro. Ele contrastou “este mundo” e “o mundo vindouro”, usando realmente a palavra que significa “século” (ou “era”). Ora, será a porção de alguns “alcançar a era vindoura” (ARA) como homens vivos na Terra, sem passar pela morte e ressurreição; mas aqueles que vão “alcançar a era vindoura e a ressurreição**”** entrarão em condições completamente novas de vida. Eles serão imortais como os anjos, e o casamento não terá aplicação para eles. O Senhor estava aqui começando a trazer **“à luz a vida e a incorruptibilidade”** (2 Tm 1:10 – JND) e, como resultado, a questão dos saduceus, que por sua ignorância parecia tão incontestável, tornou-se simplesmente absurda.

O Senhor prosseguiu para provar a ressurreição em Êxodo 3:6. Se os patriarcas estavam vivos para Deus, séculos depois que eles estavam mortos para este mundo, sua ressurreição final era uma certeza. Assim, Ele respondeu não apenas a tola questão dos saduceus, mas a incredulidade que estava por trás de sua pergunta. E Ele respondeu com tamanha autoridade que até um escriba foi levado a se manifestar em admiração e aprovação, e todos eles temiam fazer mais perguntas.

O Senhor então lhes fez Sua grande pergunta, baseada no Salmo 110. Mateus registra que nenhum homem foi capaz de Lhe responder uma palavra. Nenhuma resposta era possível, exceto para a fé que percebia a glória divina do Cristo, e eles não tinham fé. Eles estavam em silêncio, em teimosa incredulidade. Responder à Sua pergunta eles não puderam; perguntar-Lhe qualquer outra coisa eles não ousaram.

Apenas permaneceu para o Senhor desmascarar esses homens maus, e isso Ele fez em poucas palavras, conforme registrado nos dois versículos que encerram o capítulo. Eles eram hipócritas do tipo mais desesperado, usando a religião como um manto para encobrir seu egoísmo e sua agressiva ganância. Ele os desmascarou e pronunciou sua condenação. Ele não falou de uma mais longa condenação, como se o julgamento fosse delimitado pelo tempo e não eterno. Mas Ele falou de maior condenação, mostrando que o julgamento será diferente quanto à sua gravidade. Eles sofrem um “juízo muito mais severo” (ARA).

LUCAS 21

Então Ele ergueu os olhos, e eis alguns desses homens ricos lançando ostensivamente seu dinheiro para o tesouro do templo, e entre eles veio uma pobre viúva que lançou suas duas moedas. Não devemos permitir que a divisão dos capítulos separe em nossa mente esses versículos iniciais dos últimos dois de Lucas 20. A viúva era presumivelmente uma daquelas cuja “casa” havia sido devorada, mas em vez de se lamentar, ela lançou suas últimas duas moedas no tesouro do templo. Sob essas circunstâncias, sua oferta foi realmente grande, e o Senhor declarou ser assim. Ela foi ao limite máximo; lançando no tesouro toda sua posse_._

Nem devemos dissociar desse tocante incidente os versículos que se seguem, particularmente no versículo 6. A viúva expressou sua devoção a Deus ao lançar suas duas moedas na coleta para a manutenção da estrutura do templo; ainda assim o Senhor prossegue predizendo a destruição total do templo. Já tinha sido substituído pela presença do Senhor. Deus estava em Cristo, não no templo de Herodes. Em seu entendimento a viúva estava, como poderíamos dizer, desatualizada; no entanto, isso não manchou a aprovação do Senhor de sua oferta. Ele realmente aprecia devoção de todo o coração, mesmo que sua expressão não seja marcada por plena inteligência. Isso deve ser um grande conforto para nós.

Lucas agora nos dá o discurso profético do Senhor, registrando a parte em que especialmente respondeu à pergunta dos discípulos, conforme registrado no versículo 7. Como o relato de Mateus mostra, tanto a pergunta deles quanto a resposta do Senhor continham muito mais do que aquilo que Lucas registra. Aqui a questão é quanto ao tempo da derrubada do templo e o sinal disso. A resposta divide-se em duas partes: os versículos 8-24 falam de eventos que levaram à destruição e derrubada de Jerusalém pelos romanos; versículos 25-33, falam da Aparição do Filho do Homem no final dos tempos.

É muito perceptível como o Senhor apresenta toda a questão, não como uma massa de detalhes, apelando à nossa curiosidade, mas como previsões que soam uma nota de advertência, e transmitem instruções de suma importância para Seus discípulos. Tudo é declarado de maneira a atrair nossa consciência e não nossa curiosidade.

A primeira parte do discurso, versículos 8-19, está ocupada com instruções muito pessoais aos discípulos. O Senhor de fato faz as seguintes previsões:

  1. O surgimento de falsos Cristos,

  2. Guerras e tumultos, juntamente com acontecimentos anormais no mundo físico ao redor,

  3. A chegada de amarga oposição e perseguição, até a morte.

Mas em cada caso, Seus discípulos devem ser prevenidos por Seus avisos. Eles não são, nem por um momento, para serem enganados por falsos Cristos, ou segui-los. Eles não devem ter medo dos movimentos violentos dos homens, nem imaginar que essas convulsões signifiquem que o fim está vindo imediatamente – pois este é o que “logo” significa aqui (v. 9). Eles devem aceitar a perseguição como uma oportunidade para testemunho e, ao testificar, não devem confiar em uma defesa preparada, mas na sabedoria sobrenatural a ser concedida a eles quando o momento chegar.

O versículo 18 é evidentemente destinado a transmitir o modo pessoal e íntimo em que Deus cuidaria deles. As palavras finais do versículo 16 mostram que isso não significa que todos eles escapariam; mas, mesmo que a morte os levasse, tudo seria restaurado na ressurreição. Pela paciente perseverança eles vencem, seja na vida ou na morte. Este parece ser o significado do versículo 19. Podemos ver no livro dos Atos como essas coisas foram cumpridas nos apóstolos.

