A História da Igreja (Parte 2)
Perpétua e Seus Companheiros
Dentre outros que foram presos e martirizados na África durante essa perseguição, Perpétua e seus companheiros, dentre todas as histórias, merecem um lugar distinto. A história do martírio deles não só carrega todo o selo dessa verdade circunstancial, como também está repleta de toques mais requintados de sentimento e afeição natural. Aqui vemos a bela combinação dos mais ternos sentimentos e dos mais fortes afetos que o cristianismo reconhece em todos os seus direitos, e os torna ainda mais profundos e ternos porque foi a causa do sacrifício deles sobre o altar da total dedicação àquEle que morreu em total dedicação a nós. “O qual me amou”, como diz a fé, com propriedade, “e se entregou a si mesmo por mim.” (Gálatas 2:20)
Em Cartago, no ano 202, três jovens homens, Revocato, Saturnino e Secundulo, e duas moças, Perpétua e Felicidade, foram presos, todos eles sendo ainda catecúmenos, isto é, novos convertidos que se preparavam para o batismo e comunhão. Perpétua era de boa família, rica e nobre, de educação liberal, e honrosamente casada. Ela tinha cerca de 22 anos de idade, e era mãe de um bebê ainda de peito. Toda sua família aparentemente era cristã, com exceção de seu pai, que ainda era pagão. Nada é dito sobre seu marido. Seu pai era muito apegado a ela, e temia muito a desgraça que seus sofrimentos por Cristo trariam para sua família. Assim ela tinha de lutar não apenas com a morte em sua forma mais terrível, mas também com todo laço sagrado da natureza.
Quando ela foi levada pela primeira vez perante seus perseguidores, seu velho pai veio e pediu que ela se retratasse e dissesse que não era cristã. “Pai”, ela respondeu calmamente, apontando para um vaso que estava no chão, “poderia eu chamar esse vaso de qualquer coisa além do que ele é?” “Não”, ele respondeu. “Assim também eu não poderia te dizer nada além do que eu sou, uma cristã.” Alguns dias depois, os jovens cristãos foram batizados. Apesar de estarem sob guarda, eles não estavam ainda presos na prisão. Mas pouco tempo depois disto, eles foram lançados na masmorra. “Então”, ela disse, “eu fui tentada, estava apavorada, pois eu nunca tinha estado em tal escuridão antes. Oh, que dia terrível! O calor excessivo ocasionado pelo número de pessoas, o duro tratamento dos soldados, e, finalmente, a ansiedade por causa do meu bebê, me tornou miserável.” Os diáconos, no entanto, conseguiram adquirir para os prisioneiros cristãos um lugar melhor, onde ficavam separados dos criminosos comuns. Tais vantagens podiam geralmente ser adquiridas dos corruptos supervisores das prisões. Perpétua estava agora feliz por ter seu filho consigo. Ela o pegou no colo e exclamou: “Agora, esta prisão se tornou um palácio para mim!”.
Após alguns dias houve um rumor de que os prisioneiros seriam examinados. O pai apressou-se até sua filha em grande aflição de espírito. “Minha filha”, disse ele, “tenha pena de meus cabelos grisalhos, tenha pena do seu pai, se ainda sou digno de ser chamado seu pai. Se eu a eduquei até a flor da sua juventude, se eu preferi você a todos os seus irmãos, não me exponha a tal vergonha entre os homens. Olhe para o seu bebê – seu filho que, se você morrer, não poderá sobreviver por muito tempo. Deixe seu espírito elevado de lado, para que todos nós não mergulhemos em ruínas. Pois se você morrer, então nenhum de nós jamais terá coragem de falar livremente de novo.” Enquanto ele falava isto, ele beijou suas mãos, se lançou a seus pés, suplicando-lhe com termos carinhosos e muitas lágrimas. Mas, embora muito comovida e aflita pela visão do seu pai e sua forte e terna afeição por ela, ela ficou calma e firme, e sentiu-se principalmente preocupada pelo bem de sua alma. “Os cabelos grisalhos de meu pai”, disse ela, “me afligem ao considerar que apenas ele da minha família não se regozijaria com meu martírio.” “O que acontecerá”, disse-lhe ela, “quando eu chegar perante o tribunal, depende da vontade de Deus, pois não permanecemos em pé por nossa própria força, mas apenas pelo poder de Deus.”
Ao chegar a hora decisiva – o último dia do julgamento deles – uma imensa multidão se reuniu. O velho pai novamente apareceu, na esperança de poder, pela última vez, mudar a ideia de sua filha. Nesta ocasião ele levou seu neto recém-nascido em seus braços, e pôs-se diante dela. Que momento! Que espetáculo! Seu velho pai, seus cabelos grisalhos, seu tenro bebê: que apelo para uma filha – para o coração de uma jovem mulher! “Tenha pena dos cabelos grisalhos de seu pai”, disse o governador, “tenha pena de sua criança indefesa, e ofereça sacrifício em prol da prosperidade do imperador.” Assim ela se apresentou perante o tribunal, perante a multidão reunida, perante as admiradas miríades dos céus, perante as tenebrosas hostes do inferno. Mas Perpétua estava calma e firme. À semelhança de Abraão, pai dos que creem, seus olhos não estavam agora em seu filho, mas no Deus da ressurreição. Tendo encomendado seu filho aos cuidados de sua mãe e de seu irmão, ela respondeu ao governador, e disse: “Isto não posso fazer.” “Você é cristã?”, ele perguntou. “Sim”, ela respondeu, “sou cristã”. Seu destino estava agora decidido. Eles foram todos condenados a servirem de cruel entretenimento para o povo e os soldados, em uma luta com feras selvagens, na festa de aniversário do jovem Geta, filho mais novo do imperador. Eles retornaram a suas masmorras, regozijando por terem sido capazes de testemunharem e sofrerem por amor a Cristo. O carcereiro, Pudas, foi convertido por meio do comportamento tranquilo dos prisioneiros.
Quando foram levados ao anfiteatro, os espectadores notaram que os mártires tinham uma aparência pacífica e alegre. De acordo com um costume que prevalecia em Cartago, os homens deviam ser vestidos de escarlate como os sacerdotes de Saturno, e as mulheres de amarelo como as sacerdotisas de Ceres, mas os prisioneiros protestaram contra tal procedimento. “Viemos aqui”, disseram, “por nossa própria escolha, e não deixaremos que nossa liberdade seja tirada de nós; nós desistimos de nossas vida para não sermos forçados a tais abominações.” Os pagãos reconheceram que o pedido deles era justo, e cederam. Após se despedirem entre si com o mútuo beijo do amor cristão, com a esperança certa de logo se encontrarem novamente, estando “fora do corpo, para habitar com o Senhor” (2 Coríntios 5:8), eles foram adiante para a cena de morte em seus trajes simples. A voz de louvor a Deus foi ouvida pelos espectadores. Perpétua estava cantando um salmo. Os homens foram expostos a leões, ursos e leopardos; as mulheres foram atiradas a uma vaca furiosa. Mas todos foram rapidamente libertados de seus sofrimentos pela espada do gladiador, e entraram na alegria do seu Senhor.
A interessante narrativa aqui resumida, e que supõe-se ter sido escrita pelas próprias mãos de Perpétua1, respira tal ar de verdade e realismo que conquistou o respeito e confiança de todas as eras. Mas o nosso principal objetivo ao escrevê-la para nossos leitores é apresentá-los a uma imagem viva na qual muitas das melhores qualidades da fé cristã estão belamente mescladas com os mais calorosos e ternos sentimentos cristãos, e para que possamos aprender a não sermos reclamões e murmuradores, mas a suportar todas as coisas por amor de Cristo, para que Sua graça possa brilhar, nossa fé triunfar, e Deus ser glorificado.
Alguns anos após esses eventos, Severo voltou sua atenção para a Grã-Bretanha, onde os romanos estiveram perdendo terreno. O imperador, estando à frente de um exército muito poderoso, rechaçou os nativos independentes da Caledônia, e reconquistou a região ao sul da muralha de Antonino, mas perdeu tantas tropas nas sucessivas batalhas em que foi obrigado a lutar que não achou apropriado forçar suas conquistas além daquele limite. Sentindo o tempo de seu fim se aproximando, ele se retirou para York, onde logo expirou, no décimo oitavo ano de seu reinado, em 211 d.C.
A Posição Alterada do Cristianismo na Sociedade
Após a morte de Septímio Severo – exceto durante o curto reinado de Maximino – a igreja desfrutou de uma temporada de relativa paz até o reinado de Décio, no ano 249 d.C. Porém, durante o favorável reinado de Alexandre Severo, uma mudança considerável aconteceu na relação do cristianismo com a sociedade. Por toda a sua vida, Alexandre esteve sob a influência de sua mãe, Julia Mamea, que é descrita por Eusébio como “uma mulher distinta por sua piedade e religiosidade.” Ela chamou Orígenes, sobre cuja fama ela tinha ouvido falar muito, e aprendeu dele algo sobre as doutrinas do evangelho. Ela se tornou, mais tarde, favorável aos cristãos, mas não há muitas evidências de que ela também tenha sido cristã.
Alexandre tinha uma disposição religiosa. Ele tinha muitos cristãos em sua casa, e bispos eram admitidos até mesmo na corte em caráter reconhecidamente oficial. Ele frequentemente usava as palavras de nosso Salvador: “E como vós quereis que os homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós, também.” (Lucas 6:31). Ele tinha essas palavras escritas nas paredes de seu palácio e em outros edifícios públicos. Mas todas as religiões eram consideradas para ele como quase a mesma coisa, e sobre este princípio ele deu ao cristianismo um lugar em seu eclético sistema.
Os Primeiros Edifícios Públicos para Assembleias Cristãs
Um importante ponto na história da igreja, e que prova sua posição alterada no Império Romano, agora aparece diante de nós pela primeira vez. Foi durante o reinado desse excelente príncipe (Alexandre Severo) que as primeiros edifícios públicos foram levantados para as assembleias de cristãos. Uma pequena circunstância conectada a uma pequena porção de terra em Roma mostra o verdadeiro espírito do imperador e o crescente poder e influência dos cristãos. Esse terreno, considerado de uso geral, foi escolhido por uma congregação como o lugar para uma igreja, mas uma companhia de abastecedores reivindicava que tinha prioridade sobre o uso do terreno. O caso foi julgado pelo imperador, que decidiu conceder o terreno aos cristãos, sob a alegação de que era melhor dedicá-lo à adoração a Deus em qualquer forma do que aplicá-lo a um uso profano e indigno.
Edifícios públicos – chamadas de “igrejas cristãs” – começavam agora a aparecer em diferentes partes do império, e a possuir propriedades na terra. Os pagãos nunca conseguiam entender porque os cristãos não tinham templos nem altares. Suas assembleias religiosas, até essa época, eram realizadas de modo privado. Até mesmos os judeus tinham suas sinagogas públicas, mas os cristãos não se reuniam em algum edifício separado e distinto. A casa particular, as catacumbas, o cemitério de seus mortos, eram os lugares em que ocorriam suas pacíficas congregações. A privacidade deles, que muitas vezes era, naqueles turbulentos tempos, sua segurança, estava agora passando. Por outro lado, deve também ser observado que essa confidencialidade era muitas vezes utilizada contra eles. Nós vimos como, no princípio, os pagãos não conseguiam entender uma religião sem um templo, e então eram facilmente persuadidos de que essas reuniões privadas e misteriosas, que pareciam evitar a luz do dia, serviam apenas para o pior dos propósitos.
A condição exterior do cristianismo estava agora mudando de maneira incrível – mas infelizmente, não em favor da saúde e crescimento espiritual, como veremos em breve. Havia agora edifícios bem conhecidos nos quais os cristãos se reuniam, cujas portas podiam ficar bem abertas para toda a gente. O cristianismo era agora reconhecido como uma das várias formas de adoração que o governo não proibia. Mas a tolerância aos cristãos durante este período teve o apoio favorável apenas de Alexandre. Nenhuma mudança foi feita nas leis do império em favor dos cristãos, de modo que seu tempo de paz teria um fim com a morte do imperador. Uma conspiração foi formada contra ele pela desmoralizada soldadesca, que não podia suportar a disciplina que o imperador procurava restaurar. E assim o jovem imperador foi morto em seu quarto, aos vinte e nove anos de idade e no décimo terceiro ano de seu reinado.
O Tratamento do Clero pelo Senhor
Mal as novas “igrejas” foram construídas, e os bispos recebidos na corte, e a mão do Senhor se voltou contra eles. Aconteceu dessa maneira:
Maximino, um rude camponês da Trácia, subiu ao trono imperial. Ele tinha sido o principal instigador da morte, se não o verdadeiro assassino, do virtuoso Alexandre. Ele começou seu reinado mandando prender e matar todos os amigos do último imperador. Aqueles que tinham sido seus amigos ele tornou seus próprios inimigos. Ele ordenou que os bispos, e particularmente aqueles que tinham sido amigos íntimos de Alexandre, fossem executados. Sua vingança caiu mais ou menos sobre todas as classes de cristãos, mas principalmente sobre o clero. Não era, no entanto, pelo cristianismo que eles sofreram nessa ocasião, uma vez que Maximino não se importava com qualquer religião, mas por causa da posição que eles tinham alcançado no mundo. Pode haver reflexão mais dolorosa do que esta?
Por volta dessa época destrutivos terremotos em várias províncias reacenderam o ódio popular contra os cristãos em geral. A fúria do povo sob tal imperador era irrestrita e, encorajados por governantes hostis, incendiaram as recém-construídas “igrejas” e perseguiram os cristãos. Mas, felizmente, o reinado desse selvagem imperador teve curta duração. Ele se tornou intolerável pelas pessoas. O exército se amotinou e o matou no terceiro ano de seu reinado, e uma época mais favorável para os cristãos retornou.
O reinado de Gordiano I, de 238 a 244 d.C., e o de Filipe, de 244 a 249, foram amigáveis para com a igreja. Mas repetidamente percebemos que um governo favorável aos cristãos era imediatamente seguido por outro que os oprimia. Foi particularmente o caso nessa época. Sob os sorrisos e o patrocínio de Filipe, o Árabe, a igreja desfrutou de grande prosperidade exterior, mas estava na véspera de uma perseguição mais terrível e mais generalizada do que qualquer outra que já tinha se passado.
Uma das causas que podem ter contribuído para isso foi a ausência dos cristãos nas cerimônias nacionais que comemoravam o milésimo ano de Roma, em 247 d.C. Os jogos seculares foram celebrados com grandiosidade sem precedentes por Filipe, mas como ele era favorável aos cristãos, eles escaparam da fúria dos sacerdotes pagãos e do populacho. Os cristãos eram agora um corpo reconhecido no Estado, e por mais cuidado que tivessem de evitar se misturar às facções políticas ou às festividades populares, eles eram considerados inimigos de prosperidade do Estado e a causa de todas as calamidades. Chegamos agora a uma mudança completa de governo – um governo que afligiu toda a igreja de Deus.
A Perseguição Geral sob o Reinado de Décio
Décio, no ano 249, conquistou Filipe e colocou-se no trono. Seu reinado é marcante na história da igreja pela primeira perseguição geral. O novo imperador era desfavorável ao cristianismo e zelosamente devoto à religião pagã. Ele resolveu tentar o completo extermínio do primeiro, e restaurar o último à sua antiga glória. Uma das primeiras medidas de seu reinado foi emitir decretos aos governadores para que fizessem cumprir as antigas leis contra os cristãos. Eles foram ordenados, sob pena de perder suas próprias vidas, a exterminar todos os cristãos, completamente, ou trazê-los de volta por meio de sofrimentos e torturas à religião de seus pais.
Desde os tempos de Trajano havia uma ordem imperial de que os cristãos não deviam ser procurados; e havia também uma lei contra acusações privadas que fossem trazidas contra eles, especialmente se fossem por seus próprios servos – como vimos no caso de Apolônio – e essas leis tinham sido geralmente observadas pelos inimigos da igreja; mas agora elas eram totalmente negligenciadas. As autoridades procuravam os cristãos, os acusadores não corriam risco algum, e o clamor popular foi admitido no lugar da evidência formal. Durante os dois anos que se sucederam, uma grande multidão de cristãos em todas as províncias romanas foi banida, aprisionada ou torturada até a morte por vários tipos de punições e sofrimentos. Esta perseguição foi mais cruel e terrível que qualquer outra que a precedeu. Mas a parte mais dolorosa daquelas cenas de cortar o coração foi o estado debilitado dos próprios cristãos diante do triste efeito do conforto e prosperidade mundana.
Os Efeitos do Mundanismo na Igreja
O estudante da história da igreja se depara agora com o manifesto e terrível efeito do mundo na igreja. É uma visão muito triste, mas deveria ser uma lição proveitosa para o leitor cristão. O que era nesse período, continua agora, e deverá sempre ser. O Espírito Santo, que habita em nós, não é menos sensível hoje ao hálito poluído e destruidor do mundo do que era naquele tempo.
O que o inimigo não podia fazer por meio de éditos sangrentos e tiranos cruéis, ele conseguiu por meio da amizade com o mundo. Este é um velho estratagema de Satanás. A astuta serpente provou ser mais perigosa do que o leão que ruge. Por meio do favor de grandes homens, e especialmente de imperadores, ele fez com que o clero abaixasse a guarda, conduziu-os a dar as mãos com o mundo, e enganou-os por suas lisonjas. Os cristãos podiam agora erigir templos como os pagãos, e seus bispos eram recebidos na corte imperial em igualdade de condições com os sacerdotes idólatras. Este ímpio relacionamento com o mundo minou os próprios fundamentos do cristianismo deles. Isto se tornou dolorosamente manifesto quando a violenta tempestade da perseguição se sucedeu à longa calma de sua prosperidade mundana.
Em muitas partes do império, os cristãos tinham desfrutado de paz sem distúrbio por um período de trinta anos, o que não foi bom para a igreja como um todo. Muitos não possuíam a fé vinda de uma ardente convicção, tal como ocorria no primeiro e segundo séculos, mas uma fé vinda da verdade incutida na mente pela educação cristã – o que prevalece hoje em escala alarmante. Uma perseguição irrompendo com grande violência, após tantos anos de tranquilidade, não podia deixar de relevar um processo de refinamento para as igrejas. A atmosfera do cristianismo tinha se corrompido. Cipriano, no Ocidente, e Orígenes, no Oriente, falam do espírito secular que tinha penetrado – do orgulho, luxo e cobiça do clero – nas vidas descuidadas e ímpias das pessoas.
“Se”, diz Cipriano, bispo de Cartago, “a causa da doença é compreendida, a cura da parte afetada logo é encontrada. O Senhor provaria o Seu povo; e por causa do regime divinamente prescrito de vida ter sido perturbado na longa temporada de paz, um julgamento divino foi enviado para restabelecer nossa fé caída e, como poderia praticamente dizer, adormecida. Nossos pecados merecem coisa pior, mas nosso gracioso Senhor assim ordenou que tudo isso que ocorreu parece mais uma prova do que uma perseguição. Esquecendo-se do que os crentes faziam nos tempos dos apóstolos, e o que eles deveriam sempre continuar fazendo, os cristãos têm trabalhado com o desejo insaciável de aumentar suas posses terrenas. Muitos dos bispos que, por preceito e exemplo, deveriam ter guiado os outros, negligenciaram seu chamado divino para se envolver no gerenciamento de preocupações mundanas.” Sendo esta a condição das coisas em muitas das igrejas, não é difícil imaginar o que aconteceu.
O imperador ordenou que uma rigorosa busca fosse feita por todos os suspeitos de se recusarem ao cumprimento para com o culto nacional. Os cristãos foram obrigados a se conformarem às cerimônias da religião pagã. Em caso de se negarem, ameaças, e depois torturas, eram empregadas para forçar a submissão. Se continuassem firmes, a punição de morte deveria ser infringida especialmente nos bispos, a quem Décio odiava mais amargamente. O costume era, onde quer que o terrível édito fosse seguido até a execução, a escolha de um dia no qual todos os cristãos do local deveriam se apresentar perante o magistrado, renunciar a sua religião, e oferecer incenso no altar do ídolo. Muitos, antes do terrível dia chegar, fugiam para o exílio voluntário. Os bens destes eram confiscados e eles mesmos eram proibidos de retornar, sob pena de morte. Aqueles que continuaram firmes, após repetidas torturas, foram lançados na prisão, quando foram empregados os sofrimentos adicionais da fome e da sede, tentando fazê-los mudar de ideia. Muitos que eram menos firmes e fiéis eram libertados sem sacrificar, comprando eles mesmo, ou permitindo que seus amigos comprassem, um certificado dos magistrados. Mas esta indigna prática foi condenada pela igreja como uma renúncia tácita.
Dionísio, bispo de Alexandria, ao descrever o efeito desse terrível decreto, diz “que muitos cidadãos de reputação consentiam com o édito. Alguns eram impelidos por seus medos, e alguns eram forçados por seus amigos. Muitos ficavam pálidos e trêmulos, que não estavam prontos nem a se submeterem à cerimônia idólatra, nem para resistirem até a morte. Outros suportavam suas torturas até certo ponto, mas finalmente cediam.” Tais foram alguns dos dolorosos e vergonhosos efeitos do relaxamento geral resultante do envolvimento com o presente século mau. É desconfortável para nós, que vivemos em um tempo de grande liberdade civil e religiosa, dizermos coisas duras sobre a fraqueza daqueles que viviam em tais tempos sanguinários. Em vez disso, devemos sentir a vergonha por nós mesmos, e orar para que possamos ser guardados de ceder às atrações do mundo em todas as suas formas. Mas nem tudo era defeito, graças ao Senhor. Vamos olhar por um momento para o lado bom das coisas.