Então, nos versículos 20-24, Ele prediz a desolação de Jerusalém. Nenhuma palavra aparece aqui sobre o estabelecimento da “abominação da desolação”, pois isso é apenas para acontecer no fim dos tempos dos gentios: todas as coisas que o Senhor especifica foram cumpridas quando Jerusalém foi destruída pelos romanos. Então a cidade estava cercada de exércitos. Então aqueles que acreditaram nas palavras de Jesus fugiram para as montanhas e assim escaparam dos horrores do cerco. Então ali começaram os “dias de vingança” para o judeu, que não cessará para eles até que tudo o que está previsto seja cumprido. Então começou o longo cativeiro que persistiu, e persistirá, com Jerusalém sob os pés das nações, até que os tempos dos gentios terminem. Aqueles tempos começaram quando Deus levantou Nabucodonosor, que desapossou a última linhagem do rei de Davi, e eles terminarão pelo esmagamento do domínio gentio na Aparição de Cristo.

Consequentemente, o versículo 25 nos leva diretamente ao tempo do fim, e fala de coisas que precederão Seu advento. Haverá sinais nas regiões celestiais e na Terra, angústia e perplexidade; “mar e ondas” sendo expressões figurativas das massas da humanidade em um estado de violenta inquietação e agitação. Como resultado, os homens estarão “prontos para morrer pelo medo e expectativa do que está por vir” (JND). Em vista do estado de coisas que prevalece na Terra, como escrevemos, não é difícil conceber a condição das coisas que o Senhor prediz.

Este é o momento em que Deus vai abalar os céus e a Terra, como predisse Ageu; e quando somente as coisas que não podem ser abaladas permanecerão. Tudo levará à pública Aparição do Filho do Homem em poder e grande glória. O dia da Sua pobreza acabará, assim como o dia da Sua paciência; e o dia do Seu poder, do qual fala o Salmo 110, terá chegado plenamente. Antes de Sua vinda, os corações dos homens não convertidos se encherão de medo: quando Ele vier, seus piores temores serão concretizados, e “todas as tribos da Terra se lamentarão por causa d’Ele” (Ap 1:7 – JND).

Mas para os Seus santos, Sua vinda terá outro aspecto, como o versículo 28 manifesta alegremente. Para eles, significa uma redenção final, quando toda a criação será libertada da escravidão da corrupção. Sendo assim, os primeiros sinais de Seu advento são para nos encher de uma alegre antecipação. Devemos “olhar para cima”, pois o próximo movimento que realmente conta virá da mão direita de Deus, onde Ele está sentado. Devemos “levantar nossas cabeças”, e não deixá-las deprimidas ou com medo. As mesmas coisas que assustam o mundo são para encher o crente com o otimismo da santa expectativa.

Em seguida vem a curta parábola da figueira. É dita ser “uma parábola”, mas note, não uma mera ilustração. A figueira representa o judeu nacionalmente. Há séculos que ele está morto em nível nacional, e quando finalmente há sinais de reavivamento nacional com eles e sinais de reavivamento também com outras “árvores” de nacionalidades antigas, podemos saber que o “verão” milenar está próximo. Até que esse tempo chegue, não passará “esta geração” – por esse termo o Senhor indicou, cremos, aquela “geração perversaem quem não há fidelidade” (TB), da qual Moisés falou em Deuteronômio 32:5, 20. Quando o reino for estabelecido, aquela geração terá desaparecido.

O breve relato de Lucas da profecia do Senhor termina com as solenes palavras em que Ele afirmou a verdade e a confiabilidade de Suas palavras. Cada palavra dos Seus lábios tem algo nela, algo para ser cumprido, e é mais estável que os céus e a Terra. Assim, o versículo 33 fornece o impressionante pensamento de que as palavras de Seus lábios são mais duradouras do que as obras de Suas mãos.

Ele encerra com outro apelo às consciências de Seus discípulos e às nossas também. Sem dúvida, esses três versículos, 34, 35, 36, têm aplicação especial para os santos que estarão na Terra pouco antes de Sua Aparição, mas eles têm uma grande voz para o crente hoje. Uma multiplicidade de prazeres nos rodeia, e podemos facilmente nos sobrecarregar com o excesso deles. Por outro lado, nunca houve mais e maiores perigos no horizonte, e nosso coração pode estar cheio de pressentimentos, de modo a perdemos de vista o dia que está chegando. É muito possível ocupar-se tanto com os feitos dos ditadores e com o progresso dos movimentos mundiais que a vinda do Senhor seja obscurecida em nossas mentes. A palavra para nós é: “Vigiai pois em todo o tempo, orando”. Então estaremos completamente despertos e prontos para saudar o Senhor quando Ele vier.

Nos versículos finais do capítulo, Lucas nos lembra de que Ele, que desse modo previu a Sua vinda novamente, ainda era o Rejeitado. Durante o dia, por toda aquela última semana, Ele diligentemente proferiu a Palavra de Deus: à noite, não tendo lar, Ele permaneceu no Monte das Oliveiras.

LUCAS 22

Quando começamos a ler este capítulo, chegamos às cenas finais da vida de nosso Senhor. A Páscoa não foi apenas uma testemunha permanente da libertação de Israel do Egito, mas também uma figura do grande Sacrifício que ainda estava por vir. Agora, finalmente, o clímax se aproximava, e “Cristo, nossa Páscoa” deveria ser sacrificado por nós precisamente na época da Páscoa. Os líderes religiosos estavam planejando como poderiam matá-Lo, apesar do fato de que muitos do povo O viam com favor. Satanás inspirou o ódio deles, e foi ele quem apresentou a eles uma ferramenta para realizar seus desejos.

João, no seu evangelho, desmascara Judas para nós antes que o fim seja alcançado. Em seu décimo segundo capítulo, ele nos diz que, consumido pela cobiça, ele se tornou um ladrão. João também nos diz em seu décimo terceiro capítulo o momento exato em que Satanás entrou em Judas. Lucas relata esse fato terrível de uma maneira mais geral; e mostra que o príncipe dos poderes das trevas considerou que executar a morte de Cristo era uma tarefa de tal importância que não deveria ser delegada a um poder menor: ele próprio se encarregaria do assunto. No entanto, ele empreendeu a tarefa para sua própria derrota. O pacto entre Judas e os líderes religiosos foi facilmente estabelecido. Eles foram consumidos pela inveja e Judas pelo amor ao dinheiro.