O Poder da Fé e Devoção Cristã
O mesmo Dionísio nos conta que muitos se tornaram pilares do Senhor, que por meio dEle eram fortalecidos, e se tornaram maravilhosas testemunhas de Sua graça. Dentre esses ele menciona um garoto de quinze anos, de nome Dióscuro, que respondeu de maneira muito sábia a todos os questionamentos, e demonstrou tal constância sob tortura que conquistou a admiração do próprio governador, que o liberou, na esperança de que ele pudesse reconhecer seu erro quando estivesse mais velho. Uma mulher, que tinha sido trazida ao altar por seu marido, foi forçada a oferecer incenso por alguém segurando sua mão; mas ela exclamou: “Eu não fiz isso: foi você quem fez!”, e assim foi condenada ao exílio. Em uma masmorra em Cartago os cristãos foram expostos ao calor, fome e sede, a fim de forçá-los a cumprir com o decreto; mas embora tivessem presenciado a morte por inanição diante de seus olhos, eles continuaram fiéis em sua confissão de fé em Cristo. E da prisão em Roma, onde certos confessores tinham sido confinados por cerca de um ano, a seguinte nobre confissão foi enviada a Cipriano: “Que destino mais glorioso e abençoado pode, pela graça de Deus dada ao homem, do que, em meio a torturas e ao próprio medo da morte, confessar a Deus, o Senhor; do que, com corpos dilacerados e um espírito partindo mas livre, confessar a Cristo, o Filho de Deus; do que se tornar participante do sofrimento de Cristo, em nome de Cristo? Se ainda não derramamos nosso sangue, estamos prontos para derramá-lo. Ore então, amado Cipriano, para que o Senhor possa diariamente confirmar e fortalecer a cada um de nós, mais e mais, com a força de Seu poder; e que Ele, como o melhor dos líderes, finalmente conduza Seus soldados, a quem Ele tem disciplinado e provado no campo perigoso, até o campo de batalha que está diante de nós, armados com aquelas armas divinas que nunca podem ser vencidas.”
Dentre as vítimas dessa terrível perseguição estavam Fabiano, bispo de Roma, Babilas da Antioquia, e Alexandre de Jerusalém. Cipriano, Orígenes, Gregório, Dionísio, e outros homens eminentes, foram expostos a cruéis torturas e exílio, mas escaparam com vida. O ódio do imperador foi particularmente direcionado contra os bispos. Mas pela misericórdia do Senhor o reino de Décio foi curto, ele foi morto em batalha contra os godos, por volta do fim do ano 251.2
O Martírio de Cipriano sob o Reinado de Valeriano
Como o nome de Cipriano deve ser familiar para todos os nossos leitores e um nome muito famoso relacionado ao governo e disciplina na igreja, pode ser interessante observar particularmente a coragem serena deste “pai” apostólico na perspectiva do martírio.
Ele nasceu em Cartago por volta do ano 200, mas não foi convertido até por volta do ano 246. Embora em idade madura, ele possuía o vigor e ardor da juventude. Ele tinha sido um distinto mestre e retórico, e agora ele era um distinto cristão devoto e fervoroso. Ele foi logo promovido aos ofícios de diácono e presbítero, e em 248 foi eleito bispo pela vontade geral do povo. Seus trabalhos foram interrompidos pela perseguição sob Décio, mas sua vida foi preservada até o ano de 258. Na manhã do dia 13 de setembro, um oficial com soldados foi enviado pelo procônsul para que o trouxessem a sua presença. Cipriano então sabia que seu fim estava próximo. Com uma mente pronta e um semblante alegre ele foi sem demora. Seu julgamento foi adiado por um dia. A notícia de sua apreensão agitou toda a cidade. Seus conhecidos ficaram a noite toda em frente ao lugar onde se encontrava preso.
De manhã ele foi levado ao palácio do procônsul cercado por uma grande multidão de pessoas e uma forte guarda de soldados. Após um pequeno atraso, o procônsul apareceu. “És tu Tácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?”, disse o procônsul. “Eu sou”, respondeu Cipriano. “O sacratíssimo imperador te ordena que sacrifiques.” “Eu não sacrifico”, ele respondeu. “Consideres bem”, replicou o procônsul. “Execute as tuas ordens”, respondeu Cipriano, “o caso não admite qualquer reconsideração.”
O governador consultou seu conselho, e então proferiu a sentença: “Tácio Cipriano, tens vivido por muito tempo em tua impiedade, e reuniste ao redor de ti muitos homens envolvidos na mesma conspiração perversa. Tu tens mostrado a ti mesmo como um inimigo dos deuses e das leis do império; os piedosos e sagrados imperadores têm em vão se esforçado para lembrar-te do culto de teus ancestrais. Desde então tens sido o principal autor e líder dessas práticas culpadas, que sejas então um exemplo para aqueles que tiveste iludido em tuas assembleias ilegais. Tu deves expiar teu crime com teu sangue.” “Deus seja louvado!”, respondeu Cipriano, e a multidão de irmãos exclamou: “Que sejamos também martirizados com ele.”. O bispo foi levado até um campo vizinho e decapitado. Foi marcante o fato de que alguns dias depois o procônsul morreu. E o imperador Valeriano, no ano seguinte, foi derrotado e levado como prisioneiro pelos persas, que o trataram com grande e desdenhosa crueldade – uma calamidade e desgraça sem precedentes nos anais de Roma.
A morte miserável de muitos dos perseguidores causou grande impressão na mente pública, e forçou em muitos a convicção de que os inimigos do cristianismo eram os inimigos do céu. Por cerca de quarenta anos após este ultraje, a paz e prosperidade da igreja não foi seriamente interrompida, de modo que podemos deixar de lado esses anos para chegarmos à disputa final entre paganismo e cristianismo.
O Estado Geral do Cristianismo
Antes de empreendermos um breve relato da perseguição sob Diocleciano, pode ser interessante rever a história e condição da igreja enquanto a luta final se aproximava. Mas, de modo a formar um julgamento correto do progresso e estado do cristianismo ao final de trezentos anos, devemos considerar o poder dos inimigos com quem tinha de contender.
1. Judaísmo. Vimos durante algum tempo, e especialmente na vida do apóstolo Paulo, que o judaísmo foi o primeiro grande inimigo do cristianismo. Teve de lutar, desde sua infância, com os fortes preconceitos dos judeus crentes, e com a amarga malícia dos incrédulos. Em sua região nativa, e onde quer que viajasse, o cristianismo foi perseguido por esse inimigo implacável. E após a morte dos apóstolos, a igreja sofreu muito ao ceder à pressão judaica, levando finalmente a remodelar o cristianismo de acordo com o sistema do judaísmo. O vinho novo foi posto em odres velhos.
2. Orientalismo. Próximo ao fim do primeiro século e do início do segundo século, o cristianismo teve de abrir caminho entre os muitos e conflitantes elementos da filosofia oriental. Seu primeiro conflito foi com Simão Mago, como registrado em Atos dos Apóstolos. Embora fosse samaritano de nascença, supõe-se que ele tenha estudado as várias religiões do Oriente em Alexandria. Ao retornar ao seu país de origem, ele avançou em pretensões muito altas em direção a um conhecimento e poder superior, fazendo pasmar o povo de Samaria, anunciando que ele próprio era alguém grande, a quem todos, desde o menor até o maior, davam ouvidos, dizendo: “Este é a grande virtude de Deus”. A partir desta observação sobre Simão podemos aprender que influência tais homens tinham sobre as mentes dos ignorantes e supersticiosos, e também que poder terrível de Satanás a igreja tinha que enfrentar. Ele assumiu não somente o elevado título de “grande virtude de Deus”, como também se vangloriava de possuir outras perfeições da Divindade. Os escritores geralmente se referem a ele como a cabeça e pai de toda a hoste de impostores e hereges.
Após ter sido tão aberta e vergonhosamente derrotado por Pedro, dizem que Simão Mago deixou Samaria e viajou por vários países, escolhendo especialmente aqueles nos quais o evangelho ainda não tinha chegado. Desde essa época ele introduziu o nome de Cristo em seu sistema, e assim se esforçou em confundir o evangelho com suas blasfêmias, confundindo a mente do povo. Quanto aos seus milagres e mágicas, suas maravilhosas teorias sobre ter ele mesmo descido do céu, e outras emanações, não temos nada a dizer, além de que provam ter sido, especialmente no Oriente, um obstáculo poderoso para o progresso do evangelho.
Os sucessores de Simão, tais como Cerinto e Valentino, sistematizaram de tal modo suas teorias que tornaram-se os fundadores de uma forma de gnosticismo que a igreja teve que enfrentar no segundo século. O nome “gnosticismo” envolve a ideia de ambições por um conhecimento superior. Costuma-se pensar que Paulo se refere a este significado da palavra ao alertar seu filho Timóteo contra a “falsamente chamada ciência” (1 Timóteo 6:20)
Embora esteja fora do escopo deste livro tentar qualquer coisa como um esboço desse tão difundido orientalismo ou gnosticismo, ainda assim devemos dar aos nossos leitores alguma ideia do que era. Isto se provou por um tempo como o mais formidável oponente do cristianismo. Mas à medida que os fatos e doutrinas do evangelho prevaleciam, o gnosticismo declinava.
Sob a cabeça dos gnósticos podem ser incluídos todos aqueles nos primeiros séculos da igreja que incorporaram em seus sistemas filosóficos as doutrinas mais óbvias e convenientes, tanto do judaísmo quanto do cristianismo. Assim o gnosticismo se tornou uma mistura de filosofia oriental, judaísmo e cristianismo. Por meio desta confusão satânica, a bela simplicidade do evangelho foi destruída e, por um longo tempo, em muitos lugares, seu verdadeiro caráter foi obscurecido. Foi um plano bem pensado e um poderoso esforço do inimigo, não apenas para corromper, mas também para minar e subverter todo o evangelho. Logo que o cristianismo apareceu os gnósticos começaram a adotar em seus sistemas algumas de suas mais sublimes doutrinas. O judaísmo já era profundamente modificado com isto antes da era cristã, provavelmente desde o cativeiro.
Mas o gnosticismo, devemos lembrar, não era uma corrupção do cristianismo, embora toda a escola de gnósticos seja chamada de herege pelos escritores eclesiásticos. Quanto à sua origem, o gnosticismo remonta desde a muitas religiões do Oriente, tais como a dos caldeus, dos persas, dos egípcios, dentre outras. Até mesmo em nossos dias tais filósofos seriam vistos como infiéis e estranhos ao evangelho de Cristo; mas nos primeiros tempos, o título de herege foi dado a todos os que, de qualquer maneira, introduziam o nome de Cristo em seus sistemas filosóficos. Por isso foi dito: “Se Maomé tivesse aparecido no segundo século, Justino Mártir ou Irineu teriam chamado ele de herege.” Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que os princípios da filosofia grega, especialmente o platônico, forçaram seu caminho, bem no começo, para dentro da igreja, corrompendo a corrente pura da verdade, e ameaçando, por um tempo, mudar o desígnio e o efeito do evangelho sobre a humanidade.
Orígenes, que nasceu em Alexandria – o berço do gnosticismo – por volta do ano de 185, foi o pai apostólico que deu forma e completude ao método alexandrino de interpretar as Escrituras. Ele distinguia nelas um tríplice sentido – o literal, o moral, e o místico – correspondendo, respectivamente, ao corpo, alma e espírito do homem. O sentido literal, defendia ele, podia ser entendido por qualquer leitor atento; o moral requeria uma inteligência mais elevada; e o místico só poderia ser aprendido por meio da graça do Espírito Santo, que devia ser obtida por oração.
O grande objetivo desse eminente mestre era harmonizar o cristianismo com a filosofia, e este foi o fermento da escola de Alexandria. Ele buscava juntar os fragmentos da verdade espalhados pelos outros sistemas, e uni-los em um esquema cristão, de modo a apresentar o evangelho em uma forma que não ofendesse os preconceitos, e que assegurasse a conversão de judeus, gnósticos e pagãos. Esses princípios de interpretação, e essa combinação do cristianismo com a filosofia, levou Orígenes e seus seguidores a muitos erros graves e sérios, tanto práticos quanto doutrinais. Ele mesmo era um cristão devoto, sincero e zeloso, e verdadeiramente amava o Senhor Jesus, mas a tendência de seus princípios nada mais fizeram, desde aqueles dias até hoje, além de enfraquecer a fé no caráter definitivo da verdade, se não também pervertendo-a toda por meio da espiritualização e alegorização, o que seu sistema ensinava e permitia.
A malignidade da matéria era um dos princípios fundamentais em todos as seitas dos gnósticos, e prevalecia em todos os sistemas religiosos do Oriente. Isto levou às mais loucas teorias quanto à formação e caráter do universo material e todas as substâncias corpóreas. Isto levou muitas pessoas a acreditarem que seus corpos eram intrinsecamente maus, recomendando-se a abstinência e severas mortificações corporais para que a mente, ou o espírito, que era visto como puro e divino, pudesse desfrutar maior liberdade, e ser capaz de contemplar melhor as coisas celestiais. Sem nos alongarmos sobre o assunto – o qual não apreciamos – o leitor poderá observar que o celibato do clero, em anos posteriores, e todo o sistema do asceticismo e monasticismo, tiveram sua origem, não nas Escrituras, mas na filosofia oriental.3
3. Paganismo. A igreja não apenas tinha que enfrentar o judaísmo e o orientalismo, como também sofria com a hostilidade do paganismo. Estes eram os três formidáveis poderes de Satanás com os quais ele perturbou a igreja durante os três primeiros séculos de sua história. Na realização de sua alta comissão dada pelo Senhor – “Fazei discípulos de todas as nações”…“Pregai o evangelho a toda criatura” – ela tinha esses inimigos para enfrentar e superar. Mas estes não poderiam impedir seu curso, se ela tivesse simplesmente andado em separação do mundo e permanecido verdadeira e fiel ao seu celestial e exaltado Salvador. Mas infelizmente, o que o judaísmo, o orientalismo e o paganismo não podiam fazer, as seduções do mundo conseguiram. E isto nos leva a olhar bem de perto para a condição da igreja quando a grande perseguição começou.
Um Exame da Condição da Igreja (ano 303 d.C.)
Diocleciano ascendeu ao trono em 284. Em 286, ele se associou a Maximiano, como Augusto, e em 292 Galério e Constâncio foram adicionados ao número de príncipes com o título inferior de César. Assim, quando começou o quarto século, o império romano tinha quatro soberanos. Dois levavam o título de Augusto; e dois, o título de César. Diocleciano, embora supersticioso, não nutria nenhum ódio contra os cristãos. Constâncio, o pai de Constantino, o Grande, era amigável a eles. No início, os assuntos cristãos pareciam ser vistos de forma razoavelmente brilhante e feliz, mas os sacerdotes pagãos estavam raivosos, e conspiravam contra os cristãos. Eles viam sua ruína nos triunfos da grande disseminação do cristianismo. Por plenos cinquenta anos a igreja tinha sido muito pouco incomodada pelo poder secular. Durante esse período os cristãos tinham atingido um grau de prosperidade sem precedentes; mas era algo apenas exterior: eles tinham declinado profundamente da pureza e simplicidade do evangelho de Cristo.
Igrejas tinham surgido na maioria das cidades do império, e com uma certa demonstração de esplendor arquitetural. Vestimentas e utensílios sagrados de prata e ouro começaram a ser usados. Convertidos eram reunidos de todas as classes da sociedade; até mesmo a esposa do Imperador e sua filha Valéria, casada com Galério, aparentemente estiveram entre esses convertidos. Os cristãos ocupavam altos cargos no estado e na casa imperial. Eles ocupavam posições de distinção, e até de suprema autoridade, nas províncias e no exército. Mas, infelizmente, esse longo período de prosperidade exterior tinha produzido suas usuais consequências. A fé e o amor decaíram; o orgulho e ambição aumentaram. A dominação sacerdotal começou a exercer seus poderes usurpados, e o bispo a assumir a linguagem e a autoridade de vigário de Deus. Invejas e dissensões distraíam as comunidades pacíficas, e disputas às vezes prosseguiam até a violência aberta. A paz dos cinquenta anos tinha corrompido toda a atmosfera cristã: o relâmpago da ira de Diocleciano foi permitido por Deus para refiná-la e purificá-la.
Tal é a confissão melancólica dos próprios cristãos que, de acordo com o espírito dos tempos, analisavam os perigos e as aflições aos quais eram expostos sob a luz dos julgamentos divinos.4
Os Atos de Diocleciano e o Fim do Período de Esmirna
Até aqui a igreja já havia passado por nove perseguições sistemáticas. A primeira foi sob Nero, depois sob Domiciano Trajano, Marco Aurélio, Severo, Maximino, Décio, Valeriano e Aureliano. E agora chegara o temível momento, quando ela enfrentaria a décima perseguição, de acordo com a palavra profética do Senhor: “E tereis uma tribulação de dez dia” (Apocalipse 2:10). E não é pouco notável que, não apenas houve exatamente dez perseguições do governo, como também que a última tenha durado exatamente dez anos. E, como vimos na parte inicial do período de Esmirna, exatamente dez anos passaram desde o início da perseguição sob Aurélio, no Oriente, até seu fim no Ocidente. O estudante cristão pode traçar outras características semelhantes: preferimos sugerir tais características do que forçar sua aceitação, embora acreditemos que elas tenham sido prefiguradas na epístola à Esmirna.
O reinado de Diocleciano é de grande importância histórica. Primeiro, porque se distinguiu pela introdução de um novo sistema de governo imperial. Ele virtualmente transferiu a capital da antiga Roma para a Nicomédia, na qual estabeleceu sua sede e residência. Lá ele manteve uma corte de esplendor oriental, para a qual ele convidada homens de erudição e filosofia. Mas o filósofos que frequentavam sua corte, todos nutrindo extremo ódio contra o cristianismo, usaram de sua influência com o imperador para exterminar uma religião pura demais para atender às suas mentes poluídas. Isto levou à última e maior perseguição aos cristãos. E é esta última que nos interessa. E como todas as histórias sobre este período são recolhidas principalmente dos registros de Eusébio e Lactâncio, que escreveu nessa época e testemunhou muitas execuções, podemos fazer pouco mais do que selecionar e transcrever a partir do que já está escrito, consultando os vários autores já mencionados.
Os sacerdotes pagãos e filósofos acima mencionados, não tendo sido bem-sucedidos em seus artifícios com Diocleciano a fim de criar uma guerra contra os cristãos, fizeram uso do outro imperador, Galério, seu genro, para cumprir seus propósitos. Este homem cruel, impelido em parte por sua própria inclinação, em parte por sua mãe, uma pagã muito supersticiosa, e em parte pelos sacerdotes, não deu sossego ao seu sogro enquanto não o convenceu.
Durante o inverno do ano 302–303, Galério fez uma visita a Diocleciano na Nicomédia. Seu grande objetivo era excitar o velho imperador contra os cristãos. Diocleciano, por um tempo, resistiu à sua importunação. Ele era avesso, por algum motivo, às medidas sanguinárias propostas por seu parceiro. Mas a mãe de Galério, uma inimiga implacável dos cristãos, empregou toda a sua influência sobre seu filho para inflamar sua mente com hostilidades imediatas e ativas. Diocleciano, com o tempo, cedeu. Antes disso, Galério tinha tomado o cuidado de remover do exército todos os que se recusavam a sacrificar aos ídolos. Alguns foram dispensados, e outros foram sentenciados à morte.
O Primeiro Decreto
Por volta do dia 24 de fevereiro de 303, o primeiro decreto foi emitido. Ele ordenava que todos os que se recusassem a sacrificar aos ídolos deveriam perder seus cargos, suas propriedades, sua classe, e os privilégios civis; que os escravos que persistissem em professar o evangelho fossem excluídos da esperança da liberdade, que todos os cristãos de todas as classes deviam ser destruídos, que as reuniões religiosas deviam ser suprimidas, e que as Escrituras deviam ser queimadas. A tentativa de exterminar as Escrituras foi uma característica nova nessa perseguição e, sem dúvida, foi sugerida pelos filósofos que frequentavam o palácio. Eles estavam bem conscientes de que seus próprios escritos teriam pouca influência sobre a opinião pública se as Escrituras e outros livros sagrados estivessem em circulação. Imediatamente após essas medidas terem sido tomadas a igreja de Nicomédia foi atacada, os livros sagrados foram queimados, e os edifícios inteiramente demolidos em poucas horas. Por todo o império as “igrejas” dos cristãos deveriam ser derrubadas até o pó, e os livros sagrados deviam ser entregues aos oficiais do império. Muitos cristãos que recusaram entregar as Escrituras foram condenados à morte, enquanto aqueles que as entregaram para serem queimadas foram considerados pela igreja como traidores de Cristo, e mais tarde houve grandes problemas no exercício da disciplina para com tais pessoas.5
Mal este cruel decreto tinha sido afixado no local costumeiro e um cristão de classe nobre o rasgou. Sua indignação com a injustiça o levou de modo tão flagrante a um ato de zelo imprudente – a uma violação daquele preceito do evangelho que ordena o respeito para com todos em posição de autoridade. Foi uma ocasião adequada para sentenciar um cristão de classe alta à morte. Ele foi queimado vivo em fogo baixo, e suportou seus sofrimentos com uma serenidade tão digna que surpreendeu e humilhou seus carrascos. A perseguição tinha agora começado. O primeiro passo contra os cristãos tinha sido tomado, e o segundo não demorou.
Não muito tempo após a publicação do decreto houve um incêndio no palácio de Nicomédia que se espalhou quase até a câmara do imperador. A origem do fogo parece ser desconhecida, mas obviamente a culpa foi jogada sobre os cristãos. Diocleciano acreditou nisto. Ele ficou alarmado e indignado. Multidões foram lançadas na prisão, sem discriminação daqueles que eram ou não suspeitos, e as mais cruéis torturas foram empregadas para que houvesse uma confissão; mas foi em vão. Muitos foram queimados até a morte, decapitados e afogados. Cerca de quatorze dias depois, um segundo incêndio irrompeu no palácio. Tinha se tornado então evidente que era obra de um incendiário. Os pagãos novamente acusaram os cristãos, e em alta voz clamaram por vingança, mas como não havia provas que pudessem ser encontradas de que os cristãos tivessem algo a ver com esses incêndios fatais, uma forte e, cremos, verdadeira suspeita, repousava sobre o próprio imperador Galério. Seu grande objetivo desde o início era incriminar os cristãos e alarmar Diocleciano por meio de suas próprias medidas violentas. Estando plenamente consciente da consequência desses eventos na mente sombria, tímida e supersticiosa do velho imperador, ele imediatamente deixou Nicomédia, alegando que não se considerava seguro na cidade.
Mas o objetivo foi alcançado, superando a extensão que até mesmo Galério e sua mãe pagã podiam ter desejado. Diocleciano, agora completamente incitado, irou-se ferozmente contra toda sorte de homens e mulheres que levavam o nome de cristão. Ele obrigou sua esposa Prisca e sua filha Valéria a oferecer sacrifício. Oficiais do palácio, da mais alta classe e nobreza, e todos os habitantes do palácio, foram expostos às mais cruéis torturas, pela ordem, e até mesmo na presença, do próprio Diocleciano. Os nomes de alguns de seus ministros de estado foram proferidos por preferirem as riquezas de Cristo à grandeza de seu palácio. Um dos eunucos foi trazido perante o imperador e foi torturado com grande severidade por rejeitar o sacrifício aos ídolos. Procurando fazer dele um exemplo para os outros, uma mistura de sal e vinagre foi derramada em suas feridas abertas, mas foi tudo em vão. Ele confessou sua fé em Cristo como seu único Salvador, e que não possuía nenhum outro Deus. Ele foi então gradualmente queimado até a morte. Doroteus, Gorgônio e Andrea, eunucos que serviam no palácio, também foram condenados à morte. Antimo, o bispo de Nicomédia, foi decapitado. Muitos foram executados, muitos foram queimado vivos, mas se tornou tedioso destruir homens individualmente, e então grandes fogueiras eram acesas para queimar muitos de uma só vez, e outros foram levados para o meio de um lado e lançados à água com pedras presas em seus pescoços.
A partir da Nicomédia, o centro da perseguição, as ordens imperiais foram despachadas, requerendo a cooperação dos outros imperadores na restauração da dignidade da religião antiga, e a completa supressão do cristianismo. Assim a perseguição se ergueu por todo o mundo romano, com exceção da Gália. Ali governava o brando Constâncio, e, embora ele tenha demonstrado concordância com as medidas de seus colegas, pela demolição das “igrejas”, ele se absteve de toda violência contra as pessoas cristãs. Embora ele próprio não fosse um cristão decidido, ele era naturalmente humano, e evidentemente amigável ao cristianismo e aos que o professavam. Ele presidia sobre o governo da Gália, Grã-Bretanha e Espanha. Mas o temperamento feroz de Maximiano e a crueldade selvagem de Galério apenas aguardavam o sinal para levar em efeito as ordens vindas da Nicomédia. E agora os três monstros se erguiam, na plena força do poder civil contra os seguidores indefesos e inocentes do manso e humilde Jesus, o Príncipe da Paz.
"A graça que começou terminará em glória;
Jesus, dEle é a vitória
Em Sua própria triunfante história
Está o registro da nossa própria história."
O Segundo Decreto
Não muito tempo depois que o primeiro decreto tinha sido levado à execução por todo o império, rumores de revoltas na Armênia e Síria, regiões densamente populadas por cristãos, chegaram aos ouvidos do imperador. Essas confusões foram falsamente atribuídas aos cristãos, e proporcionaram um pretexto para um segundo decreto. Insinuava-se que o clero, como líderes dos cristãos, eram particularmente suspeitos nessa ocasião, e o decreto determinou que todos os que eram da ordem clerical fossem lançados na prisão. Assim, em um curto período de tempo, as prisões estavam cheias de bispos, presbíteros e diáconos.
O Terceiro Decreto
Um terceiro decreto foi imediatamente emitido proibindo a liberação de qualquer pessoa do clero, a menos que consentissem em oferecer sacrifício aos ídolos. Eles foram declarados inimigos do Estado, e onde houvesse um prefeito hostil que escolhesse exercer sua autoridade sem limites, eles eram todos levados em prisões destinadas apenas aos mais vis criminosos. O decreto estabelecia que aqueles dentre os prisioneiros que estivessem dispostos a oferecer sacrifício aos deuses deviam ser libertados, e que o restante devia ser compelido por torturas e punições. Grandes multidões da mais devota piedade, e veneráveis na igreja, ou foram executados ou foram enviados às minas. O imperador pensou, em vão, que se os bispos e mestres fossem subjugados, as igrejas logo seguiriam o exemplo deles. Mas percebendo que o resultado de suas medidas foi a mais humilhante derrota, ele foi instigado, pela influência unida de Galério, dos filósofos e dos sacerdotes pagãos, a emitir um outro e ainda mais rigoroso decreto.
O Quarto Decreto
Por um quarto decreto as ordens que se aplicavam apenas ao clero foram então estendidas a todo o corpo de cristãos. Os magistrados foram instruídos a usar livremente da tortura para forçar todos os cristãos – homens, mulheres e crianças – à adoração aos deuses. Diocleciano e todos os seus colegas estavam agora comprometidos com essa batalha desesperada e desigual. Os poderes das trevas – todo o Império Romano – puseram-se em pé, armados, determinados, comprometidos com a defesa do antigo politeísmo e com o completo extermínio do nome cristão. Recuar seria o mesmo que confessar fraqueza, e para saírem bem-sucedidos o adversário devia ser exterminado; mas não podia haver vitória, pois os cristãos não ofereciam resistência. Historicamente, este foi o confronto final e temível entre o paganismo e o cristianismo; a batalha estava agora em seu auge, e chegando a uma crise.
Uma proclamação pública foi feita através das ruas das cidades, de que homens, mulheres e crianças deviam todos ajudar a reparar os templos dos deuses. Todos deviam ser submetidos à prova de fogo: sacrificar ou morrer. Cada indivíduo foi convocado pelo nome a partir de listas previamente criadas. Às portas das cidades todos eram submetidos a um exame rígido, e aqueles que descobria-se serem cristãos eram imediatamente presos.
Detalhes sobre os sofrimentos e martírios que se seguiram encheriam volumes. À medida que os decretos se seguiam em rápida sucessão e irada severidade, o espírito do martírio revivia, e fortalecia-se mais e mais, até que homens e mulheres, em vez de serem presos e arrastados à fogueiras, lançavam-se nas chamas ardentes, como se subissem ao céu em carruagens de fogo. Famílias inteiras foram submetidas a vários tipos de morte, algumas pelo fogo, outros pela água, após suportarem severas torturas, alguns pereciam de fome, outros por crucificação, e alguns foram presos de cabeça para baixo e deixados vivos, para que morressem uma morte lenta. Em alguns lugares dez, vinte, sessenta e até cem homens e mulheres, com seus pequeninos, foram martirizados por meio de vários tormentos em um único dia.6
Em quase todas as partes do mundo romano tais cenas de barbárie impiedosa continuaram com mais ou menos severidade pelo longo período de dez anos. Apenas Constâncio, dentre todos os imperadores, inventou meios de proteger os cristãos no Ocidente, especialmente na Gália, onde residia. Mas em todos os outros lugares eles foram entregues a toda a sorte de crueldades e injúrias, sem o direito de poder apelar às autoridades, e sem a mínima proteção do Estado. Foi dada livre licença à população pagã para praticarem toda sorte de excessos contra os cristãos. Sob tais circunstâncias o leitor pode facilmente imaginar ao que eles eram constantemente expostos, tanto em suas vidas quanto em suas propriedades. Os ímpios se sentiam seguros de jamais serem chamados a responder por qualquer violência contra os cristãos pelas quais fossem culpados. Mas os sofrimentos dos homens, embora grandes, pareciam poucos comparados aos das mulheres. O medo da exposição e violência era mais temida do que a mera morte.
Vamos tomar um exemplo. “Certa mulher santa e devota”, diz Eusébio, “admirável por sua virtude, e ilustre, acima de tudo, na Antioquia por sua riqueza, família e reputação, tinha educado suas duas filhas – então na flor da idade e conhecidas por sua beleza – nos princípios da piedade. O esconderijo onde estavam foi descoberto, e elas foram capturadas nas malhas da soldadesca. A mãe, preocupada por si mesma e por suas filhas, e sabendo o que estava para lhes acontecer, sugeriu que era melhor morrerem, entregando-se nas mãos de Cristo, do que caírem nas mãos dos brutais soldados. Depois disso, todas concordando com a mesma coisa, e tendo pedido aos guardas um pouco de tempo, se lançaram no rio para escaparem de um mal maior”. Embora tal ato não possa ser plenamente justificado, deve ser julgado com muitas considerações. Elas foram levadas pelo desespero. E temos certeza de que o Senhor sabe como perdoar tudo o que é errado em nossas ações, e nos dar total crédito por tudo o que é correto em nossos motivos.
Por um momento, os perseguidores em vão imaginaram que iriam triunfar sobre a queda do cristianismo. Pilares foram erguidos e medalhas foram cunhadas para a honra de Diocleciano e Galério, por terem extinguido a superstição cristã e por restaurarem a adoração aos deuses. Mas aquEle que está assentado no céu estava no mesmo momento anulando a própria ira desses homens para a completa libertação e triunfo de Seu povo, e para a reconhecida derrota e queda de seus inimigos. Eles podiam martirizar cristãos, demolir “igrejas” e queimar livros; mas as fontes vivas do cristianismo estavam além de seu alcance.
A Mão Julgadora do Senhor
Grandes e importantes mudanças começaram a acontecer na soberania do império. Mas a Cabeça da igreja vigiava sobre tudo. Ele tinha limitado e definido o período de seu sofrimento, e nem as hostes do inferno, nem as legiões de Roma, poderiam estendê-lo em uma hora sequer. Os inimigos dos cristãos foram feridos com as mais terríveis calamidades. Parecia que Deus estava requerendo o sangue derramado. Galério, o verdadeiro autor da perseguição, no décimo oitavo ano de seu reinado e no oitavo da perseguição, expirou de uma enfermidade repugnante. Como Herodes Antipas e Filipe II da Espanha, ele foi “comido de bichos”. Médicos foram procurados, oráculos foram consultados, mas tudo em vão; os remédio aplicados apenas agravaram a virulência da doença. O palácio inteiro estava tão infectado pela natureza de sua aflição que ele foi abandonado por todos os seus amigos. As agonias que ele sofreu o forçaram a clamar por misericórdia, e também por um sincero pedido para que os cristãos intercedessem pelos sofrimentos do imperador em suas súplicas ao seu Deus.
De seu leito de morte ele emitiu um decreto que, ao mesmo tempo que condescendia pedindo desculpas pelas severidades passadas contra os cristãos, sob o argumentos falacioso de respeito pelo bem-estar público e unidade do estado, também admitia plenamente a total falha das severas medidas para a supressão do cristianismo, e estabelecia a liberdade e exercício público da religião cristã. Alguns dias após a promulgação do decreto, Galério expirou. Por cerca de seis meses as misericordiosas ordens desse decreto foram seguidas, e um grande número foi libertado das prisões e das minas; mas infelizmente, trazendo as marcas de torturas corporais à beira da morte. Esta breve cessação da perseguição mostrou, ao mesmo tempo, seu temível caráter e alarmante extensão.
Mas Maximino, que sucedeu Galério no governo da Ásia, buscou reviver a religião pagã em todo o seu esplendor original e suprimir o cristianismo com renovada e implacável crueldade. Ele comandou que todos os oficiais de seu governo, desde os mais altos até os mais baixos, tanto do serviço civil quanto do militar, que todos os homens e mulheres, todos os escravos, e até mesmo as crianças, deveriam sacrificar e até mesmo participar do que era oferecido nos altares pagãos. Todos os legumes e provisões no mercado deveriam ser aspergidos com a água e o vinho utilizados nos sacrifícios, para que os cristãos fossem assim forçados ao contato com as ofertas idólatras.
Novas torturas foram inventadas, e torrentes frescas de sangue cristão fluíram em todas as províncias do Império Romano, com a exceção da Gália. Mas a mão do Senhor foi novamente posta pesadamente tanto sobre o império quanto sobre o imperador. Todo tipo de calamidade prevaleceu. Opressão, guerra, pestilência e fome despovoaram as províncias asiáticas. Ao longo dos domínios de Maximino, as chuvas de verão não caíram; uma fome desolou todo o Oriente, muitas famílias opulentas foram reduzidas à mendicância, e outras venderam seus filhos como escravos. A fome foi acompanhada de suas usuais pestilências. Pústulas surgiram sobre todo o corpo daqueles atingidos pela enfermidade, mas especialmente sobre os olhos, de modo que multidões se tornaram cegas impotentes e incuráveis. Todos desanimavam, e todos os que conseguiam fugiam das casas infectadas, de modo que miríades foram deixadas a perecer em um estado de abandono absoluto. Os cristãos, movidos pelo amor de Deus em seus corações, começaram a exercer os bondosos ofícios da humanidade e misericórdia. Eles cuidavam dos vivos, e decentemente enterravam os mortos. O medo caiu sobre todos. Os pagãos concluíram que suas calamidades eram uma vingança do céu por perseguirem seu povo favorecido.
Maximino ficou alarmado, e esforçou-se, tarde demais, para refazer os seus passos. Ele emitiu um decreto admitindo os princípios de tolerância, e comandando a suspensão de qualquer medida violenta contra os cristãos, recomendando apenas meios suaves e persuasivos para reconquistar esses apóstatas da religião de seus antepassados. Tendo sido derrotado na batalha contra Licínio, ele voltou sua ira contra os sacerdotes pagãos. Ele os acusou de o terem enganado com falsas esperanças de vitória sobre Licínio, e do império universal no Oriente, e então vingou seu desapontamento por meio de um promíscuo massacre de todos os sacerdotes pagãos ao seu alcance. Seu último ato imperial foi uma promulgação de outro decreto ainda mais favorável aos cristãos, no qual ele proclamava liberdade irrestrita de consciência e restaurava as propriedades confiscadas de suas igrejas. Mas a morte veio e encerrou o sombrio catálogo de seus crimes, e também a sombria linha de imperadores perseguidores que morreram pelos mais excruciantes tormentos sob a divina mão do julgamento divino. Muitos nomes de grande fama, tanto por posição quanto por caráter, estão entre os mártires desse período, e muitos milhares, desconhecidos e despercebidos na terra, mas cujo registro está nas alturas, e cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro.
Assim encerra-se o mais memorável de todos os ataques dos poderes das trevas contra a igreja cristã, e assim encerra-se a última esperança do paganismo em manter-se pela autoridade do governo. O relato da mais violenta, mais variada, mais prolongada e mais sistemática tentativa de exterminar o evangelho já conhecida bem merece o espaço que a destinamos, de modo que não nos desculpamos por sua extensão neste texto. Vimos o braço do Senhor erguido de modo gracioso e solene para castigar e purificar Sua igreja, para demonstrar a imperecível verdade do cristianismo, e para cobrir com eterna vergonha e confusão seus audazes mas impotentes inimigos. Como Moisés, podemos exclamar: “E eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia. E Moisés disse: Agora me virarei para lá, e verei esta grande visão, porque a sarça não se queima. E vendo o Senhor que se virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça” (Êxodo 3:2–4). Assim vemos o porquê da sarça não se queimar, ou o porquê de Israel não ter sido consumido no Egito , ou o porquê da igreja neste mundo não ter sido exterminada: Deus estava no meio da sarça, Ele está no meio de Sua igreja – ela é a habitação de Deus pelo Espírito. Além disso, Cristo disse claramente, referindo-se a Ele mesmo em Seu exaltado poder e glória: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mateus 16:18).
N. do T.: obviamente até o momento anterior ao seu martírio↩
Veja Neander, vol. 1, p. 177; Mosheim, vol. 1, p. 217; Milner, vol. 1, p. 332↩
Para maiores detalhes sobre as diferentes seitas, veja o Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de Marsden. Robertson, volume 1; Neander, volume 2; Milman, volume 2; Mosheim, volume 1.↩
Milman, vol. 2. 261.↩
Pode ser do interesse do leitor saber que nenhum dos manuscritos do Novo Testamento existentes datam de antes da metade do quarto século. Um fato responsável por isso, em grande medida, é a destruição dos escritos cristãos, especialmente as Escrituras, no reinado de Diocleciano durante a primeira parte daquele século. Sob Constantino sabe-se que esforços especiais foram empreendidos para criar cópias fidedignas, das quais o famoso crítico Tischendorf acredita que os manuscritos do Sinai sejam uma.↩
Para conhecer os nomes e detalhes sobre muitos desses sofredores, veja Milner, vol. 1, pp. 473–506.↩
O Período de Pérgamo (313 – 606 d.C.)
Constantino
O reinado de Constantino, o Grande, marca uma época muito importante na história da igreja. Tanto seu pai Constâncio quanto sua mãe Helena tinham inclinação à religiosidade e sempre foram favoráveis aos cristãos. Alguns anos da juventude de Constantino foram gastos na corte de Diocleciano e Galério na condição de refém. Ele testemunhou a publicação do decreto de perseguição na Nicomédia, em 303, e os horrores que se seguiram. Tendo conseguido fugir, ele seu uniu a seu pai na Grã-Bretanha. Em 306, Constâncio morreu na cidade de York. Ele tinha nomeado, como seu sucessor, seu filho Constantino, que foi, desse modo, saudado como Augusto pelo exército. Ele continuou e estendeu a tolerância que seu pai tinha outorgado aos cristãos.
Havia agora seis aspirantes à soberania do império – Galério, Licínio, Maximiano, Maxêncio, Maximino e Constantino. Seguiu-se uma cena de discórdia sem paralelo nos anais de Roma. Dentre esses rivais, Constantino possuía uma superioridade decidida no que diz respeito à prudência e capacidade, tanto militar quanto política. No ano 312, Constantino entrou em Roma vitorioso. Em 313, um novo decreto foi emitido, pelos quais os decreto de perseguição de Diocleciano foram revogados, os cristãos encorajados, seus mestres honrados, e os professantes do cristianismo avançaram a posições de confiança e influência no Estado. Esta grande mudança na história da igreja nos introduz ao período de Pérgamo (313 – 606 d.C.).
O Período de Pérgamo (313 – 606 d.C.)
Cremos que a epístola à igreja em Pérgamo descreve exatamente o estado das coisas na época de Constantino. Mas citaremos a carta inteira para a conveniência de nossos leitores, e então faremos a comparação: “E ao anjo da igreja que está em Pérgamo escreve: Isto diz aquele que tem a espada aguda de dois fios: Conheço as tuas obras, e onde habitas, que é onde está o trono de Satanás; e reténs o meu nome, e não negaste a minha fé, ainda nos dias de Antipas, minha fiel testemunha, o qual foi morto entre vós, onde Satanás habita. Mas algumas poucas coisas tenho contra ti, porque tens lá os que seguem a doutrina de Balaão, o qual ensinava Balaque a lançar tropeços diante dos filhos de Israel, para que comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem. Assim tens também os que seguem a doutrina dos nicolaítas, o que eu odeio. Arrepende-te, pois, quando não em breve virei a ti, e contra eles batalharei com a espada da minha boca. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao que vencer darei eu a comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.” (Apocalipse 2:12–17)
Em Éfeso vemos o primeiro passo da apostasia, ao deixarem seu “primeiro amor” – o coração escapando de Cristo e do desfrutar de Seu amor. Em Esmirna o Senhor permitiu que os santos fossem lançados na fornalha para que e o progresso do declínio estacionasse. Eles foram perseguidos pelos pagãos. Por meio dessas provas o cristianismo reviveu, o ouro foi purificado, os santos mantinham firmes o nome e fé de Cristo. Assim Satanás foi derrotado, e o Senhor determinou que os imperadores, um após o outro, nas mais humilhantes e mortificantes circunstâncias, publicamente confessassem sua derrota. Mas em Pérgamo o inimigo muda sua estratégia. Em vez da perseguição a partir de fora, agora vemos a sedução vinda de dentro. Sob Diocleciano ele é o leão que ruge, e sob Constantino ele é a serpente enganadora. Pérgamo é o cenário do poder lisonjeiro de Satanás: ele está dentro da igreja1. O nicolaísmo é a corrupção da graça – a carne agindo na igreja de Deus. Em Esmirna ele está do lado de fora como um adversário, em Pérgamo ele está do lado de dentro como um sedutor. Foi exatamente isto que aconteceu sob o reinado de Constantino.
Historicamente, foi quando a violência da perseguição tinha passado – quando os homens tinham se cansado de sua própria raiva, e quando eles viram que seus esforços nada mais faziam além de tornar os sofredores menos preocupados com as coisas do mundo e mais devotos ao cristianismo – enquanto até mesmo a quantidade de cristãos parecia aumentar – foi então que Satanás tenta um outro velho artifício, um que já tinha sido tão bem sucedido contra Israel (Números 25). Quando ele não pôde obter a permissão do Senhor para amaldiçoar Seu povo Israel, ele os seduziu até sua ruína por meio de alianças ilícitas com as filhas de Moabe. Como um falso profeta, ele estava agora na igreja de Pérgamo, seduzindo os santos a uma aliança ilícita com o mundo – o lugar de seu trono e autoridade. O mundo para de perseguir, e grandes vantagens são concedidas aos cristãos pelo estabelecimento civil do cristianismo. Constantino professava ser convertido, e atribui seus triunfos às virtudes da cruz. Infelizmente, a armadilha é bem-sucedida, a igreja é lisonjeada por seu patrocinador, aperta as mãos com o mundo, e afunda até sua posição, “que é onde está o trono de Satanás”. Tudo estava agora perdido quanto ao seu testemunho corporativo adequado, e assim o caminho até o papado se escancarou. Todas as vantagens mundanas foram sem dúvida adquiridas, mas, infelizmente, foi à custa da honra e glória de seu celestial Senhor e Salvador.
A igreja, devemos lembrar, é um chamado para fora (Atos 15:14) – chamados, para fora, dentre os judeus e gentios, para testemunhar que ela não é deste mundo, mas do céu – que ela está unida a um Cristo glorificado, e não é deste mundo, assim como Ele não é deste mundo. Assim Ele mesmo diz: “Não são do mundo, como eu do mundo não sou. Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.” (João 17:16–18)
A missão dos cristãos é do mesmo princípio e do mesmo caráter da missão de Cristo. “Assim como o Pai me enviou”, Ele diz, “também eu vos envio a vós.” (João 20:21). Eles foram enviados, por assim dizer, do céu para o mundo pelo bendito Senhor, para fazer Sua vontade, para cuidar por Sua glória, e para voltar para o lar quando o trabalho terminasse. Assim o cristão deveria ser a testemunha celestial da verdade de Deus, especialmente das verdades referentes à total ruína do homem, e sobre o amor de Deus em Cristo para um mundo a perecer; e, portanto, deveria buscar recolher almas para fora do mundo, para que sejam salvas da ira vindoura. Mas quando perdemos de vista nosso elevado chamado e nos associamos com o mundo como se pertencêssemos a ele, nos tornamos falsas testemunhas; causamos ao mundo uma grande lesão, e a Cristo uma grande desonra. Isto, como podemos verificar, foi o que a igreja fez quanto à sua posição e ação corporativa. Sem dúvidas, houve muitos casos de fidelidade individual em meio ao declínio generalizado. O Próprio Senhor fala do Seu fiel Antipas, que foi martirizado. O céu toma especial nota da fidelidade individual, e se lembra do fiel pelo nome.