Durante muitos séculos a Páscoa foi observada com maior ou menor fidelidade, e agora, em seu pleno significado, era observada pela última vez. Em vinte e quatro horas, a luz da Páscoa empalideceu diante do brilho daqu’Ele a Quem ela representava, quando o verdadeiro Cordeiro de Deus morreu na cruz. É um fato notável que a última vez em que foi celebrada em seu pleno significado, estava presente para participar dela aqu’Ele que a instituiu – o Homem Perfeito e Santo, que era o Companheiro de Jeová. Ele ordenou que a Páscoa fosse preparada, e Ele decidiu o exato lugar onde deviam comê-la. O tempo, a maneira, o lugar, eram todos da Sua designação. A escolha não está com os discípulos, mas com Ele, como mostra o versículo 9.

A presciência do Senhor é notavelmente manifestada no versículo 10. Levar a água era tarefa das mulheres; um homem carregando um cântaro de água era uma visão muito incomum. No entanto, Ele sabia que haveria um homem realizando esse ato incomum e que Pedro e João o encontrariam quando entrassem na cidade. Ele sabia também que o “dono da casa” (ARA) responderia à mensagem enviada pelos discípulos em nome do “Mestre”. Sem dúvida, ele reconhecia o Mestre como sendo seu Mestre; em outras palavras, ele era um dos piedosos em Jerusalém que reconhecia Suas reivindicações, e o Senhor sabia como colocar Sua mão sobre ele. Este homem teve o privilégio de mobiliar um aposento para o uso daqu’Ele que não tinha aposento próprio, e quando a hora chegou, assentou-Se com Seus discípulos.

No relato que Lucas faz, a distinção entre a ceia pascal e a ceia que Ele instituiu é muito clara; os versículos 15-18 falam de uma e os versículos 19-20 de outra. As palavras do Senhor quanto à Páscoa indicam o encerramento daquela velha ordem de coisas. Seus sofrimentos significariam o seu cumprimento, e quando um remanescente poupado de Israel entra finalmente na bem-aventurança do Milênio, será como protegido pelo sangue de Cristo. Quanto ao cálice (v. 17), isso não parece ter sido parte da Páscoa instituída por meio de Moisés, e o Senhor aparentemente não bebeu dele. Em vez disso, Ele indicou que Seu dia de regozijo, simbolizado pelo fruto da videira, só seria alcançado no reino vindouro.

Então instituiu a Sua própria ceia em memória de Sua morte; o pão simbolizando Seu corpo, o cálice de vinho, Seu sangue derramado. O relato é muito breve e, para o significado completo de tudo isso, temos que ir a 1 Coríntios 10 e 11. Recordação foi o que o Senhor enfatizou no momento, e em vista de Sua longa ausência, podemos ver a importância disso. Através dos séculos, o memorial de Sua morte esteve conosco e o testemunho permanente de Seu amor.

Os versículos que se seguem (vs. 21-27) testemunham a loucura e a fraqueza que se encontravam entre os discípulos. A mão do traidor estava sobre a mesa, e Ele sabia disso, embora o resto dos discípulos não o percebesse. Havia também conflitos entre eles, cada um desejando o lugar mais importante, e isso exatamente quando seu grande Mestre estava prestes a tomar o lugar mais baixo. Tal é, infelizmente, o coração do homem, até mesmo dos santos. No entanto, serviu para destacar muito claramente a diferença fundamental entre o discípulo e o mundo. A grandeza mundana é expressa e mantida tomando-se um lugar de senhor: a grandeza Cristã é encontrada ao tomar o lugar de servo. Nessa grandeza, o próprio Jesus era preeminente. Poucas palavras são mais tocantes do que isso – “Eu porém, entre vós Sou como aqu’Ele que serve”. Essa tinha sido Sua vida de perfeita graça; e dessa forma, em suprema medida, Sua morte estava prestes a acontecer.

Também é muito tocante observar como Ele falou aos discípulos nos versículos 28-30. Eles eram de fato insensatos, e seu espírito se distanciava muito do d’Ele; mesmo assim, com que benevolência que Ele trouxe à luz o bom traço que os caracterizara. Eles estavam firmemente ligados a Ele. Apesar de suas tentações, culminando em Sua rejeição, eles continuaram com Ele. Isso Ele nunca esqueceria, e haveria uma recompensa abundante no reino. No dia vindouro Ele vai tomar o reino para Seu Pai, e o toma por seus santos, e estes Seus discípulos terão um lugar muito especial de proeminência. À luz desse gracioso pronunciamento, eles certamente devem ter percebido quão mesquinhas e repugnantes haviam sido suas disputas anteriores por uma posição de destaque. E, talvez possamos sentir o mesmo.

Em seguida, nos versículos 31-34, vem a advertência especial do Senhor a Pedro. Neste momento ele estava pensando e agindo na carne, então Jesus usou seu nome de acordo com a carne, e ao falar seu nome repetidamente transmitiu a gravidade de Sua advertência. A confiança própria marcava Pedro, assim como o desejo de preeminência, e isso abriu a porta a Satanás; contudo, a intercessão do Senhor prevaleceria, e havia trigo ali e não apenas palha. Este trigo permaneceria quando a peneiração terminasse.

Os quatro versículos que se seguem, 35-38, foram dirigidos a todos os discípulos. Eles tinham que testemunhar que possuíam uma suficiência absoluta como fruto de Seu poder, embora enviados sem recursos humanos; e Ele notificou que com Sua morte e partida outra ordem de coisas sobreviria. Os homens O contariam entre os transgressores deste mundo, mas as coisas concernentes a Ele se cumpririam em outro mundo. Ele seria exaltado à glória, e Seus discípulos foram deixados como Suas testemunhas, tendo que retomar as circunstâncias cotidianas deste mundo. Sua resposta a essas palavras mostrou que provavelmente estavam perdendo o espírito do que Ele disse, agarrando-se a um detalhe literal; então, por enquanto, Ele deixou isso de lado.