Mas o olho e o coração do Senhor tinha seguido Sua pobre e infiel igreja até onde ela tinha caído. “Conheço as tuas obras”, diz Ele, “e onde habitas, que é onde está o trono de Satanás”. Que palavras solenes são estas, vindas dos lábios de seu desonrado Senhor! Nada era oculto a Seus olhos. “Eu sei”, Ele diz, “eu tenho visto o que aconteceu”. Mas o que, infelizmente, tinha agora acontecido? Por que a igreja, como um corpo, tinha aceitado os termos do imperador, e estava agora unida ao Estado, indo habitar no mundo? Isto era a Babilônia, espiritualmente – cometer fornicação com os reis da terra. Mas aquEle que anda no meio dos castiçais de ouro julga suas ações e sua condição. “E ao anjo da igreja que está em Pérgamo escreve: Isto diz aquele que tem a espada aguda de dois fios”. Ele toma o lugar de alguém armado com uma espada divina – o penetrante e incisivo poder da palavra de Deus. A espada é o símbolo do poder pelo qual as questões são resolvidas; seja ela a espada carnal das nações ou “a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Efésios 6:17).
Muitas vezes se ouve falar que sempre há uma conexão marcante e instrutiva entre o modo como Cristo Se apresenta, e o estado da igreja a qual Ele está se dirigindo. Isto é muito verdadeiro na carta em questão. A Palavra de Deus evidentemente tinha perdido seu lugar de direito na assembleia de Seus santos; ela não era mais a autoridade suprema nas coisas divinas. Mas o Senhor Jesus tem o cuidado de mostrar que ela não tinha perdido seu poder, ou lugar, ou autoridade em Suas mãos. “Arrepende-te, pois, quando não em breve virei a ti, e contra eles batalharei com a espada da minha boca”. Observe que ele não diz “batalharei contra vocês”, mas “contra eles”. Ao exercer disciplina na igreja, o Senhor age com discriminação e com misericórdia. A posição pública da igreja era agora uma posição falsa. Havia associação aberta com o príncipe deste mundo, no lugar de fidelidade a Cristo, o Príncipe dos céus. Mas aquele que tivesse um ouvido para ouvir o que o Espírito disse à igreja tinha uma secreta comunhão com aquEle que sustenta a alma fiel com o maná escondido. “Ao que vencer darei eu a comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe”. A deserção geral, sem dúvida, isolaria os poucos fiéis – um remanescente. A eles a promessa é dada.
O maná, como aprendemos em João 6, representa o Próprio Cristo, como aquEle que desceu do céu para dar vida a nossas almas. “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre” (João 6:51). Como aquEle que tomou o lugar de humilhação neste mundo, Ele é nossa provisão para o andar diário através do deserto. O maná devia ser colhido diariamente, fresco, das gotas de orvalho todas as manhãs. O “maná escondido” refere-se ao pote de ouro de maná que foi colocado na arca como um memorial diante do Senhor. É a bendita recordação de Cristo, que foi o Homem humilhado e sofredor neste mundo, e que é o eterno deleite de Deus e dos fiéis no céu. Não só a comunhão de verdadeiro coração dos santos com Cristo exaltado nas alturas, mas com Ele como aquele Jesus que uma vez foi humilhado aqui embaixo. Mas isso não pode ser se estivermos ouvindo as lisonjas e aceitando os favores do mundo. Nossa única força contra o espírito do mundo é andar com o Cristo rejeitado, e alimentarmo-nos dEle como nossa porção, mesmo agora. Nosso alto privilégio é comer, não apenas do maná, mas do “maná escondido”. Mas quem pode falar da bem-aventurança de tal comunhão, ou da perda daqueles que deixam seus corações escaparem de Cristo para se estabelecerem no mundanismo?
A “pedra branca” é uma marca secreta do favor especial do Senhor. Como a promessa é dada na carta a Pérgamo, isto pode significar a expressão da aprovação de Cristo quanto à maneira com que os “vencedores” testemunharam e sofreram por Ele, quando tantos foram levados pelas seduções de Satanás. Isto dá a ideia geral de uma promessa secreta de completa aprovação. Mas é difícil explicar. O coração pode entrar em sua bem-aventurança e ainda assim sentir-se incapaz de descrevê-la. Felizes aqueles que assim a conhecem em si mesmos. Há alegrias que são comuns a todos, mas há uma alegria, uma alegria especial, que será nossa própria alegria peculiar em Cristo, que durará para sempre. Isto será verdade para todos. “E na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe”. Que fonte indescritível de calmo repouso, doce paz, verdadeiro contentamento, e força divina, encontramos na “pedra branca”, e no “novo nome”, escrito por Suas próprias mãos. Outros podem nos interpretar mal, muitos podem pensar que estamos errados, mas Ele sabe tudo, e o coração pode aquietar-se, seja o que for que estiver acontecendo em nossas vidas. Ao mesmo tempo, devemos julgar tudo, inclusive nós próprios, pela Palavra de Deus – a espada afiada de dois gumes.
"Lá, no pão escondido
De Cristo – uma vez aqui humilhado –
Guardado por Deus – para sempre alimentar
Minh’alma, por seu amor, se animará.
Chamado por aquele nome secreto
De deleite não revelado
Bendita resposta ao opróbrio e vergonha -
Gravada na pedra branca."
(tradução livre da poesia constante da edição original em inglês)
Tendo assim brevemente estudado a epístola a Pérgamo, seremos mais capazes de entender a mente do Senhor quanto à conduta dos cristãos sob o reinado de Constantino. A igreja professa e o mundo juntaram as mãos, e estavam agora se divertindo juntos. Como o mundo não poderia se erguer ao elevado nível da igreja, ela caiu ao baixo nível do mundo. Foi exatamente isto que aconteceu. No entanto, a forma justa do cristianismo foi mantida, e não há dúvidas de que havia muitos que mantiveram firmes a fé e o nome de Jesus. Retornemos agora à conversão e história de Constantino, o Grande.
A Conversão de Constantino (ano 312 d.C.)
O grande evento na história religiosa de Constantino aconteceu em 312. Ele estava marchando da França para a Itália contra Maxêncio. A aproximação da batalha foi um momento de extrema importância. Ou seria sua ruína, ou ele se ergueria ao pináculo do poder. Ele estava imerso em um profundo pensamento. Sabia-se que Maxêncio esteve fazendo grandes preparações para a luta, aumentando seu exército e escrupulosamente participando de todas as costumeiras cerimônias do paganismo. Ele consultou com diligência os oráculos pagãos, e confiou seu sucesso à ação dos poderes sobrenaturais.
Constantino, embora fosse um sábio e virtuoso pagão, ainda assim era um pagão. Ele sabia com o que iria batalhar, e enquanto considerava a que deus ele devia se dirigir para obter proteção e sucesso, ele pensou nos modos de seu pai, o imperador do Ocidente. Ele se lembrou de que ele tinha orado ao Deus dos cristãos e sempre foi próspero, enquanto os imperadores que perseguiam os cristãos foram visitados com justiça divina. Ele decidiu, então, deixar de lado o serviço dos ídolos, e pedir a ajuda do verdadeiro Deus nos céus. Ele orou para que Deus se tornasse conhecido a ele, e para que o fizesse vitorioso sobre Maxêncio, apesar de todas as artes mágicas e rituais supersticiosos.
Enquanto envolvido em tais pensamentos, Constantino imaginou ter visto, logo após o meio-dia, uma aparição extraordinária nos céus: o sinal de uma cruz brilhante e sobre ela a inscrição: “Por este símbolo vencerás”. O imperador e todo o exército, que foi testemunha desse maravilhoso sinal, ficaram tomados pelo pavor. Mas enquanto o imperador meditava seriamente sobre o que a visão poderia significar, a noite veio, e ele caiu no sono. Ele sonhou que o Salvador lhe tinha aparecido, segurando nas mãos o mesmo sinal que ele tinha visto nos céus, e o instruiu a fazer uma bandeira com o mesmo padrão, e usá-la como estandarte na guerra, lhe assegurando que enquanto ele o fizesse, seria vitorioso. Constantino, ao acordar, descreveu o que lhe foi mostrado enquanto dormia, e resolveu adotar o sinal da cruz como seu lábaro imperial.
O Estandarte da Cruz
De acordo com Eusébio, os artífices em ouro e pedras preciosas foram imediatamente chamados, e receberam as ordens dos lábios de Constantino. Eusébio tinha visto o estandarte e fornece um longo relato sobre isso. Como um enorme interesse é lançado sobre essa relíquia da antiguidade por todos os escritores eclesiásticos, daremos ao leitor uma breve, porém minuciosa, descrição dele.
A haste, ou suporte perpendicular, era longa e banhada a ouro. Em seu topo havia uma coroa, composta de ouro e pedras preciosas, com a gravação do símbolo sagrado da cruz e as primeiras letras do nome do Salvador, ou a letra grega X sobreposta à letra P (XPISTOS em grego). Logo sob esta coroa estava a figura do imperador em ouro, e embaixo um crucifico de madeira, no qual pendia uma bandeira quadrada de tecido púrpura, bordada e coberta com pedras preciosas. Isso foi chamado de Lábaro. Esse resplandecente estandarte era carregado à frente dos exércitos imperiais e guardado por cinquenta homens escolhidos, supostamente invulneráveis devido ao caráter deles.
Constantino também mandou chamar mestres cristãos, a quem ele questionou sobre o Deus que lhe apareceu, e a importância do símbolo da cruz. Isto deu-lhes a oportunidade de direcionar sua mente para a Palavra de Deus e de instruí-lo no conhecimento de Jesus e de Sua morte na cruz. A partir de então o imperador se declarava a si mesmo um convertido ao cristianismo. A confiança e expectativas supersticiosas de Constantino e de seu exército estavam agora elevadas ao máximo. A batalha decisiva aconteceu na ponte Mílvia. Constantino conquistou uma notável vitória sobre seu inimigo, embora suas tropas não chegassem a um quarto do número das tropas de Maxêncio.
O Decreto de Constantino e Licínio (313 d.C.)
O vitorioso imperador fez uma rápida visita a Roma. Dentre outras coisas que ele fez ali, ele ordenou que fosse erguida, no fórum, uma estátua sua segurando em sua mão direita o estandarte em forma de uma cruz, com a seguinte inscrição: “Por este sinal salutar, o verdadeiro símbolo de coragem, eu liberto tua cidade do jugo do tirano.” Maxêncio foi encontrado no rio Tibre na manhã após a batalha. O imperador evidentemente sentiu que estava em débito para com o Deus dos cristãos e para com o símbolo sagrado da cruz por suas vitórias. E isto, ousamos dizer, foi o ponto máximo de seu cristianismo naquele tempo. Como um homem, ele não tinha sentido necessidade de um Salvador, se é que alguma vez sentiu. Mas como guerreiro, ele abraçou a religião cristã com seriedade. Mais tarde, como um homem do Estado, ele reconheceu e valorizou o cristianismo, mas só Deus sabe se alguma vez, como um pecador perdido, ele aceitou o Salvador. É difícil para príncipes serem cristãos.
Constantino procede, então, em direção ao Ilírico para se encontrar com Licínio, com quem tinha formado uma aliança secreta antes de ir ao confronto contra Maxêncio. Os dois imperadores se encontraram em Milão, onde a aliança deles foi ratificada pelo casamento de Licínio com a filha de Constantino. Foi durante esse momento de paz que Constantino persuadiu Licínio para que consentisse em repelir os decretos de perseguição de Diocleciano, e a emissão de um novo decreto de completa tolerância. Tendo nisto concordado, um decreto público, assinados por ambos Constantino e Licínio, foi emitido em Milão, em 313 d.C., em favor dos cristãos, o que pode ser considerado como a maior garantia oficial da liberdade deles. Completa e ilimitada tolerância lhes foi concedida; suas “igrejas” e propriedades foram restauradas sem compensação; e, assim, exteriormente, o cristianismo florescia.
Mas a paz entre os imperadores, que parecia ter sido estabelecida sobre um fundamento firme, foi logo interrompida. Inveja, amor ao poder e a ambição pela soberania no império Romano não permitiriam que ficassem por muito tempo em paz. Uma guerra irrompeu no ano 314, mas Licínio foi derrotado com grandes perdas, tanto de homens quanto de território. Uma nova época de paz novamente começou, que durou cerca de nove ano. Uma nova guerra tornou-se inevitável, e mais uma vez assumiu a forma de embate religioso entre os imperadores rivais. Licínio aderiu à causa dos sacerdotes pagãos e perseguiu os cristãos. Ele condenou à morte muitos dos bispos que ele sabia que eram muito especiais e favoritos na corte de seu rival. Ambos os partidos faziam agora preparativos para um confronto que deveria resolver definitivamente a questão. Licínio, antes de sair para a guerra, sacrificou aos deuses e os louvou em discurso público. Constantino, por outro lado, confiou no Deus cujo símbolo acompanhava seu exército. Os dois exércitos hostis se encontraram. A batalha foi feroz, obstinada e sanguinária. Licínio não era um adversário qualquer, mas o gênio dominante, a atividade e a coragem de Constantino prevaleceu. A vitória estava completa. Licínio sobreviveu a sua derrota por cerca de apenas um ano. Ele morreu, ou talvez tenha sido assassinado em privado, em 326. Constanino tinha agora alcançado o auge de sua ambição. Ele se tornou o único soberano do Império Romano, e continuou assim até sua morte em 337. Para uma descrição da carreira política e militar desse grande príncipe devemos indicar ao leitor a história civil; vamos agora brevemente tomar nota de sua carreira religiosa.
A História Religiosa de Constantino
Tudo o que sabemos sobre a religião de Constantino até o período de sua assim chamada “conversão” indica que ele era, exteriormente, se não zelosamente, um pagão. O próprio Eusébio admite que ele estava, nesta época, em dúvida sobre qual religião abraçaria. Política, superstição, hipocrisia e inspiração sobrenatural foram as influências decisivas, em menor ou maior grau, em sua futura história religiosa. Mas seria certamente injusto supor que sua profissão do cristianismo, e suas declarações públicas em seu favor, eram nada mais do que uma deliberada e intencional hipocrisia. Tanto seu caminho religioso quanto eclesiástico admitem uma explicação muito mais elevada e natural. Mas também não podemos acreditar que tenha havido algo de inspiração divina, seja em sua visão ao meio-dia ou em seu sonho à noite. Pode ter ocorrido alguma aparição incomum no sol ou nas nuvens, que a imaginação converteu em um sinal miraculoso da cruz; e a outra aparição pode ter sido fruto do exagero de um sonho em decorrência de seu estado de elevada ansiedade: mas toda essa história pode agora ser considerada uma fábula, cheia de bajulações ao grande imperador, e muito gratificante para seu grande admirador e panegirista, Eusébio. Não há como colocá-la entre os registros autênticos da História.
Política e superstição tiveram, sem dúvida, uma grande influência na mudança que se operou na mente de Constantino. Desde sua juventude ele tinha testemunhado a perseguição aos cristãos e deve ter observado uma vitalidade na religião deles que se erguia acima do poder de seus perseguidores, e sobrevivia diante da queda de todos os outros sistemas. Ele tinha visto um imperador após outro, que tinham sido inimigos públicos do cristianismo, morrerem a mais terrível morte. Apenas seu pai – dentre todos os imperadores – o protetor do cristianismo durante a longa perseguição, tinha descido a um túmulo honrado e pacífico. Fatos tão marcantes não poderiam falhar em influenciar a mente supersticiosa de Constantino. Além disso, ele pode ter apreciado com sagacidade política a influência moral do cristianismo, sua tendência a impor obediência pacífica ao governo civil, e a imensa adesão que obviamente havia na mente de quase metade de seu império.
Os motivos do imperador, no entanto, são fazem parte da nossa história, não necessitando nos ocupar por muito mais tempo. Porém, de modo a enxergarmos com mais clareza esse período tão importante e de grande reviravolta na história da igreja, pode ser interessante olhar para o estado da igreja em que Constantino a encontrou em 313, e como ele a deixou em 337.
A Condição na Qual Constantino Encontrou a Igreja
Até esse tempo a igreja tinha sido perfeitamente livre e independente do Estado. Ela tinha uma constituição divina direta dos céus – e fora do mundo. Ela trilhava seu caminho, não pelo patrocínio do Estado, mas por poder divino, contra qualquer influência hostil. Em vez de receber apoio do governo civil, ela tinha sido perseguida desde o início como um inimigo estrangeiro, como uma obstinada e pestilenta superstição. Dez vezes foi permitido ao diabo levantar contra ela todo o mundo romano, que dez vezes teve que confessar sua fraqueza e derrota. Se ela tivesse mantido em mente o dia de suas bodas e o amor daquEe que diz “Nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja” (Efésios 5:29), ela nunca teria aceitado a proteção de Constantino ao custo de sua fidelidade a Cristo. Mas a igreja como um todo estava agora muito misturada com o mundo, e muito longe de seu primeiro amor.
Já vimos que, desde os dias dos apóstolos, houve um crescente amor pelo mundo e por sua pompa exterior. Por causa desta tendência, tão natural a nós todos, o Senhor permitiu, em amor, que Satanás a perseguisse. Mas a igreja, em vez de aceitar a prova como um castigo vindo da mão do Senhor, e desejando o mundanismo, se cansou de seu lugar e caminho de rejeição, e pensando que ainda assim poderia agradar e servir ao Senhor, passou a andar sob a luz do mundo. Esta ilusão satânica foi cumprida por Constantino, embora ele não soubesse o que estava fazendo. “Quaisquer que fossem os motivos de sua conversão”, diz Milman, “Constantino, sem dúvida, adotou uma política prudente e criteriosa, ao garantir a aliança, em vez de continuar a luta, com um adversário que dividia a riqueza, o intelecto, se não também a propriedade e a população do império.”
A União da Igreja com o Estado
No mês de março de 313, os proclamas da aliança profana entre a igreja e o Estado foram publicados em Milão. O celebrado decreto daquela data conferiu aos cristãos completa tolerância, e abriu o caminho para o estabelecimento legal do cristianismo e para sua ascensão sobre todas as outras religiões. Isto foi publicamente demonstrado no novo estandarte imperial - o Lábaro. Além das iniciais de Cristo2 e do símbolo de Sua cruz, havia também uma imagem do imperador em ouro. Estes signos, ou motes, foram concebidos como objetos de adoração, tanto para os soldados pagãos quanto cristãos, e para animar-lhes o entusiasmo no dia da batalha. Assim, aquele que é chamado de grande imperador cristão uniu publicamente o cristianismo e a idolatria.
Mas se temos entendido a mente de Constantino corretamente, não podemos hesitar em dizer que, naquele tempo, ele era um pagão de coração, e um cristão apenas por motivos militares. Foi apenas como um soldado supersticioso que ele tinha abraçado o cristianismo. Naquele momento ele estava pronto para receber a assistência de qualquer divindade tutelar em suas lutas pelo império universal. Não podemos ver qualquer traço de cristianismo, muito menos qualquer traço de zelo de um novo convertido: mas podemos facilmente identificar os traços da velha superstição do paganismo na roupagem nova de cristianismo. Se não fosse por tais considerações, o Lábaro teria sido a exibição da mais ousada desonra ao bendito Senhor. Mas foi tudo feito em ignorância. Ele estava também ansioso em atender às mentes de seus soldados e súditos pagãos, e dissipar-lhes os medos quanto à segurança de sua velha religião.
Os primeiros decretos de Constantino, embora favoráveis ao cristianismo em seus efeitos, foram dados em termos cautelosos de modo a não interferir nos direitos e liberdades do paganismo. Mas os cristãos gradualmente foram crescendo em seu favor, e seus atos de bondade e liberalidade falaram mais alto que os decretos. Ele não somente os restaurou quanto aos seus direitos civis e religiosos dos quais tinham sido privados, e as “igrejas” e propriedades que lhes tinham sido publicamente confiscadas na perseguição diocleciana; como também permitiu-lhes, por seus próprios presentes generosos, construir muitos novos lugares para suas assembleias. Ele demonstrou grande favor aos bispos e os tinha constantemente com ele no palácio, em suas viagens e em suas guerras. Ele também demonstrou seu grande respeito pelos cristãos ao entregar a educação de seu filho Crispo nas mãos do celebrado cristão Lactâncio. Mas com todo esse patrocínio real, ele assumiu a supremacia sobre os assuntos da igreja. Ele aparecia nos sínodos dos bispos sem seus guardas, se misturava em seus debates, e controlava a resolução das questões religiosas. A partir desse tempo o termo “Católica” era aplicado invariavelmente, em todos os documentos oficiais, à igreja.
Constantino como “Cabeça da Igreja” e Sumo Sacerdote dos Pagãos
Após a total derrota de Licínio, à qual já nos referimos, todo o mundo romano estava reunido sob o cetro de Constantino. Em sua proclamação emitida aos seus novos súditos no Oriente, ele declara a si mesmo como o instrumento de Deus para a disseminação da verdadeira fé, e que Deus tinha lhe dado a vitória sobre todos os poderes das trevas, de modo que sua própria adoração por seus próprios meios fosse universalmente estabelecida. “Liberdade”, diz ele, em uma carta a Eusébio, “sendo mais uma vez restaurada e, pela providência do grande Deus e de meu próprio ministério, o dragão sendo expulso da ministração do Estado, eu confio que o poder divino tenha se tornado manifesto a todos, e que aqueles que, através do medo ou incredulidade tenham caído em muitos crimes, chegarão ao conhecimento do verdadeiro Deus, e à correta e verdadeira ordem em suas vidas.” Constantino tinha então tomado seu lugar mais abertamente a todo o mundo como a “cabeça da igreja”; mas ao mesmo tempo retinha o ofício de Pontifex Maximus – o sumo sacerdote do paganismo; a isto ele nunca renunciou, tendo morrido como “cabeça da igreja” e sumo sacerdote do paganismo.
Esta aliança profana, ou mistura profana da qual já falamos, e que é mencionada e lamentada na carta a Pérgamo, se encontra em todos os passos na história desse grande príncipe histórico. Mas tendo já visto algumas explicações sobre a carta, deixaremos que o próprio leitor compare a verdade e a história de forma piedosa. Que misericórdia termos tal guia ao estudarmos esse marcante período da história da igreja!
Dentre os primeiros Atos do agora único imperador do mundo estava a revogação de todos os decretos de Licínio contra os cristãos. Ele libertou todos os prisioneiros das masmorras e das minas, ou da servil e humilhante ocupação a qual eles tivessem sido desdenhosamente condenados. Todos os que foram privados de seus postos no exército ou no serviço civil foram restaurados, e restituições foram feitas para as propriedades das quais tinham sido despojados. Ele emitiu um decreto endereçado a todos os seus súditos, aconselhando-lhes a abraçar o evangelho, mas não pressionando ninguém; ele desejava que fosse uma questão de convicção. Ele esforçou-se, no entanto, em torná-lo atraente concedendo lugares e honras a prosélitos das mais altas classes e doações aos pobres – uma atitude que, como reconhece Eusébio, produziu uma grande quantidade de hipocrisia e conversão fingida. Ele ordenou que “igrejas” fossem construídas em todos os lugares, e que tivessem o tamanho suficiente para acomodar toda a população. Ele proibiu a construção de estátuas aos deuses, e não permitia que sua própria estátua fosse colocada nos templos. Todos os sacrifícios oficiais foram proibidos, e de muitas formas ele se esforçou em elevar o cristianismo e suprimir o paganismo.
Os Efeitos do Favor Real
Chegamos agora à consideração do que tem sido o grande problema histórico dos homens de todos os credos, nações e paixões: a saber, quem causou maior dano à igreja e ao povo de Deus na terra: o Estado, que procura o avanço do cristianismo pelos modos mundanos ao seu comando, ou o poder terreno que se opõe pela violência? Devemos admitir que muito pode ser dito quanto à grande bênção da tolerância imparcial, e das grandes vantagens da supressão legal de todos os costumes perversos para a sociedade; mas o favor da corte sempre foi causa de ruína para a verdadeira prosperidade da igreja de Deus. É uma grande graça não ser molestado, mas é maior ainda a graça de não ser patrocinado por príncipes. O verdadeiro caráter dos cristãos é de estrangeiros e peregrinos neste mundo. A posse de Cristo, e de Cristo no céu, mudou tudo para os cristãos na terra. Eles agora pertenciam ao céu, e agora eram estrangeiros na terra. Eles são os servos de Cristo no mundo, embora não sejam do mundo. O céu é seu lar; aqui eles não têm cidade permanente. O que a igreja deveria esperar de um mundo que crucificou o seu Senhor? Ou ainda, o que ela deveria aceitar deste mundo? Sua verdadeira porção aqui é o sofrimento e rejeição; como diz o apóstolo: “Como está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte todo o dia; Somos reputados como ovelhas para o matadouro.” O Senhor pode poupar Seu povo, mas se a prova deve vir, não devemos pensar que algo estranho nos tenha acontecido. “No mundo tereis aflições” (Romanos 8:36, João 16:33)
O Testemunho da História
Até mesmo pela história podemos provar que foi melhor para o cristianismo quando os cristãos estavam sofrendo na fogueira por Cristo do que quando foram festejados nos palácios dos reis e cobertos pelos favores reais. Para ilustrar nossa questão, daremos ao leitor uma página da história da grande perseguição sob Diocleciano, e uma dos mais brilhantes dias de Constantino. Citaremos ambos dos escritos de Milman, mais tarde conhecido como Decano de St. Paul, e que, portanto, não pode ser suspeito de injustiça para com o clero. Falaremos apenas dos fiéis. É bem sabido que nas últimas perseguições, quando as assembleias dos cristãos tinham aumentado bastante, muitos provaram a infidelidade no dia da prova, embora estes eram comparativamente poucos, e muitos deles mais tarde se arrependeram.
“A perseguição tinha já durado seis ou sete anos (309), mas em nenhuma parte do mundo o cristianismo demonstrava qualquer sinal de decadência. Estava tão profundamente enraizado nas mentes dos homens, amplamente promulgado e vigorosamente organizado para ser incapaz de suportar esse violento, porém inútil, choque. Se sua adoração pública era suspensa, os crentes se reuniam em secreto, ou cultivavam na inexpugnável privacidade do coração os inalienáveis direitos da consciência. Mas, é claro, a perseguição caiu com maior peso sobre os mais eminentes do corpo. Aqueles que resistiam à morte eram animados pela presença das multidões que, se não se atreviam a aplaudir, mal podiam esconder sua admiração. Mulheres se aglomeravam para beijar as bordas das vestes dos mártires, e suas cinzas espalhadas, ou os ossos insepultos, eram roubados pelo zelo devoto de seus rebanhos.”
Sob o decreto emitido do leito de morte de Galério, a perseguição cessou, e aos cristãos foi permitido o livre e público exercício de sua religião. Este tempo de respirar durou apenas alguns meses. Mas que grandiosa a vista do que se seguiu, e que testemunho da verdade e do poder do cristianismo! O Decano continua dizendo:
“A cessação da perseguição acabou por mostrar sua extensão. As portas da prisão foram abertas, as minas devolveram seus trabalhadores condenados, em todo lugar fileiras de cristãos eram vistas se apressando até as ruínas de suas ”igrejas“ e visitando os lugares santificados por sua antiga devoção. As vias públicas, as ruas e os locais de mercado das cidades ficaram cheias de longas procissões cantando salmos de louvores por sua libertação. Aqueles que tinham mantido sua fé sob essas severas provas receberam as carinhosas congratulações de seus irmãos; aqueles que tinham falhado na hora da aflição se apressaram a confessar seu fracasso e a buscar por readmissão no então alegre rebanho.”
Vamos agora nos voltar para o estado alterado das coisas sob Constantino, cerca de vinte anos depois da morte de Galério. Observe a grande mudança na posição do clero.
“Os bispos apareciam como participantes regulares da corte, e as dissensões internas do cristianismo se tornaram assuntos de Estado. O prelado governava, agora nem tanto por sua admitida superioridade na virtude cristã, mas pela inalienável autoridade de seu ofício. Ele abria ou fechava a porta da ”igreja“, que era equivalente a uma admissão ou exclusão da felicidade eterna. Ele pronunciava as sentenças de excomunhão, que lançava para fora o trêmulo delinquente no meio dos perdidos e moribundos pagãos. Ele tinha seu trono na parte mais distinta do templo cristão, e embora ainda atuasse na presença e em nome de seu colégio de presbíteros, ainda assim era reconhecido como a cabeça de uma grande comunidade, sobre cujo destino eterno ele mantinha um vago, mas não por isso menos imponente e terrível, domínio.”3
Questões intelectuais e filosóficas tomaram o lugar da verdade do evangelho, e a mera religião exterior no lugar da fé, do amor, e da mente voltada para as coisas celestiais. Um Salvador crucificado, a verdadeira conversão, a justificação somente pela fé, a separação do mundo, são assuntos nunca conhecidos por Constantino, e provavelmente nunca introduzidos em sua presença. “A conexão entre o mundo físico e moral tinha se tornado um tópico geral e, pela primeira vez, tinha se tornado uma verdade primária de uma religião popular, e naturalmente, não podia se isentar da mescla com as paixões populares. A humanidade, mesmo dentro da esfera do cristianismo, retornou à condição judia mais inflexível e, em seu espírito, assim como em sua linguagem, o Antigo Testamento começou a dominar sobre o evangelho de Cristo.”
O Verdadeiro Caráter da Igreja Desaparece
Por mais agradável, para a mera natureza, que pudesse parecer a luz do favor imperial, ela foi a destruidora do verdadeiro caráter do cristão individual e da igreja como conjunto. Tanto o testemunho de um Cristo rejeitado na terra quanto de um Cristo exaltado no céu foram esquecidos. O mundo era batizado, em vez de somente os crentes como estando mortos e ressuscitados com Cristo – como tendo morrido em Sua morte, e ressuscitado em Sua ressurreição. A Palavra de Deus é clara: “Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos.” (Colossenses 2:12). O batismo é aqui usado como um símbolo tanto da morte quanto da ressurreição. Mas a quem essa solene e sagrada ordenança era agora administrada? Novamente, repetimos: ao mundo romano. A fé em Cristo, o perdão dos pecados e a aceitação no Amado não eram critérios para o batismo por parte do subserviente clero.
Sendo a profissão do cristianismo vista então como o caminho seguro para a riqueza e honra, todos os níveis e classes da sociedade se candidataram ao batismo. Nas festas da Páscoa e do Pentecostes, milhares, todos vestidos com as vestes brancas do neófito4, se aglomeravam ao redor de diferentes “igrejas”, aguardando serem batizadas. O número de pessoas era tão grande, e toda a cena era tão marcante, que muitos pensaram que tais novos convertidos fossem a inumerável multidão mencionada no livro do Apocalipse, que estaria diante do Cordeiro trajada de vestes brancas. De acordo com alguns escritores, cerca de doze mil homens, além das mulheres e crianças, foram batizados em um só ano em Roma, e uma túnica branca, com vinte peças de ouro, foi prometida pelo imperador para cada novo convertido das classes mais pobres. Sob tais circunstâncias, e por estes recursos mercenários, concretizou-se a queda do paganismo, e o cristianismo sentou no trono do mundo romano.
O Batismo e Morte de Constantino
O batismo de Constantino deu origem a quase tanta especulação quanto sua conversão. Apesar do grande zelo que ele demonstrava em favor do cristianismo, ele adiou seu batismo e, consequentemente, sua recepção na igreja, até a aproximação de sua morte. Muitos motivos, tanto políticos quanto pessoais, foram sugeridos por diferentes escritores como as razões do adiamento; mas tememos que o verdadeiro era pessoal. A superstição já tinha, nessa época, ensinado os homens a conectarem o perdão dos pecados ao rito do batismo. Sob esse terrível engano Constantino parece ter adiado seu batismo até que não pudesse mais desfrutar de suas honrarias imperiais e saciar suas paixões nos prazeres do mundo. É impossível conceber qualquer indulgência papal mais destrutiva para a alma, mais desonrosa para o cristianismo, e mais perigosa para toda a virtude moral. Era uma licença para que pessoas como Constantino perseguissem os grandes objetos de sua ambição por meio dos tenebrosos caminhos de sangue e crueldade, uma vez que colocava em suas mãos maneiras de conseguir um perdão fácil quando fosse conveniente. Mas, por outro lado, podemos pensar que tenha sido uma grande misericórdia do Senhor que alguém cuja vida privada e doméstica – assim como sua carreira pública – fosse tão manchada de sangue, não professasse publicamente o cristianismo ao receber o batismo e participar da ceia do Senhor.
Os bispos, a quem ele chamou ao palácio da Nicomédia em sua última doença, ouviram sua confissão, se deram por satisfeitos e o abençoaram. Eusébio, bispo da Nicomédia, o batizou! Ele agora professava, pela primeira vez, que se Deus poupasse sua vida ele se uniria à assembleia de Seu povo, e que, tendo usado as vestes brancas do neófito, ele jamais usaria novamente o púrpura do imperador. Mas essas decisões foram feitas tarde demais: ele morreu pouco tempo depois de seu batismo, no ano 337:5
Helena, a mãe do imperador, merece uma breve menção. Ele abraçou a religião professada por seu filho. Sua devoção, piedade e generosidade eram grandes. Ela viajou por vários lugares, visitando os lugares sagrados que tinham sido cenários dos principais eventos da história das Escrituras, e ordenou que o templo de Vênus, que Adriano tinha construído no local do santo sepulcro, fosse demolido, e deu instruções para que uma “igreja”, que deveria exceder todas as outras em esplendor, fosse construída no local. Ela morreu em 328 d.C.
Já vimos, infelizmente com tanta clareza, a verdade dolorosa das palavras do Senhor, de que a igreja estava habitando onde estava o trono de Satanás. Constantino a deixou lá. Ele a encontrou aprisionada em minas, masmorras e catacumbas, e afastada da luz do céu, e a colocou no trono do mundo. Mas o quadro ainda não está completo: devemos tomar nota de outras características na história, recorrendo à semelhança na epístola.
O reinado de Constantino foi marcado não apenas pela igreja sendo retirada de seu lugar correto através dos enganos de Satanás, mas também pelos amargos frutos dessa mudança degradante. As sementes do erro, da corrupção e da dissensão se espalharam rapidamente, e agora apareciam publicamente perante os tribunais do mundo, e em alguns casos diante do mundo pagão.
As Controvérsias do Donatismo e do Arianismo
Duas grandes controvérsias – o donatismo e o arianismo – tiveram seu início nesse reinado: o primeiro surgiu no Ocidente a partir de uma disputada nomeação à dignidade episcopal em Cartago; e o último, de origem oriental, envolvia os próprios fundamentos do cristianismo. O arianismo era uma questão de doutrina, e o donatismo de prática. Ambos estavam corrompidos em suas próprias fontes e essências, e podem ser representados pelo falso profeta e, especialmente, pelos nicolaítas. Vamos agora observar brevemente essas duas cismas, uma vez que lançam luz sobre a natureza e os resultados da união da igreja com o Estado. O imperador tomava parte nos conselhos dos bispos como “cabeça da igreja”.
Na morte de Mensúrio, bispo de Cartago, um concílio de bispos das redondezas foi convocado para nomear seu sucessor. O concílio era pequeno – pois a organização estava por conta de Botrus e Celésio, dois presbíteros que aspiravam ao cargo – mas foi Ceciliano, um diácono que era muito amado pela congregação, que foi eleito bispo. Os dois desapontados presbíteros protestaram contra a eleição. Mensúrio morreu estando ausente de Cartago em uma viagem, mas antes de sair de casa ele tinha confiado alguns bens da igreja a alguns anciãos da congregação, e tinha deixado um inventário nas mãos de uma mulher piedosa. Este foi entregue a Ceciliano que, é claro, exigiu que os artigos dos anciãos fossem devolvidos, mas eles não estavam disposto a entregá-los, uma vez que supunham que ninguém jamais iria perguntar sobre eles após o velho bispo ter morrido. Assim eles se uniram ao partido de Botrus e Celésio, em oposição ao novo bispo. A cisma foi também apoiada pela influência de Lucila, uma senhora rica a quem Ceciliano tinha anteriormente ofendido por uma repreensão piedosa; e assim toda a província assumiu o direito de interferir no assunto.
Donato, bispo de Casa Nigra, colocou-se à frente da facção cartaginesa. Segundo, primaz de Numídia, por convocação de Donato, apareceu em Cartago liderando setenta bispos. Este auto-instituído concílio intimou Ceciliano a comparecer perante eles, alegando que ele não deveria ter sido consagrado exceto na presença deles e do primaz da Numídia; além disso, considerando que Ceciliano tinha sido um traditor6 , não podia ser bispo, e assim o concílio declarou anulada sua eleição. Ceciliano se recusou a reconhecer a autoridade do concílio, mas eles prosseguiram em eleger Majorino para o cargo de bispo, que eles declararam vago pela excomunhão de Ceciliano. Infelizmente, para a reputação dos bispos, Majorino pertencia à família de Lucila que, para apoiar a eleição, doou grandes somas de dinheiro para garantir a eleição, que os bispos dividiram entre si. Uma cisma decidida estava agora formada, e muitas pessoas que estavam indiferentes a Ceciliano, depois disso, voltaram a ter comunhão com ele.
Alguns relatos dessas discórdias chegaram aos ouvidos de Constantino. Ele tinha acabado de se tornar o senhor do Ocidente, e tinha enviado uma grande soma de dinheiro para o alívio das igrejas africanas. Eles tinham sofrido muito durante as últimas perseguições. Mas, como os donatistas eram tidos como sectários, ou dissidentes da verdadeira igreja católica, ele ordenou que os presentes e privilégios conferidos aos cristãos pelos último decretos fossem limitados àqueles em comunhão com Ceciliano. Isto levou os donatistas a uma petição ao imperador, desejando que sua causa pudesse ser examinada pelos bispos da Gália, de quem supunham que a imparcialidade poderia ser esperada. Aqui, pela primeira vez, temos uma aplicação do poder civil para nomear uma Comissão de Juízes Eclesiásticos.
Constantino concordou: um concílio foi realizado e Roma, em 313, que consistiu de cerca de vinte bispos. A decisão foi a favor de Ceciliano, que logo a seguir propôs termos de reconciliação e reunião; mas os donatistas desprezaram qualquer compromisso. Eles suplicaram ao imperador por outra audiência declarando que um sínodo de vinte bispos era insuficiente para anular a sentença de setenta que tinham condenado Ceciliano. Por esta representação Constantino convocou outro concílio. O número de bispos presentes era muito grande, vindos da África, Itália, Sicília, Sardenha, e especialmente da Gália. Esta foi a maior assembleia eclesiástica que houve até então. Eles se reuniram em Arles, no ano de 314. Ceciliano foi novamente absolvido, e vários decretos canônicos foram estabelecidos com vista ao término das dissensões africanas.
Nesse meio-tempo Majorino morreu, e um segundo Donato foi apontado como seu sucessor. Ele foi apelidado pelos seus seguidores como “o Grande”, a fim de distingui-lo do primeiro Donato. Ele é descrito como alguém erudito, eloquente, de grande capacidade, e que possuía a energia e o zelo ardente do temperamento africano. Os sectários, como eram chamados, assumiram então a alcunha de os donatistas, tomando o caráter, assim como o nome, de seu chefe.
Constantino como o Árbitro das Diferenças Eclesiásticas
Novamente os donatistas suplicaram ao imperador pela causa deles, e nessa ocasião para levar a questão inteiramente por suas próprias mãos, ao que ele concordou, embora ofendido pela obstinação deles. Ele ouviu o caso em Milão no ano 316, onde proferiu a sentença em concordância com os concílios de Roma e Arles. Ele também emitiu decretos contra eles, aos quais ele mais tarde repeliu ao ver as perigosas consequências das medidas violentas. Mas o donatismo logo se tornou uma cisma feroz, generalizada e intolerante na igreja. Já em 330 eles tinham crescido tanto que um sínodo foi realizado por 270 bispos, e em alguns períodos de sua história houve sínodos de cerca de 400 bispos. Eles provaram ser uma grande aflição para as províncias da África por mais de 300 anos – na verdade, até a época da invasão maometana.
Reflexões sobre a Primeira Grande Cisma na Igreja
Como esta foi a primeira cisma que dividiu a igreja, pensamos ser interessante nos ocuparmos com alguns detalhes. O leitor pode aprender algumas lições necessárias a partir dessa divisão memorável. Ela começou com um incidente tão insignificante em si que mal mereceria um lugar na história. Não havia qualquer questão de má doutrina ou de imoralidade, mas apenas uma eleição disputada para a Sé de Cartago. Um pouco de correção, um pouco de abnegação, um verdadeiro desejo pela paz, unidade e harmonia da igreja, e acima de tudo um cuidado adequado pela glória do Senhor, teriam prevenido centenas de anos de tristeza por dentro e desgraça por fora para a igreja de Deus. Mas ao orgulho, à avareza e à ambição – tristes frutos da carne – foi permitido que realizassem seu terrível trabalho. O leitor também pode ver, pelo lugar que o imperador tinha nos concílios da igreja, quão cedo sua posição e caráter foram totalmente alterados. Quão estranho deve ter parecido para Constantino que, imediatamente após ter adotado a cruz como seu estandarte, um apelo fosse feito ao seu próprio tribunal por uma decisão episcopal sobre assuntos eclesiásticos! Isto provou a condição do clero. Mas devemos notar as consequências que tal apelo envolve: se a parte contra quem a sentença do poder civil foi dada se recusasse a acatá-la, eles se tornariam transgressores da lei. E foi exatamente isso o que aconteceu.
Os donatistas foram, portanto, tratados como ofensores das leis imperiais; eles foram privados de suas “igrejas” e muitos deles sofreram banimento e confiscação. Até mesmo a pena de morte foi decretada contra eles, embora não pareça que essa lei tenha sido aplicada em qualquer caso durante o reinado de Constantino. Medidas poderosas, no entanto, foram utilizadas pelo Estado visando compelir os donatistas a se reunirem com os católicos. Mas, como é comum em tais casos, e como a experiência tem sempre demonstrado, a força que era usada para compeli-los apenas serviu para desenvolver o espírito selvagem da facção que já existia em sua semente. Despertados pela perseguição, estimulados pelo discursos de seus bispos e especialmente por Donato, que era a cabeça e alma de seu partido, eles incorreram em toda espécie de fanatismo e violência.
Constantino, ensinado pela experiência, por fim descobriu que, embora ele pudesse dar proteção à igreja, ele não podia dar-lhe paz. E assim ele emitiu um decreto concedendo aos donatistas total liberdade de agir de acordo com suas próprias convicções, declarando que isto era um assunto que pertencia ao julgamento de Deus.7
A Controvérsia Ariana
Mal tinha a paz exterior da igreja sido assegurada pelo decreto de Milão e ela foi distraída por dissensões internas. Pouco após o rompimento da cisma donatista na província da África, a controvérsia ariana, que tinha sua origem no Oriente, se estendeu a todas as partes do mundo. Já falamos dessas raivosas contendas como o mais amargo fruto da união antibíblica da igreja com o Estado. Não que elas necessariamente surgiram a partir dessa união, mas pelo fato de Constantino ter se tornado o chefe declarado e ostensivo da igreja, e por ele presidir em suas assembleias solenes, questões de doutrina e prática produziam uma agitação por todo o corpo da igreja, e não apenas na igreja como também exerciam uma poderosa influência política sobre os assuntos do mundo. Sendo o império então cristão, ao menos em princípio, tais questões eram de interesse e importância mundial. A partir daí a controvérsia ariana foi a primeira que rasgou todo o corpo de cristãos, e dispôs em quase todas as partes do mundo os partidos hostis em implacável oposição.
Heresias de natureza semelhante à de Ário tinham aparecido na igreja antes de sua ligação com o Estado, mas sua influência raramente se estendia além da região e do período de seu nascimento. Após alguns debates ruidosos e palavras raivosas, a heresia caía em desonra, e era logo quase esquecida. Mas foi muito diferente com a controvérsia ariana. Constantino, que se sentava no trono do mundo e assumia ser a única cabeça da igreja, interpôs sua autoridade de modo a prescrever e definir os princípios precisos da religião que ele tinha estabelecido. A Palavra de Deus, a vontade de Cristo, o lugar do Espírito, as relações celestiais da igreja, foram todas perdidas de vista – ou melhor, nunca tinham sido vistas pelo imperador. Ele tinha provavelmente ouvido algo sobre as numerosas opiniões pelas quais os cristãos se dividiam; mas ele viu, ao mesmo tempo, que eles eram uma comunidade que tinha continuado a avançar em vigor e magnitude; que eles eram realmente unidos em meio às heresias, e fortes sob a mão de ferro da opressão. Mas ele não podia ver, nem podia entender, que então, apesar de seu fracasso, ela estava olhando para o Senhor e inclinando-se apenas nEle neste mundo. Qualquer outra mão estava contra ela e era guiada pelo trabalho e pelo poder do inimigo. Mas, declaradamente, ela estava prosseguindo através do deserto, encostada em seu Amado, e nenhuma arma forjada contra ela podia prosperar.