Até agora tem sido o trato de Seu amor com os Seus; agora vemos a perfeição de Sua Humanidade manifestada no Getsêmani. Ele enfrentou, como diante do Pai, toda a amargura daquele cálice de juízo que Ele tinha de beber, e Sua total perfeição é vista pelo fato de que, embora tendo Se retraído dele, devotou-Se ao cumprimento da vontade do Pai, o que quer que isso Lhe custasse. Lucas, distinto dos outros evangelistas, nos fala da aparição do anjo para fortalecê-Lo. Isso enfatiza a realidade da Sua Humanidade, de acordo com o caráter especial deste evangelho. Assim também o Seu suor, sendo como grandes gotas de sangue, é mencionado apenas neste evangelho. O horror daquilo que estava diante d’Ele foi experimentado em comunhão com o Pai.

Com o versículo 47 as últimas cenas começam; e agora tudo é calma e graça com o Senhor: tudo é confusão e agitação com Seus amigos, os Seus adversários, e até com os Seus juízes. A comunhão no jardim levou à calma na hora da grande provação. Judas alcançou as alturas da hipocrisia ao trair seu Mestre com um beijo. Pedro usou uma daquelas duas espadas a que eles acabaram de se referir, em violência imprudente e incontrolada. O que Pedro fez em sua violência o Senhor prontamente desfez em Sua graça. A violência deveria ser deixada para a multidão com as espadas e varapaus. Era a hora deles e a hora em que o poder das trevas deveria ser exibido. Nesse sombrio cenário, o Senhor mostrou Sua graça.

O relato da queda de Pedro segue. O caminho para isso fora preparado por seu desejo anterior pelo primeiro lugar, sua confiança própria e sua ação violenta. Agora ele seguia de longe, e logo se achou entre os inimigos de seu Mestre. Satanás estabeleceu a armadilha com plena habilidade. Primeiro a criada e depois os outros dois empregados pressionaram sua identificação com Ele, levando-o a negações que aumentavam em ênfase; embora Lucas não nos diga que ele tenha praguejado e jurado. Isso afinal era incidental; o essencial era que ele negou seu Senhor.

Precisamente naquele momento, exatamente como Jesus havia previsto, o galo cantou; e então o Senhor Se virou e olhou para Pedro. Podemos não saber exatamente o que esse olhar transmitiu, mas isso falou com tal intensidade ao discípulo caído que ele saiu de entre os inimigos de seu Mestre com lágrimas amargas. Judas estava cheio de remorso, mas não lemos que ele chorou. O choro amargo de Pedro foi uma testemunha de que, afinal, ele amava seu Senhor e que sua fé não iria falhar. A oração e o olhar estavam começando a provar sua eficácia.

Este evangelho deixa claro que o julgamento de Jesus foi dividido em quatro partes. Primeiro, houve o exame perante os principais sacerdotes e escribas, enquanto procuravam algum pretexto plausível para condená-Lo à morte. Esse relato preenche os versículos finais do capítulo, e é feito com brevidade. É muito claro, no entanto, que eles O condenaram por Sua própria confissão clara de Quem Ele era. Eles O desafiaram a ser o Cristo, e a resposta do Senhor mostrou que Ele sabia que eles estavam firmes em sua incredulidade e em sua determinação de condená-Lo. Ainda assim, Ele afirmou ser o Filho do Homem, que deveria empunhar o próprio poder de Deus, e isso eles interpretaram como significando que Ele também deveria afirmar ser o Filho de Deus. De fato, Ele era, e Sua resposta, “Vós dizeis que Eu Sou”, foi um enfático “sim”. Ao afirmar ser Ele o Cristo, o Filho do Homem, o Filho de Deus, eles O condenaram à morte,

LUCAS 23

Então, na segunda parte do Seu julgamento, O levaram a Pilatos para obterem a sanção romana para a execução desta sentença. Aqui eles mudaram completamente de terreno e O acusaram de ser reacionário e rival de César. Jesus confessou ser o Rei dos judeus, mas Pilatos declarou que Ele não tinha culpa alguma. Isso pode parecer uma declaração surpreendente, mas Marcos nos dá uma visão do que acontecia nos bastidores quando nos conta que Pilatos sabia que o ódio feroz dos líderes religiosos era inspirado pela inveja. Por isso, ele começou a recusar a ser a ferramenta de seu rancor, e se aproveitou da ligação do Senhor com a Galileia para enviá-Lo a Herodes. A acusação, “Ele alvoroça o povo” (ARA), era de fato verdadeira; mas Ele os incitava a Deus e não contra César.

Então, terceiro, houve a breve aparição do Senhor diante de Herodes, que estava ansioso para vê-Lo, esperando testemunhar algo sensacional. Aqui novamente os principais sacerdotes e escribas O acusavam veementemente, mas na presença daquele homem perverso, a quem Ele havia anteriormente caracterizado como “essa raposa”, Jesus não respondeu nada. Seu silêncio cheio de dignidade só levou Herodes e seus soldados a abandonarem toda a pretensão de administrar a justiça e desceram ao escárnio e à ridicularização. Na Sua humilhação foi tirado o Seu julgamento.

Por isso Herodes devolveu-O a Pilatos, e aqui começou a quarta e última etapa de Seu julgamento. Mas antes de nos contar sobre os esforços adicionais de Pilatos para aplacar os acusadores e libertar Jesus, Lucas registra como ele e Herodes deram um fim à inimizade que tinham entre si ao condená-Lo naquele dia. A mesma tragédia tem sido repetida desde então. Homens de caráter e visão completamente diferentes encontraram um ponto de unidade em sua rejeição a Cristo. Herodes foi entregue aos seus prazeres e era completamente indiferente: Pilatos, embora possuísse algum senso do que era correto, era um oportunista e, portanto, pronto para fazer o que era errado em prol da popularidade; mas eles chegaram a um consenso aqui.