O imperador, sendo completamente ignorante das relações celestiais da igreja, pode ter pensado que, como ele podia dar-lhe completa proteção da opressão externa, ele podia também, pela sua presença e poder, dar-lhe paz e descanso das dissensões internas. Mas ele mal sabia que, não obstante estas estarem muito além de seu alcance, a própria segurança, facilidade mundana e indulgência que ele tão generosamente concedia ao clero eram os principais meios que fomentavam discórdias e inflamavam as paixões dos disputantes. E assim aconteceu que ele era continuamente atacado pelas reclamações e acusações mútuas de seus novos amigos.
O Início do Arianismo
O arianismo foi o crescimento natural das opiniões gnósticas, e Alexandria, o viveiro das questões metafísicas e distinções sutis, seu local de nascimento. Paulo de Samata e Sabélio da Líbia, no terceiro século, ensinavam falsas doutrinas similares à de Ário no quarto século. As seitas gnósticas em suas diferentes variedades, e a maniqueísta, que era a religião persa com uma mistura de cristianismo, podem ser consideradas religiões rivais, mas como facções cristãs, no entanto, todas elas fizeram sua obra má entre os cristãos quanto à doutrina da Trindade. Quase todas essas heresias, como são comumente chamadas, tinham caído sob o descontentamento real, e seus seguidores eram sujeitos a regulamentos penais. Os montanistas, paulitas, novacianos, marcionitas e valentinianos estavam entre as seitas proscritas e perseguidas. Mas havia uma outra heresia, uma mais profunda e tenebrosa, e muito mais influente do que qualquer outra que já tinha aparecido, que estava para estourar a partir do próprio seio da assim chamada “santa igreja católica”. A seguir temos um relato do que aconteceu.
Alexandre, o bispo de Alexandria, em uma reunião com seus presbíteros, parece ter se expressado livremente sobre o assunto da Trindade, quando Ário, um dos presbíteros, questionou a verdade das posições de Alexandre, alegando que estavam aliadas aos erros sabelianos, que tinham sido condenados pela igreja. Essa disputa levou Ário a declarar suas próprias visões sobre a Trindade, que eram, em essência, a negação da divindade do Salvador – que Ele seria apenas o primeiro e mais nobre dos seres criados, formado a partir do nada por Deus Pai – que, embora imensuravelmente superior em poder e em glória aos mais elevados seres criados, Ele seria inferior ao Pai. Ele também defendia que, embora inferior ao Pai em natureza e em dignidade, Ele é a imagem do Pai e o representante do poder divino pelo qual Ele criou os mundos. Quais eram suas visões sobre o Espírito Santo não são tão claramente expostas.8
O arianismo não apenas é inconsistente com o lugar dado ao Filho do começo ao fim das Escrituras, como também com a obra infinita de reconciliação e nova criação, e é distintamente refutada de antemão por muitas passagens das Sagradas Escrituras. Pode ser interessante citar algumas delas aqui. Aquele que, quando nascido de mulher, foi chamado Jesus, o Espírito de Deus declara (João 1:1–3) ser, no princípio, o Verbo que estava com Deus e era Deus. “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez”. É impossível conceber um testemunho mais poderoso de Sua subsistência não criada, de Sua personalidade distinta quando Ele estava com Deus antes da criação, e de Sua natureza divina. Ele é aqui mencionado como o Verbo, cujo correlato não é o Pai, mas Deus (e assim deixando espaço para o Espírito Santo); mas, para que Sua própria consubstancialidade fosse enfatizada, Ele é cuidadosa e definitivamente declarado Deus9. Voltando para além do tempo e da criatura, tão longe quanto alguém possa pensar, “no princípio era o Verbo”. A linguagem é muito precisa: Ele estava no princípio com Deus, não no sentido de vir a ser ou chegar a ser, mas “Ele estava” em Seu próprio absoluto ser. Todas as coisas “vieram à existência” através dEle. Ele foi o Criador tão completamente que o apóstolo João acrescenta: “sem ele nada do que foi feito se fez”. Por outro lado, quando a encarnação é afirmada no versículo 14, a linguagem é: “E o Verbo se fez carne”, não no sentido de ser absoluto, mas no sentido de vir a ser. Além disso, quando Ele veio entre os homens, Ele é descrito como “o Filho unigênito, ’que está’ [não apenas que estava ou esteve] no seio do Pai” (João 1:18) – uma linguagem ininteligível e confusa a menos que se considere como demonstração de que Sua humanidade de modo algum diminui Sua divindade, e que a proximidade infinita do Filho com o Pai sempre subsiste.
Novamente, Romanos 9:5 é uma rica e precisa expressão da imutável e suprema Divindade de Cristo igualmente com o Pai e o Espírito. Cristo veio, “o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém”. Os esforços dos críticos heterodoxos dão testemunho de toda a importância da verdade que eles em vão procuram abalar por esforços artificiais que somente fazem transparecer a insatisfação de seus autores. Não há mais enfática afirmação da suprema divindade em toda a Bíblia; porque a humilhação do Filho na encarnação e na morte de cruz a torna a mais cabal prova da divina supremacia que pode ser usada a favor dEle.
Em seguida, o apóstolo diz de Cristo: “O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele.” (Colossenses 1:15–17). Os devaneios dos gnósticos são aqui antecipadamente cortados fora, pois demonstra que Cristo foi o chefe de toda a criação porque Ele foi o Criador, tanto dos seres invisíveis mais elevados quanto dos visíveis: todas as coisas são ditas terem sido criadas para Ele assim como por Ele; e como Ele é antes de tudo, assim tudo subsiste juntamente em virtude dEle.
A única outra passagem que preciso agora referenciar é Hebreus 1, onde o apóstolo ilustra a plenitude da Pessoa de Cristo entre outras escrituras do Antigo Testamento como o Salmos 45 e 102. No primeiro Ele é tratado como Deus e ungido como homem; no outro Ele é reconhecido como Jeová, o Criador, após Ele ser ouvido derramando Sua aflição como o rejeitado Messias.
É impossível, então, aceitar a Bíblia sem rejeitar o arianismo como um libelo hediondo contra Cristo e a verdade, pois não existe maior certeza de que Ele tenha se tornado um homem do que Ele ser Deus antes da criação, sendo Ele Próprio o Criador, o Filho e Jeová.
Alexandre, indignado com as objeções de Ário contra ele, e por causa de suas opiniões, o acusou de blasfêmia. “O ímpio Ário”, exclamou, “o precursor do Anticristo se atreveu a proferir suas blasfêmias contra o divino Redentor”. Ele foi julgado por dois concílios reunidos em Alexandria, e expulso da igreja. Ele se retirou para a Palestina, mas de modo nenhum desencorajado por sua desgraça. Muitos simpatizavam com ele, dentre eles dois clérigos chamados de Eusébio: um da Cesareia, o historiador eclesiástico, e outro, bispo da Nicomédia, um homem de imensa influência. Ário manteve uma correspondência animada com seus amigos, ocultando suas opiniões mais ofensivas, e Alexandre emitiu avisos contra ele, e recusou todas as intercessões de seus amigos que o queriam restaurado. Mas Ário era um antagonista astuto. Ele é descrito na história como uma pessoa alta e graciosa, calmo, pálido e de aparência branda; de discurso popular, mas com argumentação afiada; de vida rigorosa e irrepreensível, e de modos agradáveis; mas assim, sob um exterior humilde e mortificado, ele ocultou os mais fortes sentimentos de vaidade e ambição. O adversário tinha habilmente selecionado seu instrumento. A aparente posse de tantas virtudes o tornou adequado para o propósito do inimigo. Sem essas aparências de justo ele não teria poder algum para enganar.
A Primeira Impressão de Constantino sobre a Controvérsia
A dissensão logo se tornou tão violenta que julgou-se necessário apelar ao imperador. Ele, a princípio, considerou a questão toda como totalmente insignificante e sem importância. Ele escreveu uma carta a Alexandre e Ário em conjunto, na qual ele os reprova por contender sobre questões ociosas e diferenças imaginárias, e recomenda que eles suprimissem todos os sentimentos profanos de animosidade, e que vivessem em paz e unidade10. É mais que provável que o imperador não tivesse ideia da séria natureza da disputa, ou não teria falado dela como insignificante e sem importância: mas se a carta foi elaborada por Hosius, bispo de Córdoba, como muitos acreditam, ele não podia alegar ignorância de seu caráter, e deve ter escrito o documento de acordo com os sentimentos expressos por Constantino, e não de acordo com seu próprio julgamento. A carta foi altamente exaltada por muitos como um modelo de sabedoria e moderação, e, se não fosse a questão de maior abrangência que fixar a data da Páscoa, realmente mereceria tal elogio. Mas a Divindade e a glória de Cristo estavam em questão e, consequentemente, a salvação da alma.
Hosius foi enviado ao Egito como o comissário imperial, a quem a resolução do caso foi confiada. Mas ele descobriu que a dissensão ocasionada pela controvérsia tinha se tornado tão séria que ambas as partes se recusaram a ouvir as advertências do bispo, mesmo acompanhado da autoridade do soberano.
N. do T.: no sentido de profissão cristã↩
As letras normalmente empregadas para representar o nome do Salvador eram LH.S, que significa Jesu Hominum Salvator – Jesus, o Salvador dos homens.↩
História do Cristianismo, vol. 2, pp. 283–308. Neander, vol. 3, p. 41. Vida de Constantino, por Eusébio.↩
N. do T.: neófito é o mesmo que “novo convertido”. As vestes do neófito eram trajes brancos usados pelos novos convertidos na ocasião do batismo.↩
Vida de Constantino, de Eusébio, p. 147↩
“Um nome de infâmia dado àqueles que, para salvarem suas vidas durante a perseguição, tinham entregue as Escrituras ou bens da igreja aos perseguidores.” Milner, vol. 1, p. 513↩
Neander, vol. 3, p. 244; Robertson, vol. 1, p. 175; Milman, vol. 2, p. 364.↩
A doutrina blasfema de Ário era um desdobramento do gnosticismo, talvez a menos ofensiva em aparência, mas direta e inevitavelmente destrutiva para a glória pessoal do Filho como Deus e, portanto, derrubava as bases da redenção. O unitarianismo moderno nega que o Senhor Jesus seja mais que um homem, negando até mesmo Seu nascimento sobrenatural da virgem Maria. No entanto, Socino afirmou que houve uma modificação singular em sua exaltação após Sua ressurreição, constituindo-O como um objeto adequado de adoração divina. Ário parecia se aproximar da verdade quanto a Sua preexistência antes de ter vindo ao mundo, e afirmava que Ele é o Filho de Deus, que criou o universo, mas manifestava que Ele próprio tinha sido criado, mesmo sendo a primeira e mais elevada das criaturas. Não era a mesma coisa que a negação sabeliana das personalidades distintas, mas a negação de que o Filho, e é claro também o Espírito, são a verdadeira, distintiva, essencial e eterna Divindade.↩
A ausência do artigo aqui é necessariamente devido ao fato de que meos é o predicado de o Aoyos, que de modo nenhum poderia dar um sentido inferior de Sua Divindade, o que contradiria o próprio contexto. De fato, se o artigo tivesse sido inserido, seria uma heterodoxia muito grosseira, pois seus efeitos seriam a negação de que o Pai e o Espírito são Deus ao excluir a todos menos o Verbo da Divindade.↩
Veja a Carta em Vida de Constantino, de Eusébio, vol. 2↩
Roma e seus Governantes (313 d.C.—397 d.C.)
O Concílio de Niceia
Constantino se via agora obrigado a analisar com mais atenção a natureza da disputa. Ele começou a entender que a questão não tinha nada de insignificante, mas era da mais alta e essencial importância; e assim resolveu convocar uma assembleia de bispos de modo a estabelecer a verdadeiro doutrina, e para dissipar para sempre, como ele em vão esperava, esta propensão à disputa hostil. Tudo o que era necessário para a viagem dos bispos foi fornecido a cargo público, como se fosse um assunto de Estado.
No mês de junho de 325 d.C., o primeiro concílio geral da igreja se reuniu em Niceia, na Bitínia. Cerca de 318 bispos estavam presentes, além de um número muito grande de sacerdotes e diáconos. “A flor dos ministros de Deus”, como diz Eusébio, “de todas as igrejas que abundam na Europa, África e Ásia, agora se reuniram”. O espetáculo era totalmente novo, e certamente ninguém estava tão surpreso como os próprios bispos. Não havia passado muitos anos desde que foram marcados como os objetos da mais cruel perseguição. Eles tinham sido escolhidos por causa de sua eminência como vítimas peculiares da política de extermínio do governo. Muitos deles levavam em seus corpos as marcas dos sofrimentos por Cristo. Eles tinham conhecido o que era ser conduzido ao exílio, trabalhar em minas, ser exposto a todo o tipo de humilhação e insulto. Mas agora tudo tinha mudado, mudado tanto que eles mal podiam acreditar que aquilo era realidade e não uma visão. Os portões do palácio se abriram para eles, e o imperador do mundo agiu como o moderador da assembleia.
Nada podia confirmar e declarar tanto ao mundo a triste queda da igreja e sua submissão ao Estado como o lugar que tinha o imperador nesses concílios. Ele não chegou em Niceia até o dia 3 de julho. No dia seguinte os bispos se reuniram no hall do palácio, que tinha sido preparado para o propósito. Aprendemos de Eusébio que a assembleia se sentou em profundo silêncio, enquanto os grandes oficiais do Estado e outras pessoas honráveis entravam no salão, e assim esperaram em trêmula expectativa a aparição do imperador. Constantino, com muita demora, entrou; ele estava vestido esplendidamente: os olhos dos bispos ficaram ofuscados com o ouro e as pedras preciosas de seu traje. A assembleia inteira levantou-se para dar-lhe honra. Ele avançou até um assento de ouro preparado para ele, e ali ficou parado em pé, em respeitosa deferência aos dignatários espirituais, até que foi convidado a se sentar. Após cantarem um hino de louvor, ele deu uma exortação sobre a importância da paz e união. O concílio sentou-se ali por pouco mais de dois meses, e Constantino parece ter estado presente durante a maior parte das sessões, ouvindo com paciência, e conversando livremente com os diferentes prelados.
O Credo Niceno
A celebrada confissão de fé geralmente chamada de “O Credo Niceno” foi o resultado das longas e solenes deliberações da assembleia. Eles decidiram contra as opiniões arianas, e firmemente mantiveram as doutrinas da Santíssima Trindade, da verdadeira Divindade de Cristo, e de Sua unidade com o Pai em poder e glória. O próprio Ário foi levado perante o concílio e questionado quanto à sua fé e doutrina; ele não hesitou em repetir, como sua crença, as falsas doutrinas que tinham destruído a paz da igreja. Enquanto ele avançava com suas blasfêmias, os bispos concordemente taparam os ouvidos e clamaram que tais opiniões ímpias eram dignas de anátema juntamente com seu autor. Santo Atanásio, embora fosse no momento apenas um diácono, chamou a atenção de todo o concílio por seu zelo em defesa da verdadeira fé, e por sua penetração em desvendar e expor os artifícios dos heréticos. Veremos mais sobre o nobre Atanásio mais adiante.
Este famoso credo foi assinado por todos os bispos presentes, com a exceção de uns poucos arianos. Sendo a decisão do concílio apresentada perante Constantino, ele imediatamente reconheceu a aprovação unânime do concílio como obra de Deus, e a recebeu com reverência, declarando que todas as pessoas que se recusassem a se submeter a ela deveriam ser banidas. Os arianos, ouvindo isso, impelidos pelo medo assinaram a fé estabelecida pelo concílio. Eles, portanto, colocaram-se numa posição em que podiam ser acusados de serem homens desonestos. Apenas dois bispos, Segundo e Teonas, ambos egípcios, continuaram a aderir a Ário, e foram banidos com ele para a Ilíria. Eusébio da Nicomédia e Teognis de Niceia foram condenados cerca de três meses depois, e sentenciados pelo imperador ao banimento. Várias penalidades foram então denunciadas contra os seguidores de Ário: todos os seus livros foram sentenciados a serem queimados, e era até mesmo considerada ofensa capital esconder qualquer de seus escritos. Tendo concluído o trabalho, os bispos se dispersaram para suas respectivas províncias. Além da solene declaração da opinião deles sobre a doutrina em questão, eles finalmente definiram também sobre a questão relacionada a celebração da Páscoa1 e estabeleceram alguns outros assuntos que foram levados diante deles.
Constantino Muda de Ideia
Como o imperador não tinha um juízo independente próprio sobre os assuntos eclesiásticos, e certamente não tinha discernimento espiritual para essas controvérsias doutrinárias, não podia-se confiar na continuidade de seu favor. Em pouco mais de dois anos ele mudou completamente de opinião. No entanto, esses dois anos foram cheios de acontecimentos na história doméstica de Constantino que eram muito mais sérios do que uma mudança de ideia quanto ao arianismo. No mesmo ano em que ele convocou o concílio de Niceia, ele deu ordens privadas para a execução de Crispo, seu filho mais velho, e para o sufocamento em banho quente de sua esposa, Fausta, com quem estava casado por cerca de vinte anos. A história não pode encontrar motivos melhores para essas obras das trevas além de um ciúme mesquinho e indigno. Dizem que a sabedoria e bravura de Crispo, na derrubada final de Licínio, excitou o ciúme de seu pai, e isto foi provavelmente fomentado por Fausta, que era sua madrasta. Sabendo que ele foi amargamente reprovado por sua crueldade para com o seu próprio filho, ele ordenou a morte de Fausta em seu remorso e miséria. Como temos expressado um julgamento muito decidido contra a natureza ímpia da ligação entre a igreja e o Estado, já falamos demais sobre a vida privada do imperador, de modo que o leitor pode julgar quanto à aptidão — ou melhor, inaptidão — de alguém tão manchado de sangue poder se sentar como presidente em um concílio cristão. Desde aquele dia até hoje a igreja estatal tem sido exposta à mesma contaminação, seja na pessoa do soberano ou do comissário real.
Constância, a viúva de Licínio e irmã de Constantino, possuía grande influência sobre seu irmão. Ela simpatizava com os arianos e estava sob influência deles. Em seu leito de morte, em 327, ela conseguiu convencer o irmão que uma injustiça tinha sido feita contra Ário, e o persuadiu a convidar Ário para sua corte. Ele o fez, e Ário apareceu apresentando ao imperador uma confissão de sua fé. Ele expressou, de modo geral, sua crença na doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e suplicou que o imperador pusesse um fim às inúteis especulações para que a cisma fosse curada e todos, unidos, pudessem orar pelo reinado pacífico do imperador, e por toda a sua família. Por sua confissão plausível e seus belos discursos, ele alcançou seu objetivo. Constantino expressou estar satisfeito, e assim Ário e seus seguidores, por sua vez, ficaram em posições elevadas no favor imperial. Os que tinham sido banidos foram chamados de volta. Uma lufada de ar real mudou o aspecto externo de toda a igreja. O partido ariano tinha agora posse total da influência de peso do imperador, e logo se apressaram a utilizá-la.
Atanásio, Bispo de Alexandria
No concílio de Niceia, Atanásio participou de modo distinto; seu zelo e habilidades logo o designaram como a cabeça do partido ortodoxo, e como o mais poderoso antagonista dos arianos. Após a morte de Alexandre, no ano 326, ele foi elevado à Sé de Alexandria pela voz universal de seus irmãos. Ele tinha então apenas trinta anos de idade, e sabendo algo sobre os perigos assim como sobre as honras do ofício, ele teria preferido uma posição menos responsável; porém ele acabou cedendo aos mais sinceros desejos de uma congregação afetuosa. Ele se manteve como bispo por quase meio século. Sua longa vida foi devotada ao serviço do Senhor e de Sua verdade. Ele continuou firme na fé e inflexível em seu propósito até sua última hora de vida, do mesmo modo como a posição nobre que ele demonstrou no concílio de Niceia. A divindade de Cristo não era para ele uma mera opinião especulativa, mas a fonte e força de toda sua vida cristã. E em nenhum outro lugar ela pode ser encontrada por qualquer outro, como o apóstolo nos assegura. “E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida.” (1 João 5:11,12). Essa vida habita no Filho unigênito do Pai. Ele é “a vida eterna”. E esta vida, para o louvor da glória da graça de Deus, é dada a todos que creem no verdadeiro Cristo de Deus. Ao receber a Cristo, recebemos a vida eterna e nos tornamos filhos de Deus — herdeiros de Deus — e co-herdeiros com Cristo. Esta vida não é propriedade de qualquer mera criatura, por mais exaltada que possa ser. Os anjos santos possuem uma existência muito bendita e incessante pelo poder de Deus, mas o cristão tem vida eterna através da fé em Cristo, pela graça de Deus. Nada pode ser mais fatal ao bem-estar da alma humana do que a doutrina de Ário. Mas vamos retornar à nossa história.
Enquanto o avanço de Atanásio à Sé de Alexandria dava grande alegria e esperança aos seus amigos, também encheu seus inimigos com o mais amargo ressentimento. Eles agora viam como o grande líder dos católicos2 o bispo daquela igreja da qual Ário tinha sido expulso, e que foi apoiado pelas afeições de seu povo e por uma centena de bispos que juraram fidelidade ao grande bispo de Alexandria. Eles sabiam de seu poder e zelo incansável em defesa dos decretos do Concílio Niceno, e podem ter julgado de forma correta que, se sua sua influência tinha sido tão grande quando em âmbito restrito, o que poderia-se esperar quando ele foi colocado em posição tão eminente? Dessa forma, eles deixaram de lado seus planos e uniram forças para derrotá-lo.
Atanásio Contesta a Autoridade de Constantino
Eusébio da Nicomédia inicialmente recorreu a medidas aparentemente amigáveis para com Atanásio, com o propósito de induzi-lo a readmitir Ário à comunhão da igreja. Mas, falhando completamente, ele influenciou o imperador para que lhe ordenasse a fazê-lo. Um mandato imperial foi emitido para que Ário e todos os seus amigos, que estavam dispostos a se ligarem mais uma vez à igreja católica, fossem recebidos; e informando a Atanásio que, se não o fizesse, ele deveria ser deposto de sua posição e mandado ao exílio. Atanásio, no entanto, não se deixou intimidar pelos decretos imperiais, mas firmemente respondeu que não poderia reconhecer pessoas que tinham sido condenadas por um decreto de toda a igreja. “Constantino agora descobria, para seu espanto”, diz Milman, “que um decreto imperial — que deveria ser obedecido em trêmula submissão de uma ponta à outra do império romano, mesmo se ele tivesse decretado uma revolução política completa, ou prejudicasse as propriedades e privilégios de milhares — foi recebido com deliberada e decidida indiferença por um único bispo cristão. Durante dois reinados, Atanásio contestou a autoridade do imperador”3. Ele suportou a perseguição, calúnia, exílio; sua vida estava em constante perigo em defesa da grande e fundamental verdade — a divindade do bendito Senhor. Ele enfrentou o martírio, não pela ampla distinção entre cristianismo e paganismo, mas por essa única doutrina central da fé cristã.
Uma sucessão de queixas contra Atanásio foram levadas ao imperador pelo partido ariano — ou, mais propriamente, o partido eusebiano. Mas estaria fora de nosso propósito entrar em detalhes: ainda temos de traçar um pouco mais a linha prateada nessa nobre e fiel testemunha.
A acusação mais pesada era de que Atanásio havia enviado uma soma de dinheiro para uma pessoa no Egito para ajudá-la em um projeto de conspiração contra o imperador. Ele foi intimado a comparecer e responder pela acusação. O clérigo obedeceu e pôs-se diante dele. Mas a aparição pessoal de Atanásio, um homem de poder notável sobre as mentes dos outros, parece ter inspirado temor à alma de Constantino. As acusações frívolas e infundadas foram triunfalmente refutadas por Atanásio perante um tribunal de inimigos, e assim a virtude imaculada de seu caráter foi inegavelmente estabelecida. E tal foi o efeito da presença de Atanásio sobre o imperador que ele denominou-o um homem de Deus e considerou seus inimigos como os autores dos distúrbios e divisões. Mas esta impressão teve curta duração, uma vez que ele continuava governado pelo partido eusebiano.
O Concílio de Tiro
Em 334, Atanásio foi intimado a comparecer perante um concílio na Cesareia. Ele se recusou, alegando que o tribunal era composto de seus inimigos. No ano seguinte, ele foi citado diante de outro concílio que seria realizado em Tiro pela autoridade imperial, no qual ele compareceu. Mais de cem bispos estavam presentes, e uma comissão de leigos do imperador direcionaram o processo. Uma multidão de acusações foram trazidas contra o destemido clérigo; mas o mais tenebroso, e o único que iremos tomar nota, era o crime duplo de magia e assassinato. Disseram que ele tinha matado Arsênio, um bispo de Mileto — que tinha cortado-lhe uma das mãos, e que tinha usado ela em rituais de magia; uma mão tinha sido forjada como prova. Mas Atanásio estava preparado para a acusação. O Deus da verdade estava com ele. Ele calmamente perguntou se os que estavam presentes ali conheciam Arsênio. Ele era bem conhecido por muitos. Um homem foi, de repente, levado à corte, coberto da cabeça aos pés por um manto. Atanásio primeiro descobriu sua cabeça. Ele foi logo reconhecido como o assassinado Arsênio. Em seguida suas mãos foram descobertas, e assim foi provado que se tratava de Arsênio, vivo e não mutilado. O partido ariano tinha feito o melhor que pôde para esconder Arsênio, mas o Senhor estava com Seu inocente servo, e os amigos de Atanásio conseguiram encontrá-lo. A malícia dos arianos sem escrúpulos foi novamente exposta, e a inocência de Atanásio triunfalmente vindicada.
Mas os inimigos implacáveis do bispo continuaram com suas acusações. Mais uma vez ordenaram-lhe que comparecesse em Constantinopla, e que respondesse por si mesmo na presença imperial.
As velhas acusações, nesta ocasião, foram retiradas, mas uma nova foi habilmente escolhida, com vista a despertar a desconfiança do imperador. Eles afirmaram que Atanásio tinha ameaçado interromper o fluxo de navios que transportavam milho do porto de Alexandria para Constantinopla. Deste modo, uma fome seria iniciada na capital. Isto tocou o orgulho do imperador e, seja pela crença na acusação, ou pelo desejo de se livrar de uma pessoa tão influente, ele o baniu para Treves, na Gália. A injustiça da sentença é inquestionável.
Reflexões Sobre os Grandes Eventos do Reinado de Constantino
Antes de prosseguirmos com nossa história geral, será interessante fazer uma pausa por um momento e considerar o significado das grandes mudanças que ocorreram, tanto na posição da igreja quanto no mundo, durante o reinado de Constantino, o Grande. Não seria demais dizer que a igreja passou pelas mais importantes crises de sua história, e que a queda da idolatria pode ser considerada como o evento mais importante em toda a história do mundo. Desde um período pouco após o dilúvio, a idolatria tinha prevalecido entre as nações da terra, e Satanás, por seus artifícios, tinha sido o objeto de adoração. Mas todo o sistema da idolatria foi condenado por todo o mundo romano, se não finalmente derrubado, por Constantino; de qualquer modo, ela tinha recebido sua ferida mortal.
A igreja, sem dúvida, perdeu muito por sua união com o Estado. Ela não mais existia como uma comunidade separada, e não era mais governada exclusivamente pela vontade de Cristo. Ela tinha abandonado sua independência, perdido seu caráter celestial, e se tornado inseparavelmente identificada com as paixões e interesses do poder governante. Tudo isso foi extremamente triste, e o fruto de sua própria incredulidade. Mas, por outro lado, o mundo ganhou muito com essa mudança. Isto não pode ser ignorado em nossas lamentações sobre o fracasso da igreja. O estandarte da cruz agora se erguia por todo o império; Cristo era publicamente proclamado como o único Salvador da humanidade; e as santas escrituras eram reconhecidas como a Palavra de Deus, o único guia seguro e certo para a bem-aventurança eterna. Antes mesmo de estar ligada ao poder civil, a igreja professa estava, sem dúvida, espiritualmente fraca, e assim deve ter pensado mais em seu bem-estar do que em sua missão de bênção para os outros; no entanto, Deus pôde agir por meio dessas novas oportunidades, e acelerar o desaparecimento das terríveis abominações da idolatria da face do mundo romano.
A legislação geral de Constantino ostenta evidências do trabalho silencioso dos princípios cristãos, e os efeitos dessas leis humanas seriam sentidas muito além do círculo imediato da comunidade cristã. Ele promulgou leis para a melhor observância do domingo; contra a venda de crianças como escravas, o que era comum entre os pagãos; e também contra o furto de crianças com o objetivo de vendê-las, assim como muitas outras leis, tanto de caráter social quanto moral, que nos são informadas pelas histórias já citadas. Mas o maior e mais influente evento de seu reinado foi o extermínio dos ídolos, e a elevação de Cristo. Dizem que os etíopes e ibéricos foram convertidos ao cristianismo durante esse reinado.
Os Filhos de Constantino (de 337 a 361 d.C.)
Constantino, o Grande, foi sucedido por seus três filhos, Constantino II, Constâncio e Constante. Eles foram educados na fé do evangelho, e tinham sido nomeado Césares por seu pai, e em sua morte eles dividiram o império entre eles. Constantino II ficou com a Gália, Espanha e Grã-Bretanha; Constâncio ficou com as províncias asiáticas e com a capital, Constantinopla; e Constante ficou com a Itália e a África. O início do novo reinado foi caracterizado — como era habitual naqueles tempos — pela morte dos parentes que podiam um dia se provarem rivais ao trono. Mas juntamente com os velhos e usuais ciúmes e hostilidades políticas, um novo elemento agora aparece — a controvérsia religiosa.
O filho mais velho, Constantino, era favorável aos católicos, e sinalizou o começo de seu reinado chamando Atanásio de volta, e colocando-o novamente como bispo de Alexandria. Mas em 340 Constantino II foi morto em uma invasão da Itália, e Constante tomou posse dos domínios de seu irmão, se tornando, assim, o soberano de dois terços do império. Ele era favorável às decisões do concílio de Niceia, e aderiu com firmeza à causa de Atanásio. Constâncio, sua imperatriz e a corte eram parciais ao arianismo. E assim a guerra religiosa começou entre os dois irmãos — entre o Oriente e o Ocidente —- e foi levada adiante sem justiça ou humanidade, o que não tinha nada a ver com o espírito pacífico do cristianismo. Constâncio, como seu pai, interferiu tanto nos assuntos da igreja, que pretendia ser um teólogo, e durante todo o seu reinado o império foi incessantemente agitado pela controvérsia religiosa. Os concílios se tornaram tão frequentes que estabelecimentos públicos eram constantemente empregados para abrigar os bispos em contínua viagem; de ambos os lados, concílios foram reunidos para se oporem a outros concílios. Mas como o principal evento do período, assim como a linha prateada da graça de Deus, está conectada a Atanásio, retornaremos a sua história.
A História de Atanásio
Após um banimento de dois anos e quatro meses, Atanásio foi restaurado a sua diocese pelo jovem Constantino II, onde foi recebido com uma recepção alegre por seu rebanho. Mas a morte desse príncipe expôs Atanásio a uma segunda perseguição. Constâncio, que é descrito como um homem vaidoso, mas fraco, logo se tornou um cúmplice secreto dos eusebianos. No final de 340, ou início de 341, um concílio se reuniu na Antioquia para a dedicação de uma “igreja” esplêndida que tinha sido fundada pelo velho Constantino. Dizem que o número de bispos foi de cerca de 97, dos quais 40 eram eusebianos. Dentre o número de cânones que foram aprovados, foi decidido, e com certa aparência de equidade, que um bispo deposto por um sínodo não podia retomar suas funções episcopais até que ele tivesse sido absolvido pelo julgamento de um outro sínodo de igual autoridade. Esta lei foi evidentemente passada com uma referência especial ao caso de Atanásio, e o concílio pronunciou, ou melhor, confirmou, sua destituição. Gregório, um capadócio, um homem de caráter violento, foi nomeado para a Sé, e Filágrio, o prefeito do Egito, foi instruído a apoiar o novo primaz com os poderes civis e militares da província. Sendo Atanásio o favorito do povo, eles se recusaram a ter um bispo nomeado pelo imperador: cenas de desordem, indignação e profanação se seguiram. “A violência se achou necessária para apoiar a iniquidade”, diz Milner, “e um príncipe ariano foi obrigado a trilhar os passos de seus antecessores pagãos para apoiar o que ele chamava de igreja”.
Atanásio, oprimido pelos clérigos asiáticos, retirou-se de Alexandria e passou três anos em Roma. O pontífice romano, Júlio, com um sínodo de 50 bispos italianos, o proclamou inocente, e confirmou-lhe a comunhão da igreja. Não menos que cinco credos tinham sido elaborados pelos bispos orientais nas assembleias convocadas em Antioquia entre 341 e 345, com o fim de ocultar suas verdadeiras opiniões; mas nenhum deles admitia estar livre de um elemento ariano, embora as posições mais ofensivas do arianismo fossem professamente condenadas. Os dois imperadores, Constâncio e Constante, se tornaram então ansiosos para curar a brecha que existia entre as igrejas orientais e ocidentais, e de acordo eles convocaram um concílio a ser reunido em Sárdica, na Ilíria, em 347 d.C., para decidir os pontos disputados. Noventa e quatro bispos do Ocidente e vinte e dois do Oriente, estando reunidos e devidamente considerados os assuntos de ambos os lados, decidiram em favor de Atanásio: o partido ortodoxo restaurou o primaz perseguido de Alexandria e condenou a todos o que se opunham a ele como inimigos da verdade. No meio tempo, o intruso Gregório morreu, e Atanásio, em seu retorno a Alexandria, após um exílio de oito anos, foi recebido com júbilo universal. “A entrada do arcebispo em sua capital”, disse alguém, “foi um cortejo triunfal: a ausência e a perseguição tinham tornado ele querido para os alexandrinos, e sua fama foi difundida da Etiópia até a Grã-Bretanha ao longo de toda a extensão do mundo cristão.”
Após a morte de Constante, o amigo e protetor de Atanásio, em 350, o covarde Constâncio sentiu que era a hora de vingar suas feridas privadas contra Atanásio, que não tinha mais Constante para defendê-lo. Mas como ele iria cumprir seu objetivo era a dificuldade. Se ele decretasse a morte do mais eminente cidadão, a ordem cruel seria executada sem qualquer hesitação; mas a condenação e morte de um bispo popular devia ser causada com cautela, demora e alguma aparência de justiça. Os arianos começaram a trabalhar em um plano; eles renovaram suas maquinações, e mais concílios foram convocados.
Os Concílios de Arles e Milão
No ano 353 um sínodo foi realizado em Arles, e em 355 um outro em Milão. Mais de 300 bispos estavam presentes no último. As sessões do concílio foram realizadas em um palácio, estando Constâncio e seus guardas presentes. A condenação de Atanásio foi artisticamente representada como a única medida que podia restaurar a paz e união da igreja católica. Mas os amigos do primaz eram verdadeiros para com seu líder e para com a causa da verdade. Eles asseguraram ao imperador, no espírito mais humano e cristão, que nem a esperança de seu favor, nem o medo de seu desprazer, os convenceria a se unir na condenação de um ausente, inocente e honrado servo de Cristo. O debate foi longo e obstinado; o excitado interesse foi intenso, e os olhos de todo o império se fixaram em um único bispo. Mas o imperador ariano era impaciente, e antes que o concílio de Milão fosse dissolvido, o arcebispo da Alexandria tinha sido solenemente condenado e deposto. Uma perseguição geral foi direcionada contra todos os que lhe eram favoráveis, e também para efeitos de forçar a conformidade com a opinião do imperador. E tão afiada a perseguição se tornou que o partido ortodoxo levantou um clamor de que os dias de Nero e de Décio tinham retornado. O próprio Atanásio encontrou um refúgio nos desertos do Egito.
A Morte e os Sucessores de Constâncio
No ano 361, Constâncio, o patrono dos arianos, morreu. Assim como seu pai, ele adiou seu batismo até pouco tempo antes de sua morte. Os dias prósperos dos arianos estavam então acabados.
Juliano, comumente chamado de “o Apóstata”, sucedeu ao trono, e, provavelmente para mostrar sua total indiferença à questão teológica em disputa, ordenou a restauração dos bispos que Constâncio tinha banido. Após um breve reinado de 22 meses, e de uma vã tentativa de reviver o paganismo, ele morreu repentinamente de uma ferida no peito por uma seta persa.
Joviano, que sucedeu imediatamente Juliano ao trono, professava o cristianismo. Ele foi o primeiro dos imperadores romanos que deu evidências claras de que realmente amava a verdade como ela é em Jesus. Ele parece ter sido um cristão sincero antes de subir ao trono, uma vez que dissera ao apóstata Juliano que preferiria deixar o serviço do que sua religião; no entanto, Juliano o valorizava, e o manteve por perto até sua morte. O exército declarou a si mesmo cristão; o Lábaro, que tinha sido deixado de lado durante o reinado de Juliano, era novamente levado na linha de frente. Joviano, no entanto, tinha aprendido dos tempos passados que religião não podia avançar por força exterior. Deste modo, ele permitiu total tolerância para com seus súditos pagãos; e, no que diz respeito às divisões entre os cristãos, ele declarou que não molestaria ninguém por conta da religião, mas que amaria todos aqueles que estudassem a paz e bem-estar da igreja de Deus. Atanásio, ao ouvir sobre a morte de Juliano, retornou a Alexandria, para a agradável surpresa e alegria de seu povo. Joviano escreveu a Atanásio confirmando-o em seu cargo e convidando-o à sua corte. O bispo atendeu ao convite; o imperador desejava instrução e conselho. Através de uma relação pessoal ele ganhou influência sobre Joviano, o que seus inimigos em vão tentavam perturbar. Mas o reinado deste príncipe cristão durou apenas cerca de oito meses. Ele foi encontrado morto em sua cama em 17 de fevereiro de 364, tendo sido sufocado, como se supunha, com carvão vegetal.
Valentiniano e Valente. Joviano foi sucedido por dois irmãos — Valentiniano e Valente. O primeiro governou no Ocidente, e o último no Oriente. Quanto aos assuntos da igreja, Valentiniano seguiu o plano de Joviano. Ele se recusou a qualquer interferência em questões doutrinais, mas aderiu firmemente à fé de Niceia. Como soldado e estadista ele possuía várias e grandes habilidades. É dito que ambos irmãos se expuseram ao perigo pela profissão do cristianismo no reinado de Juliano; mas Valente foi mais tarde vencido pelo arianismo por meio de sua esposa, que o persuadiu a receber o batismo do bispo ariano de Constantinopla. Diz-se que o bispo exigiu dele um juramento de perseguir os católicos. Seja como for, é certo que logo após seu batismo ele manifestou grande zelo em favor dos arianos, e perseguiu duramente os eclesiásticos pela adesão deles à fé de Niceia e pelo exercício de suas influências em seu nome.
Sob o decreto de Valente, em 367 d.C., Atanásio foi mais uma vez atacado pelos arianos — os inimigos da piedade cristã. Tatiano, governador de Alexandria, tentou levá-lo para fora da cidade, mas os sentimentos do povo eram tão fortes em favor do venerável bispo que ele não se atreveu a executar suas ordens por um tempo. Enquanto isso, Atanásio, sabendo o que se aproximava, se retirou silenciosamente, e permaneceu por quatro meses escondido no sepulcro de seu pai. Esta foi a quarta vez que ele teve que fugir de Alexandria. Valente, no entanto, pelo medo que ele aparentemente tinha do povo, chamou-o de volta, e permitiu que ele, sem qualquer impedimento, prosseguisse com seus trabalhos pastorais até 373 d.C., quando foi chamado de seu trabalho na terra para seu descanso no céu. Valente morreu em uma batalha com os godos no ano 378, após um reinado de quatorze anos.
Que Serviço Atanásio Prestou à Igreja?
Estamos dispostos a acreditar que, sob a bênção de Deus, ele foi o meio de preservar a igreja da heresia ariana, que ameaçava extinguir do cristianismo tanto o nome quanto a fé no Senhor Jesus Cristo. O inimigo visava nada menos que um sistema sem Cristo, o que poderia levar, a longo prazo, ao total abandono do cristianismo. Mas o concílio de Niceia foi usado por Deus para derrubar seus maus intentos. A afirmação da Divindade de Cristo e do Espírito Santo em igualdade com Deus Pai foi grandemente abençoada por Deus então, e tem sido assim desde aqueles dias até hoje. Embora a igreja tivesse sido infiel e tendo derivado para o mundo, “que é onde está o trono de Satanás”, o Senhor em misericórdia levantou um grande testemunho de Seu santo nome e da fé de Seus santos. Historiadores, tanto civis quanto eclesiásticos, suportam os mais honráveis testemunhos sobre a capacidade, atividade, constância, abnegação e zelo incansável de Atanásio em defesa da grande doutrina da santíssima Trindade. “Reténs o meu nome, e não negaste a minha fé” (Apocalipse 2:13), são palavras que se referem, sem dúvidas, à fidelidade de Atanásio e de seus amigos, e também dos fiéis em outros tempos.
Os vencedores de que fala a carta a Pérgamo também estavam lá, sem dúvidas. Mas o Senhor não permitiu que eles fossem vistos ou registrados pelo historiador. Eles eram os escondidos de Deus que foram alimentados pelo maná escondido. Eles terão um lugar de grande proximidade com o Senhor na glória. “Ao que vencer darei eu a comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.” (Apocalipse 2:17)
O Cristianismo sob o Reinado de Graciano
Valentiniano foi sucedido por seu filho, Graciano, em 375. Ele tinha então apenas dezesseis anos de idade. Ele admitiu como colega nominal seu meio-irmão, o Valentiniano mais jovem; e pouco tempo depois ele escolheu Teodósio como um colega ativo, a quem ele concedeu a soberania do Oriente. Graciano tinha sido educado na fé cristã e dava evidências de ser um verdadeiro crente. Ele foi o primeiro dos imperadores romanos a recusar o título e o manto de sumo sacerdote da antiga religião: Como podia um cristão, dizia ele, ser o sumo sacerdote da idolatria? É uma abominação para o Senhor. Assim vemos na piedade precoce desse jovem príncipe os benditos efeitos do testemunho dos fiéis. Que coisa nova e estranha para nós: um príncipe piedoso ascender ao trono dos degenerados césares com dezesseis anos de idade! Mas ele era tanto humilde quanto piedoso.
Estando consciente de sua própria ignorância quanto às coisas divinas, ele escreveu a Ambrósio, bispo de Milão, para que o visitasse. “Venha”, ele disse, “para que você possa me ensinar as doutrinas da salvação, para alguém que realmente crê, não para que estudemos para contenções, mas para que a revelação de Deus possa habitar mais intimamente em meu coração”. Ambrósio respondeu num êxtase de satisfação: “Excelentíssimo príncipe cristão”, diz ele, “modestamente, não foi a falta de afeição que até aqui me impediu de visitá-lo. Se, contudo, não estou contigo pessoalmente, tenho estado em minhas orações, nas quais encontramos, ainda mais, as atribuições de um pastor”.
O jovem imperador foi geralmente popular, mas sua ligação com o clero ortodoxo, o tempo que ele passava na companhia deles, e a influência que eles ganharam sobre ele (especialmente Ambrósio), o expuseram ao desprezo de seus súditos mais belicosos. As fronteiras foram duramente pressionadas, nesse tempo, pelos bárbaros, mas Graciano foi incapaz de conduzir uma guerra contra eles. Máximo, tomando vantagem do descontentamento do exército, levantou um estandarte de revolta. Graciano, vendo o rumo que as coisas tinham tomado, fugiu com cerca de trezentos cavalos, mas foi dominado e morto em Lion, no ano 383. Máximo, o usurpador e assassino, colocou-se no trono do Ocidente. Mais tarde, ele foi deposto e morto por Teodósio, e assim o jovem Valentiniano foi colocado no trono de seu pai.
Teodósio, Apelidado de O Grande
A medida de nosso interesse na história dos imperadores romanos deve ser proporcional ao conhecimento que eles tinham da verdade, e do tratamento deles para com os cristãos. Se não procurássemos discernir a mão de Deus no governo deles seria cansativo e inútil, nesse distante período, examinar o que resta deles. Mas enxergar a mão de Deus, e ouvir Sua voz, e traçar a linha prateada de Sua graça através desses tempos rudes, nos mantém na companhia dEle próprio, e assim nossa experiência é aumentada. Mas quase tudo depende, quanto ao serviço de Deus, ou à bênção para nós mesmos, do motivo ou objetivo com que estudamos a história da igreja, e quais são seus efeitos. De acordo com esse princípio de estima, Teodósio demanda um estudo sério e cuidadoso. Ele era um ministro de Deus, assim como era o imperador romano, que foi usado por Ele para subjugar o arianismo no Oriente, e para abolir a adoração aos ídolos por todo o mundo romano. A idolatria é o pecado mais ousado do homem, e nunca poderá ser ultrapassado até que “se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus.” (2 Tessalonicenses 2:3,4). A expressão completa dessa blasfêmia é ainda futura, e sinalizará o julgamento imediato e o amanhecer do dia milenial.