A história das cenas finais do julgamento é dada com brevidade nos versículos 13-26. Nem uma palavra dita por nosso Senhor é registrada: tudo é apresentado como uma questão entre Pilatos e o povo instigado pelos principais sacerdotes; ainda assim, certas coisas se destacam muito claramente. Em primeiro lugar, dá-se abundante testemunho de que Jesus não tinha culpa alguma. Pilatos afirmou isso durante o interrogatório anterior (v. 4), e agora ele repete duas vezes (vs. 14 e 22), e afirma pela quarta vez como sendo o veredicto de Herodes (v. 15). Deus cuidou de que houvesse testemunho abundante e oficial disso.

Então a fúria irracional cega de Seus acusadores é abundantemente manifestada. Eles simplesmente clamaram por Sua morte. Mais uma vez, a escolha que fizeram, como alternativa à Sua libertação, destaca-se com clareza cristalina. Duas vezes nestes versículos Barrabás é identificado com sedição e homicídio; isto é, ele era a personificação viva das duas formas nas quais o mal é tão frequentemente apresentado nas Escrituras – corrupção e violência; ou, em outras palavras, vemos o poder de Satanás operando, tanto como uma serpente assim como um leão que ruge. Por fim, vemos que a condenação de Jesus foi o resultado da fraqueza do juiz, que “entregou Jesus à vontade deles”. Ele representava o autoritário poder de Roma, mas ele abdicou em favor da vontade do povo.

As cenas da crucificação ocupam os versículos 27-49. Ficamos impressionados com o fato de que por todo o acontecimento, nada transcorreu de maneira comum. Tudo era incomum – sobrenatural, ou chegando ao sobrenatural. Era bastante comum as mulheres que faziam lamentações nos lutos aparecerem nessas ocasiões, mas é totalmente incomum que lhes seja dito que chorem por si mesmas, ou que ouçam uma profecia de um castigo vindouro. O próprio Jesus era o “madeiro verde”, de acordo com o Salmo 1, e talvez Ele estivesse Se referindo à parábola de Ezequiel 20:45-49. Nessa escritura, Deus prediz um fogo sobre cada árvore verde e cada árvore seca. O julgamento caiu sobre o “madeiro verde” quando Cristo sofreu por nossa causa. Quando o fogo irromper na árvore seca dos judeus apóstatas, não se apagará.

Então a oração de Jesus enquanto eles O crucificavam era totalmente inesperada e incomum. Ele desejava que o Pai, com efeito, não considerasse o pecado do povo como um homicídio voluntarioso, para o qual não havia perdão, mas como homicídio não intencional, para que ainda pudesse haver uma cidade de refúgio, mesmo para Seus homicidas. Uma resposta a essa oração foi vista cerca de cinquenta dias depois, quando Pedro em Jerusalém pregou a salvação por meio do Cristo ressurreto, e 3.000 almas correram para o refúgio. A oração era incomum porque era o fruto de compaixões divinas tais como nunca havia sido revelado antes.

As ações das várias pessoas envolvidas em Sua crucificação eram incomuns. Os homens não costumam provocar e insultar até mesmo os piores criminosos que estão sofrendo pena de morte. Aqui todas as classes o fizeram, até mesmo príncipes, soldados e um dos malfeitores que sofreu ao Seu lado. O poder do diabo e das trevas tomou conta de suas mentes.

A inscrição de Pilatos foi inesperada. Tendo O condenado como um falso pretendente à realeza entre os judeus, ele escreveu um título proclamando-O como o Rei dos judeus e, como mostra outro evangelho, ele se recusou a alterá-lo. Isto era Deus prevalecendo sobre tudo.

A conversão repentina do outro ladrão era totalmente sobrenatural. Ele condenou a si mesmo e justificou a Jesus. Tendo justificado a Ele, ele O reconheceu como Senhor e proclamou – praticamente, embora não em tantas palavras – sua crença de que Deus O ressuscitaria dos mortos, a fim de estabelecê-Lo em Seu reino. Ele cumpriu as duas condições de Romanos 10:9, simplesmente crendo que Deus O ressuscitaria dos mortos, ao invés de crer, como nós, que Deus O ressuscitou dos mortos. A fé do ladrão que estava morrendo era uma pedra preciosa de primeira ordem, ao lado da qual a nossa fé hoje perde seu brilho. É muito mais notável crer que algo deve ser feito, quando ainda não tenha sido feito, do que crer que algo está feito, quando ele já foi feito. E, além disso, era muito incomum que um malfeitor quisesse ser lembrado pelo Rei, quando o Seu reino fosse estabelecido. Os malfeitores costumam fugir para as sombras e desejam ser esquecidos pelas autoridades. Seu desejo de ser lembrado mostra sua fé na graça do Senhor sofredor igualmente sua fé em Sua glória vindoura.

A resposta de Jesus à oração do ladrão foi realmente maravilhosa e inesperada! Não apenas no reino vindouro, mas naquele mesmo dia, ele experimentaria a graça que alcançava além da morte, colocando seu espírito resgatado em companhia de Cristo no paraíso. Ora, o paraíso e o terceiro céu são equiparados em 2 Coríntios 12:2-4. Essas palavras do Senhor foram a primeira revelação definida do fato de que, imediatamente após a morte, os espíritos dos santos estão em consciente bem-aventurança com Cristo.

Se tudo era incomum, no lado humano, quando Jesus morreu, havia também manifestações sobrenaturais vindas da mão de Deus, das quais falam os versículos 44 e 45. As três horas mais brilhantes do dia foram escurecidas, pelo Sol sendo velado. Havia algo muito apropriado nisso, pois o verdadeiro “Sol da Justiça” estava levando nosso pecado naquele momento. Também o véu do templo foi rasgado por uma mão divina, significando que o dia do sistema do templo visível tinha acabado, e o caminho para o Santo dos santos estava a ponto de se manifestar – veja Hebreus 9:8. Nosso verdadeiro “Sol” foi velado por um momento, suportando nosso julgamento, para que não houvesse nenhum véu entre nós e Deus.

Lucas não registra o clamor do Salvador quanto ao abandono divino, proferido sobre o tempo em que as trevas passavam, nem o grito triunfante: “Está consumado”, embora ele registre que Ele “clamou em alta voz” (ARA). E então Suas palavras finais foram: “Pai, nas Tuas mãos entrego o Meu espírito”. Nestas palavras finais na cruz, vemos aqu’Ele que, desde o princípio, foi marcado pela oração e submissão à vontade de Deus, concluindo Seu caminho como o Homem perfeito e dependente. Tendo dito isto, Ele entregou o Seu espírito; ainda assim, vemos que Ele é mais do que Homem, pois em um momento havia a voz alta, Seu vigor intacto e no momento seguinte Ele estava morto. Em todos os sentidos, Sua morte foi sobrenatural.

Testemunho disso foi prestado pelo centurião que testemunhou a cena em razão de seu dever oficial. Mesmo as multidões atraídas pela curiosidade mórbida foram tomadas por um alarmante temor e pressentimento, e aqueles que eram Seus amigos recuaram-se à distância. O centurião tornou-se uma quarta testemunha da perfeição de Jesus, unindo-se a Pilatos, Herodes e ao ladrão moribundo.

Os escritos proféticos haviam dito: “Afastaste para longe de Mim amigos e companheiros” (Sl 88:18), mas eles também disseram: “Designaram-Lhe a sepultura … mas com o rico esteve na Sua morte” (Is 53:9 – ARA). Se o versículo 49 nos dá o cumprimento de um, os versículos 50-53 nos dão o cumprimento do outro. Em toda emergência Deus tem em reserva um instrumento para realizar Seu propósito e cumprir Sua palavra. José é mencionado em todos os quatro evangelhos, e João nos informa que até esse ponto ele havia sido um discípulo em oculto por medo dos judeus. Agora ele age com ousadia quando todos os outros se acovardaram, e o novo túmulo imaculado está disponível para o corpo sagrado do Senhor. Nem mesmo pelo mais mínimo contato Ele “viu a corrupção”. Os homens pretendiam o contrário, mas Deus cumpriu serenamente a Sua palavra.

LUCAS 24

Os versículos finais de Lucas 23, e a parte inicial deste capítulo deixa bem claro que nenhum de Seus discípulos antecipou de alguma forma Sua ressurreição. Isso torna o testemunho mais pronunciado e satisfatório. Eles não eram entusiastas e visionários, inclinados a crer em qualquer coisa, mas sim de mente materialista e desanimada, inclinados a duvidar de tudo.

As mulheres são trazidas diante de nós em primeiro lugar. Elas não tinham pensamentos além daqueles adequados a um funeral comum. Suas mentes estavam ocupadas com o sepulcro, Seu corpo e as especiarias e unguentos que eram habituais. O sábado judaico, no entanto, interveio e pôs um fim às suas atividades – isto era de Deus, pois suas atividades eram totalmente desnecessárias, e quando poderiam tê-las retomado, o corpo sagrado não seria encontrado. Em vez do corpo morto, encontraram dois homens em vestes resplandecentes e ouviram de seus lábios que o Senhor agora era “o Vivente” e que não estava entre os mortos. Assim, o primeiro testemunho de Sua ressurreição veio dos lábios dos anjos. Um segundo testemunho foi encontrado nas palavras que Ele mesmo havia falado durante a Sua vida. Ele previu Sua morte e Sua ressurreição. Quando foram lembradas de Suas palavras, se recordaram delas.

As mulheres voltaram e contaram todas essas coisas aos onze; isto é, elas apresentaram-lhes a evidência dos anjos, e das próprias palavras do Senhor, e de seus próprios olhos, quanto ao corpo não estar no sepulcro; mas eles não creram. O cético moderno pode chamar essas coisas de “delírio” (ARA); bem, foi assim que essas coisas aparentavam ser para os discípulos. Pedro, no entanto, com sua impulsividade usual, deu um passo adiante. Ele correu para o sepulcro para ver por si mesmo, e o que viu até então confirmava as palavras delas. No entanto, em sua mente, milagre ao invés de fé, era o que entusiasmava.

Em seguida, somos levados para a tarde do dia da ressurreição, e Lucas nos dá na plenitude o que aconteceu com os dois que estavam indo para uma aldeia, a que Marcos alude nos versículos 12 e 13 de seu último capítulo. O incidente nos dá uma visão muito impressionante sobre o estado de espírito que os caracterizou – e, sem dúvida, eles eram figura do resto.

Cléofas e seus companheiros claramente tinham acabado de se afastar de Jerusalém, se dirigindo para a antiga casa, totalmente desapontados e abatidos. Eles haviam nutrido expectativas muito fervorosas, centradas no Messias, e criam que O haviam encontrado em Jesus. Para eles, Jesus Nazareno foi “Varão profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo”; e nesse ponto evidentemente a fé deles parou. Eles ainda não percebiam n’Ele o Filho de Deus que não podia ser retido pela morte, e assim para eles Sua morte foi o triste fim de Sua história. Eles pensaram que “fosse Ele o que remisse Israel”, mas então, para eles, significava redimi-los pelo poder de todos os seus inimigos nacionais, em vez de redimi-los a Deus pelo Seu sangue. Sua morte destruiu suas esperanças de redenção pelo poder e pela glória. Essa decepção foi o fruto de terem nutrido expectativas que não eram garantidas pela Palavra de Deus. Eles esperavam a glória sem os sofrimentos.

Não poucos crentes podem ser encontrados hoje que se afastaram para o mundo de maneira bastante semelhante. Eles também se afastaram porque ficaram desapontados, e estão desapontados por causa que abraçaram expectativas sem garantias. As expectativas podem ter sido centradas no trabalho Cristão e nas conquistas do evangelho, ou em algum grupo particular ou corpo de crentes com os quais eles estavam ligados, ou talvez em si mesmos e em sua própria santidade e poder pessoal. No entanto, as coisas não aconteceram como esperavam, e estão nas profundezas do desânimo.

Este caso de Cléofas ajudará no diagnóstico dos problemas deles. Em primeiro lugar, como ele, eles têm um pouco de “Israel”, que absorve seus pensamentos. Se Israel tivesse sido redimido, como Cléofas esperava, ele estaria no sétimo céu de deleite. Como não tinha sido assim, ele perdera seu entusiasmo e interesse. Ele teve que aprender que, embora Israel estivesse bem no centro da pequena brilhante cena que sua fantasia havia concebido, não estava no centro da cena de Deus. A cena de Deus é a verdadeira, e seu centro é Cristo ressuscitado dos mortos. Quando Jesus Se juntou a eles, atraiu seus pensamentos e conquistou sua confiança, Ele Se abriu para eles, não para as coisas concernentes a Israel, mas para “o que a Seu respeito constava em todas as Escrituras”. Uma cura infalível para o desapontamento é ter Cristo preenchendo todas as cenas que nossa mente abriga – não a obra, nem mesmo a obra Cristã, nem irmãos, nem mesmo a assembleia, nem o eu em nenhuma de suas muitas formas, mas Cristo.

Mas havia uma segunda coisa. É verdade que essas esperanças não garantidas de Cléofas, que levaram à sua decepção, resultaram de pensar muito em Israel e pouco em Cristo; contudo, essa ênfase errada foi o resultado de sua leitura parcial das Escrituras do Velho Testamento. O versículo 25 mostra que a insensatez e a lentidão de seus corações os haviam levado a negligenciar algumas partes das Escrituras. Eles criam em algumas coisas que os profetas haviam falado – aquelas coisas bonitas, simples, fáceis de serem entendidas quanto à glória do Messias – enquanto colocavam de lado e passavam por cima das previsões de Seus sofrimentos, que sem dúvida pareciam ser para eles misteriosas, peculiares e difíceis de entender. As exatas coisas que haviam evitado eram precisamente o que os livraria da dolorosa experiência pela qual passavam.

Ao falar com eles, três vezes o Senhor enfatizou a importância de toda a Escritura – veja os versículos 25 e 27. Ele então tratou com eles a ponto de fazê-los ver que Sua morte e ressurreição foram a base indicada de toda a glória que ainda está por vir. “Não convinha que o Cristo padecesse essas… ?” Sim, na verdade convinha! E assim como convinha, Ele assim o fez!

Que caminhada deve ter sido essa! No final dela, eles não puderam suportar a ideia de uma separação deste inesperado “Estranho”, e O constrangeram a que permanecesse com eles. Entrando para ficar com eles, Ele necessariamente tomou o lugar que é intrinsecamente Seu. Ele deve ser o Anfitrião, e Líder e também o Abençoador; e então seus olhos foram abertos e eles O reconheceram. Que gozo para seus corações quando de repente eles discerniram seu Senhor ressuscitado!

Mas por que Ele Se afastou da vista deles assim que O reconheceram? Pela mesma razão, sem dúvida, como Ele havia dito no mesmo dia a Maria para não tocá-Lo (ver João 20:17). Ele desejava mostrar desde o início que Ele havia entrado em novas condições pela ressurreição e que, consequentemente, suas relações com Ele deveriam estar em uma nova base. O breve vislumbre que tiveram d’Ele, porém, juntamente com o Seu desdobramento de todas as Escrituras proféticas, havia feito o seu trabalho. Eles foram completamente revolucionados. Uma nova luz havia surgido; novas esperanças haviam surgido em seus corações; o desconsolado afastamento terminara. Embora a noite tivesse caído, eles voltaram a Jerusalém para buscar a comunhão com seus companheiros discípulos. Aflitos de coração, eles tinham procurado solidão: fé e esperança sendo revividas, a companhia dos santos era o deleite deles. É sempre assim com todos nós.

De volta eles vieram contar suas grandes notícias aos onze, mas ao chegaram eles é que foram informados. Os onze sabiam que o Senhor ressuscitara, pois também aparecera a Pedro. As provas de Sua ressurreição estavam rapidamente se acumulando. Eles agora tinham não apenas o testemunho dos anjos, e a lembrança de Suas próprias palavras, e o relato dado pelas mulheres, mas também o testemunho de Simão, quase instantaneamente corroborado pelo testemunho dos dois retornados de Emaús. E o melhor de tudo, enquanto os dois estavam contando sua história, no meio deles, com palavras de paz em Seus lábios, Se apresentou o mesmo Jesus.

No entanto, mesmo assim, eles não estavam totalmente convencidos. Havia n’Ele, em Sua nova condição ressuscitada, algo incomum que ultrapassava o entendimento deles. Eles estavam atemorizados, achando que viram algum espírito. A verdade é que eles viram seu Salvador em um corpo espiritual, conforme fala em 1 Coríntios 15:44. Ele passou a demonstrar este fato a eles de maneira muito convincente. O Seu corpo era de “carne e ossos”. Embora as condições fossem novas, deveria ser identificado com o corpo de “carne e sangue”, no qual Ele havia sofrido, pois as marcas do sofrimento estavam ali em ambas as mãos e pés. E enquanto a verdade estava lentamente surgindo em suas mentes, Ele a tornou ainda mais evidente ao comer diante deles, para que pudessem ver que Ele não era meramente “um espírito”. Assim, a realidade de Sua ressurreição foi totalmente certificada, e o verdadeiro caráter de Seu corpo ressuscitado se manifestou.

Então começou a instruí-los, e em primeiro lugar enfatizou-lhes o que já havia enfatizado com ênfase tripla para os dois em Emaús, que TODAS as coisas escritas a respeito d’Ele nas Escrituras tinham que ser cumpridas, como de fato Ele lhes havia dito antes de Sua morte. Eles deveriam entender que tudo o que aconteceu havia acontecido de acordo com as Escrituras, e não era de forma alguma uma contradição do que havia sido escrito. Então, em segundo lugar, Ele abriu seus entendimentos para que pudessem realmente absorver tudo o que lhes havia sido aberto nas Escrituras. Isto, pensamos, deve ser identificado com aquele sopro de Sua vida ressuscitada, que está registrado em João 20:22. Esta nova vida no poder do Espírito trouxe consigo um novo entendimento.

Então, em terceiro lugar, Ele indicou que, tendo esse novo entendimento, e sendo “testemunhas dessas coisas” (ARA), uma nova comissão lhes seria confiada. Eles não mais deveriam falar de lei, mas que “em Seu nome pregasse o arrependimento e remissão dos pecados”. A graça deveria ser seu tema – o perdão dos pecados por meio do Nome e da virtude de Outro – e a única necessidade por parte do homem é o arrependimento – essa honestidade de coração que leva o homem a assumir seu verdadeiro lugar como pecador diante de Deus. Esta pregação da graça deve ser “em todas as nações”, e não confinada apenas aos judeus, como foi a lei. No entanto, deveria começar em Jerusalém, pois naquela cidade a iniquidade do homem havia atingido seu clímax na crucificação do Salvador; e onde o pecado havia abundado, ali a superabundância da graça era para ser manifestada.

A base, sobre a qual repousa esta comissão de graça, é vista no versículo 46 – a morte e ressurreição de Cristo. Tudo o que acabara de acontecer, que parecera tão estranho e uma pedra de tropeço para os discípulos, era o estabelecimento do fundamento necessário, sobre o qual a superestrutura da graça deveria ser erigida. E tudo estava de acordo com as Escrituras, como Ele enfatizou novamente, dizendo: “Assim está escrito”. A Palavra de Deus comunicou uma autoridade divina a tudo o que havia acontecido e à mensagem da graça que eles deveriam proclamar.

Assim, nos versículos 46 e 47, temos o Senhor inaugurando o presente evangelho da graça, e nos dando sua autoridade, sua base, seus termos, o alcance que ele abrange e as profundezas do pecado e necessidade às quais ele desce.

O versículo 49 nos dá uma quarta coisa, e de modo algum de menor importância – o dom vindouro do Espírito Santo, como o poder de tudo o que é contemplado. As Escrituras foram abertas, seus entendimentos também foram abertos, a nova comissão da graça havia sido claramente dada; mas todos deveriam esperar até que possuíssem o único poder no qual eles poderiam agir, ou usar corretamente o que agora eles sabiam. Lucas encerra o seu evangelho, deixando tudo, se assim podemos dizer, como um fogo bem preparado, esperando que o fósforo seja riscado, o que produzirá uma chama vívida. Ele inicia sua sequência, os Atos, mostrando-nos como a vinda do Espírito riscou o fósforo e acendeu o fogo com resultados maravilhosos.

Acabamos de ver como este evangelho termina com o lançamento do evangelho da graça, que está em flagrante contraste com a maneira pela qual, em seus versículos iniciais, traz diante de nós o serviço do templo em funcionamento, de acordo com a lei de Moisés. Os quatro versículos que encerram este evangelho também nos apresentam um contraste marcante, pois o primeiro capítulo nos dá uma imagem de pessoas piedosas com esperanças terrenas, esperando pelo Messias que visitaria e redimiria Seu povo. Ele nos mostra um sacerdote temente a Deus, envolvido em seus deveres do templo, mas que possuía apenas uma pequena fé, de modo que ele foi atingido pela mudez. Não crendo, ele não podia falar: ele não sabia de nada que valesse a pena falar, em todos os eventos do momento. Os versículos 50-53 mostram-nos o ressurreto Salvador subindo para exercer Seu serviço como Sumo Sacerdote nos céus e deixando para trás uma companhia de pessoas cujos corações foram transportados da Terra para o céu e cujas bocas estão abertas em louvor.

Betânia era o local de onde Ele subiu; o lugar onde, mais do que qualquer outro, Ele fora apreciado. Ele subiu no próprio ato de abençoar Seus discípulos. Quando nos lembramos do que eles provaram ser, isso é realmente tocante. Seis semanas antes, todos O abandonaram e fugiram. Um deles O negou com juramentos e maldições, e a todos eles Ele poderia ter dito o que disse aos dois no caminho de Emaús: “Ó néscios, e tardos de coração para crer”. Contudo, sobre esses discípulos tolos, infiéis e covardes, Ele ergueu Suas mãos em bênção. E sobre nós também, embora muito semelhantes a esses homens, apesar de vivermos no dia em que o Espírito é dado, Sua bênção ainda desce.

Ele os abençoou e eles O adoraram. Eles retornaram ao local que Ele designou para eles até que o Espírito viesse, e no templo eles estavam continuamente ocupados no louvor de Deus. Zacarias tinha ficado mudo; nenhuma bendição poderia sair de seus lábios, seja para Deus ou para o homem. Jesus subiu ao alto para assumir o Seu ofício sacerdotal na plenitude da bênção para o Seu povo; e Ele deixou para trás aqueles que provaram ser o núcleo da nova raça sacerdotal, e eles já estavam bendizendo a Deus e adorando-O.

Este evangelho realmente nos levou da lei para a graça e da Terra para o céu.

Notas

[←1]

N. do T.: A tradução de J. N. Darby do versículo 32 diz: “… Eis que Eu expulso demônios e realizo curas hoje e amanhã, e no terceiro dia Sou aperfeiçoado”.

[←2]

N. do T.: O autor – Frank Binford Hole – viveu entre 2/2/1874 e 25/1/1964, tendo escrito estes comentários na primeira metade do século XX.

[←3]

N. do T.: O “Ato de Uniformidade” de 1662, obrigou o uso do Livro de Oração Comum e exigia a ordenação episcopal dos clérigos. Cerca de 2.000 ministros puritanos se viram forçados a deixar a Igreja da Inglaterra.

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