Mas o zelo de Teodósio não era apenas negativo. Ele apoiou o cristianismo, de acordo com sua compreensão, mais vigorosamente do que qualquer de seus predecessores. Ele completou o que Constantino começou e o superou, e muito, em zelo e seriedade cristã. Logo após seu batismo ele reuniu um concílio, que ocorreu em Constantinopla em 2 de maio de 381. Os principais assuntos pelos quais o concílio foi convocado eram os seguintes: dar maior plenitude e definição ao credo niceno; condenar as heresias, tais como as dos arianos, eunomianos, eudoxianos, sabelianos, apolinarianos, e outros; e tomar medidas para a união da igreja.
Os Invasores Bárbaros
A maioria de nossos leitores, até mesmo os mais jovens, já devem ter ouvido sobre “O Declínio e Queda do Império Romano” — o quarto grande império mundial de que falou o profeta Daniel e João no Apocalipse. Ele tinha estado em declínio já por algum tempo, e estava rapidamente se aproximando de sua queda, quando Teodósio foi chamado ao trono. As fronteiras eram ameaçadas por todos os lados pelos bárbaros, que habitavam em terras vizinhas ao mundo romano. “Nas costas de cada um dos grandes rios que limitavam o império”, diz o decano Milman, “apareceu uma hoste de invasores ameaçadores. Os persas, os armênios e os ibéricos estavam preparados para passar o Eufrates ou a fronteira oriental; o Danúbio já tinha proporcionado uma passagem para os godos; atrás deles vinham os hunos, em enxames ainda mais formidáveis a se multiplicarem; os francos e o resto das nações germânicas se aglomeravam junto ao Reno”. Esta assustadora formação militar de invasão bárbara mostrará ao leitor, de relance, a então posição do quatro império, e o quão fácil é para Deus quebrar em pedaços o ferro, assim como ele quebrou o cobre, a prata e o ouro.4
Dentro dos limites da terra romana a idolatria ainda existia, e sua adoração continuava imperturbável. Seus milhares de templos, em toda sua antiga grandeza, e suas cerimônias imponentes, cobriam a terra. Dificilmente um cristão poderia se voltar para qualquer lugar sem que visse um templo e inalasse um incenso oferecido aos ídolos. O cristianismo tinham apenas se erguido ao nível da tolerância em relação aos pagãos. O arianismo e o semiarianismo, em suas muitas formas, prevaleciam. Em Constantinopla e no Oriente eles eram supremos. Outras heresias abundavam. Tal era o estado das coisas, tanto dentro quanto fora do império, durante a ascensão de Teodósio. No entanto, para os detalhes sobre sua história civil, devemos sugerir aos leitores os autores já citados. Apenas gostaríamos de acrescentar que ele foi usado por Deus para deter, por um tempo, o progresso da invasão; para demolir as imagens e alguns dos templos de adoração pagã; para abolir a idolatria; para suprimir a superstição; para fazer com que as decisões do concílio de Niceia prevalecessem em todos os lugares; e para dar triunfo e predominância à profissão do cristianismo.
A História Religiosa de Teodósio
Vamos agora olhar, por um momento, para alguns dos principais eventos na história do grande Teodósio. Nas circunstâncias desses eventos poderá ser encontrado o melhor comentário sobre a vida do imperador, o poder do clero, e o caráter daqueles tempos.
Teodósio era espanhol. O cristianismo, bem cedo, tinha se estabelecido na Península, que era famosa por sua firme aderência às doutrinas de Atanásio durante toda a controvérsia trinitariana. Hosius, um bispo espanhol, foi o presidente do concílio de Niceia. Perto do fim do primeiro ano de seu reinado, Teodósio foi advertido, por causa de uma séria doença que tinha, a não adiar seu batismo, como era a prática então. Ele chamou o bispo de Tessalônica e foi imediatamente batizado. Alguns dizem que ele foi o primeiro dos imperadores a serem batizados no nome completo da Santíssima Trindade. Sua admissão na igreja foi imediatamente seguida por um decreto que proclamava sua própria fé e prescrevia a religião de seus súditos. “É nosso desejo que todas as nações que são governadas por nossa clemência e moderação possam aderir firmemente à religião que foi ensinada por São Pedro aos romanos…De acordo com a disciplina dos apóstolos, e a doutrina do evangelho, cremos na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, sob igual majestade, e em uma piedosa Trindade…Além da condenação da justiça divina, eles deverão esperar sofrer as severas penalidades que nossa autoridade, guiada pela sabedoria celestial, julgar conveniente infligir sobre os tais.”
Tal era a ortodoxia severa e intransigente de Teodósio. Firmemente, embora enganado, ele acreditava que este era seu dever para que pudesse governar como um imperador cristão, e os bispos que ele consultava eram mais inclinados a aumentar do que suavizar sua severidade. Em uma ocasião, seu senso de justiça o determinou a ordenar que alguns cristãos reconstruissem, a suas próprias custas, uma sinagoga judaica, que, em um tumulto, tinha sido destruída. Mas o vigoroso bispo de Milão interferiu e prevaleceu sobre ele para que anulasse a sentença, com o fundamento de que não era certo que os cristãos construíssem uma sinagoga judaica. Aqui, o bispo evidentemente falhou em uma questão de justiça comum. Ele era menos justo do que seu mestre imperial.
Reflexões sobre a Disciplina de Ambrósio e a Penitência de Teodósio
Há poucos eventos nos anais da igreja tão profundamente interessantes quanto a penitência do grande Teodósio, e as rigorosas condições de restauração exigidas por Ambrósio. Despojados das superstições e formalidades que eram peculiares àqueles tempos, temos diante de nós um caso da mais genuína e salutar disciplina. Não devemos supor nem por um instante que o comportamento de Teodósio foi o resultado de fraqueza e pusilanimidade5, mas de um verdadeiro temor de Deus; um verdadeiro sentimento de sua culpa, uma consciência sensível, um reconhecimento das exigências de Deus, a quem toda a grandeza mundana está sujeita.
Ambrósio não era nem arrogante nem hipócrita, como muitos pontífices que o sucederam. Ele possuía uma forte afeição pelo imperador, e uma sincera preocupação por sua alma, mas agiu em relação a ele com um solene senso de seu dever. Ele tinha uma grande ideia, sem dúvida, sobre a dignidade com que seu ofício o investiu; e ele se sentia obrigado a usá-la em prol da justiça e humanidade, e para controlar o poder da soberania terrena: uma classe de poder muito certamente nunca concedida por Deus a um ministro cristão, e que frequentemente provou ser, em tempos mais recentes, um poder muito perigoso, uma vez que o sacerdote que possui em suas mãos a consciência de um rei pode inflamar ou moderar suas paixões sanguinárias. No caso de Ambrósio, tratava-se puramente de influência cristã. Ele apareceu, embora um pouco fora de sua atribuição, como o vingador dos ultrajados, e exercendo uma autoridade judicial sobre os mais mesquinhos e poderosos dentre os homens. Mas é sempre desastroso interferir com a ordem estabelecida por Deus, mesmo quando nobres objetivos pareçam ter sido alcançados.
Cerca de quatro meses após sua vitória sobre Eugênio, e o castigo dos assassinos de Valentiniano, Teodósio, o Grande, morreu em Milão, no ano de 395, não passando dos cinquenta anos de idade; o último imperador que manteve a dignidade do nome romano. Ambrósio não viveu muito após a morte de seu amigo imperial. Ele morreu em Milão na véspera da Páscoa, em 397. Ele aprofundou e fortaleceu as bases do poder eclesiástico que influenciaria o cristianismo em todos os tempos futuros. Basílio, os dois Gregórios, e Crisóstomo floresceram neste período.
As igrejas orientais, desde o princípio, observavam a festa da Páscoa em comemoração à crucificação de Cristo, o que correspondia à Páscoa Judaica, no décimo quarto dia do mês. Isto pode ter surgido a partir do fato de que no Oriente havia muito mais judeus convertidos. As igrejas ocidentais observavam a festa em comemoração à ressurreição. A diferença quanto ao dia deu origem a uma longa e acirrada controvérsia. Mas, após muita contenda entre as igrejas orientais e ocidentais, foi ordenado pelo concílio de Niceia que fosse observada em comemoração à ressurreição em toda a cristandade. Assim, a Páscoa Cristã ficou estabelecida no domingo que segue o décimo quarto dia da lua pascal, que ocorre próximo ao dia 21 de março: de modo que, se o referido 14º dia fosse um domingo, não seria naquele domingo, mas no próximo, podendo cair em qualquer domingo das cinco semanas que começam em 22 de março e terminam em 25 de abril.↩
O termo “Igreja Católica”, como dado por Constantino, aqui significa simplesmente “a igreja estabelecida”.↩
História do Cristianismo, vol.2, p. 540.↩
N. do T.: para mais detalhes sobre a profecia de Daniel aqui mencionada, leia Breve História da Humanidade, de W. W. Fereday. Link: http://manjarcelestial.blogspot.com.br:2013:05/breve-historia-da-humanidade.html↩
N. do T.: pusilanimidade é fraqueza de ânimo, falta de energia, de firmeza, de decisão.↩
A História Interna da Igreja (245—451 d.C.)
A História Interna da Igreja
O século que termina com a morte do grande Teodósio e Ambrósio foi cheio do mais profundo interesse para o leitor cristão. Passaram-se eventos, dentre os mais momentosos, que afetaram a majestade e glória de Deus e o bem-estar da humanidade. Do ano 303 até 313, a igreja passou através de suas provações mais difíceis sob Diocleciano. Por dez anos ela esteve em uma fornalha ardente, mas em vez de ser consumida, como seu inimigo em vão imaginara, ela parece ter aumentado em número assim como em pureza e poder. A Satanás foi permitido fazer o que queria contra ela, e ele moveu e agitou tanto a população pagã que em todas as partes do império eles ergueram seus braços: primeiro, para defender o politeísmo, e, segundo, para erradicar o cristianismo ao perseguir os cristãos e destruir seus livros sagrados. Assim, o século começou com o grande e final embate entre o paganismo e o cristianismo, e terminou com a total ruína do primeiro, e o completo triunfo do último. A disputa terminou com o quarto século, e a vitória descansou sobre o cristianismo desde então.
Tal foi a história exterior da igreja, e o cumprimento, até então, da palavra do Senhor nas epístolas a Esmirna e Pérgamo. Mas há outras coisas que muito razoavelmente demandam um pouco de nossa atenção antes de entrarmos no quinto século, e nenhuma parte do amplo campo que se estende diante de nós parece ter uma importância tão forte quanto a esfera e influência dos grandes prelados do Oriente e do Ocidente. Deve também ter ocorrido aos nossos leitores, a partir das necessárias alusões ao batismo, que a observância desse rito tinha um imenso lugar nas mentes daqueles primeiros cristãos. Eles acreditavam que as águas do batismo purificavam a alma completamente. Pensamos, então, em combinar os dois — daremos uma breve história do batismo a partir dos escritos dos “pais”, o que, ao mesmo tempo, nos dará uma oportunidade de vermos quais visões eles tinham, não apenas sobre o batismo, mas sobre as verdades fundamentais do evangelho.
As Variações Eclesiásticas do Batismo
No Novo Testamento há perfeita uniformidade, tanto quanto ao preceito quanto aos exemplos, sobre o assunto do batismo. No entanto, em nossos próprios dias, e desde o início do terceiro século, encontramos na igreja professa infinitas variações tanto quanto o que diz respeito à teoria quanto à prática sobre esse importante assunto. Aqueles não familiarizados com a história eclesiástica podem naturalmente perguntar: Quando, e por quais meios, tais diferenças surgiram na igreja?
Como tem sido nosso plano, no decorrer de todo este livro, encontrar o início das grandes questões que têm afetado a paz e prosperidade da igreja, nos esforçaremos, bem brevemente, a apontar o início da história dos batismos eclesiásticos. Usamos o termo eclesiástico para distingui-lo do que é bíblico. Nada que tenha sido introduzido após os dias dos apóstolos inspirados provém de autoridade divina, seja em teoria ou prática. Assim, algo não pode ser o batismo cristão se varia daquilo que Cristo instituiu ou da prática de Seus apóstolos. Trazer alterações é o mesmo que mudar a coisa em si, e torná-la não o mesmo, mas um outro batismo; assim encontramos, na história, que surgiram muitos batismos.
Como nosso objeto de estudo, agora, é o início da história dessas variações, e não a controvérsia, evitaremos dar qualquer opinião sobre a tão longamente agitada questão. Por mais de 1600 anos a controvérsia tem sido mantida com grande determinação, e por homens capazes de ambos os lados. Nenhuma controvérsia na história da igreja tem tido tal continuidade, ou conduzida com tal confiança de vitória por ambas as partes. Como não há menção expressa de batismo infantil nas Escrituras, os batistas pensam que sua posição é inquestionável; e os pedobatistas, com a mesma firmeza acreditam que pode ser inferido, a partir de várias passagens conhecidas, que o batismo infantil era praticado nos dias dos apóstolos. Não houve tanta controvérsia quanto ao modo do batismo. Os gregos, latinos, francos e germânicos aparentemente batizavam por imersão. “Batismo é uma palavra grega”, diz Lutero, “e em Latim pode ser traduzida como mersio, imersão….e embora essa prática tenha caído em desuso entre a maioria de nós, contudo, os que são batizados deveriam ser inteiramente imergidos, e então imediatamente levantados para fora da água, pois é isto que a etimologia da palavra indica, assim como na língua germânica”. O testemunho e Neander é o mesmo: “O batismo era originalmente administrado por imersão; e muitas das comparações de São Paulo aludem a essa forma de administração. A imersão é um símbolo da morte, de ser sepultado com Cristo; a saída da água é um símbolo da ressurreição com Cristo; e ambos, tomados em conjunto, representam o segundo nascimento, a morte do velho homem, e uma ressurreição para uma nova vida”1. Cave, Tillotson, Waddington, etc. falam do modo de batismo de maneira similar. E como todos esses testemunhos são de pedobatistas, podemos descartar esta parte do assunto como justamente provada na história da igreja; no entanto, a fé deve permanecer somente sobre a Palavra de Deus. Não seguimos os “pais”, mas sim a Cristo.
Irineu, bispo de Lion, é o primeiros dos “pais” a aludirem ao batismo infantil. Ele morreu por volta do ano 200, de modo que seus escritos são datados por volta do fim do segundo século. Os “pais” apostólicos nunca mencionaram isso. Por essa época a superstição, em grande medida, tinha tomado o lugar da fé, de modo que o leitor deve estar preparado a ouvir algumas noções extravagantes colocadas por alguns dos grandes doutores; ainda assim, muitos deles, sem dúvidas, eram verdadeiro cristãos fervorosos. “Cristo veio salvar todas as pessoas para Si mesmo”, diz Irineu, “com isso quero dizer que todos os que, por Ele, forem regenerados — batizados — para Deus: infantes e pequeninos, crianças e jovens, e pessoas mais velhas. Portanto Ele passou por várias idades: para os infantes ele foi feito um infante, santificando infantes; para os pequeninos Ele foi feito um pequenino, santificando os dessa idade; e também dando-lhes um exemplo de piedade, justiça e obediência: para os jovens Ele foi um jovem”, etc. O batismo era, portanto, ensinado como sendo uma lustração da alma para todas as idades e condições da humanidade. Mas a controvérsia logo se resumiu em uma questão — criança ou adulto. Regeneração, nascer de novo, batismo, eram usados como termos intercambiáveis, como se significassem a mesma coisa, nos escritos dos “pais”.2
Aqui temos a origem, até onde a antiguidade eclesiástica nos informa, do batismo infantil. A passagem é um tanto obscura e extremamente fantasiosa, mas é o primeiro traço que temos da questão ainda instável, e provavelmente a raiz de todas as suas variações vistas eclesiasticamente. O efeito de tal ensino nas mentes supersticiosas foi imenso. Pais ansiosos apressaram-se para ter seus delicados bebês batizados para que não morressem sob a maldição do pecado original, e o homem do mundo atrasava seu batismo até a aproximação da morte para evitar qualquer mancha subsequente, e para que pudesse emergir das águas da regeneração para os recintos da pura e genuína bem-aventurança. O exemplo e reputação de Constantino levou muitos a adiar, desse modo, o batismo, embora o clero testificava ser contra a prática.
Tertuliano. O testemunho deste “pai” prova que os bebês eram batizados em seus dias — ele morreu por volta de 240 — mas que ele não era favorável à prática: como ele diz, “Mas aqueles cujo dever é administrar o batismo devem saber que ele não deve ser dado precipitadamente…Portanto, de acordo com a condição e disposição de cada homem, e também de acordo com sua idade, o adiamento do batismo é mais proveitoso, especialmente no caso de crianças pequenas. Pois qual a necessidade de colocar os padrinhos em perigo? pois podem falhar em suas promessas por causa da morte, ou podem estar enganados se uma criança se provar ser de disposição ímpia.”
Orígenes, ao discorrer sobre o pecado da nossa natureza, faz alusão ao batismo como o meio indicado de removê-lo. “Os bebês são batizados”, diz ele, “para o perdão dos pecados. De que pecados? Ou quando eles pecaram? Ou como pode, nesse caso, o batistério suprir qualquer bem que seja? Mas de acordo com o sentido que mencionamos agora: ninguém é livre da poluição, mesmo que sua vida tenha durado apenas um dia sobre a terra. E é por este motivo, porque pelo sacramento do batismo a poluição que temos de nascença é levada embora, que os bebês são batizados.”
Cipriano, bispo de Cartago, por volta do ano 253, recebeu uma carta de Fido, um bispo do interior, perguntando se um bebê, antes dos oito dias de idade, podia ser batizado se necessário. A resposta prova, não apenas que o batismo infantil era então praticado, mas a necessidade disto na mente deles por causa de sua eficácia. Cipriano, com sessenta e seis bispos em concílio, diz: “Quanto ao caso dos bebês, visto que você julga que eles não devem ser batizados dentro de dois ou três dias após terem nascido, e que a regra da circuncisão deve ser observada, de modo que ninguém deve ser batizado e santificado antes do oitavo dia após ter nascido: todos nós em assembleia fomos de opinião contrária. Seja o que for que você pensa adequado de se fazer, não houve nenhum dentre nós que tivesse a mesma ideia, mas todos nós, pelo contrário, julgamos que a graça e misericórdia de Deus não deve ser negada a qualquer pessoa nascida. Pois já que o nosso Senhor em Seu evangelho diz ’o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las’, então no que depender de nós, nenhuma alma, se possível, será perdida”, etc.
Gregório Nazianzeno, bispo de Constantinopla, foi um “pai” notável por volta do ano 380. Ele foi o meio de destruir o poder do arianismo na capital oriental, onde tinha sido mantido com grande força por quase quarenta anos. Ele teve de encontrar muita oposição e até mesmo perseguição no início; mas aos poucos sua eloquência, o tom prático e sério de seu ensino, e a influência de sua vida piedosa começaram a dar resultado e a mantê-lo firme na cidade, embora nunca tenha gostado do estilo imperial da capital.
Dr. Wall cita Gregório largamente sobre o batismo, mas nossos extratos serão breves. Como o restante dos “pais”, ele é enfático sobre o assunto. “O que você diz sobre aqueles que ainda são crianças e não têm capacidade de serem sensíveis, seja da graça ou da falta dela? Devemos batizá-las também? Sim, por todos os meios, se qualquer perigo torná-lo necessário. Pois é melhor que elas sejam santificadas sem terem consciência disso do que morrerem não seladas e não iniciadas. E uma base para isto, para nós, é a circuncisão, que era feita no oitavo dia e era um típico selo, e era praticada naqueles que não tinham o uso da razão”. Contra a prática de adiar o batismo até um leito de morte, ele fala forte e seriamente, comparando o serviço à lavagem de um cadáver, em vez de um batismo cristão.
Basílio, bispo de Cesareia, é constantemente associado com os dois Gregórios. Gregório de Nissa era seu irmão, e o outro seu melhor amigo. A Capadócia gerou três “pais”. Basílio era fiel ao credo de Atanásio durante seus dias de depressão e adversidade, mas não viveu para contemplar seu triunfo final. Ele morreu por volta de 379. Ele foi um grande admirador e um verdadeiro exemplo do cristianismo monástico. Ele abraçou a fé ascética, abandonou sua propriedade e praticou tamanhas austeridades severas a ponto de prejudicar sua saúde. Ele fugiu para o deserto, mas sua fama fez com que uma cidade fosse construída ao redor dele, e construiu um monastério, e então os monastérios surgiram por todos os lados.
Suas visões sobre o batismo são similares às de seu amigo Gregório: ele exorta a necessidade disto com base no mesmo sentimento supersticioso que todos eles tinham. “Se Israel não tivesse passado através do mar”, diz ele, “eles não teriam se livrado de Faraó: e a menos que tu passes através das águas do batismo, não te livrarás da cruel tirania do diabo”, etc. Ele aplicava isto a todas as idades, e o reforçava pelas palavras do Senhor a Nicodemos: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.” (João 3:5)
Ambrósio, bispo de Milão, como todos os “pais” que já conhecemos, se engana completamente quanto ao significado de João 3:5: “Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. “Você vê”, diz ele, “que Cristo não excetua pessoa nenhuma, nem um bebê, nem mesmo aquele que é morto por um acidente inevitável.”
João, apelidado Crisóstomo, que significa “boca dourada”, obteve esse nome por conta de sua eloquência suave e fluída. Ele era tão favorito do povo que eles costumavam dizer: “Nós preferimos que o sol não brilhe a João não pregar”. Ele era evidentemente a favor do batismo infantil, embora não seja claro se acreditava no pecado original. “Por este motivo também batizamos bebês”, diz ele, “embora eles não estejam corrompidos pelo pecado, para que possa ser acrescentadas a eles a santidade, a justiça, a herança de adoção, uma fraternidade com Cristo e para que sejam feitos membros com Ele”. Seria difícil falar mais quanto aos alegados benefícios do batismo além dos que vemos aqui enumerados. Mas por mais extravagante que toda a sentença possa parecer, esse era o texto dos pedobatistas desde aqueles dias até hoje. A maioria dos nossos leitores são familiares a essas palavras: “O batismo é onde eu sou feito um membro de Cristo, um filho de Deus, e um herdeiro do reino dos céus”. Tais palavras foram tiradas não das Escrituras, mas de Crisóstomo.
Dr. Wall parece ansioso por deixar transparecer que esse grande doutor [Crisóstomo] não estava alienado quanto ao pecado original. Ele sugere que o significado de suas palavras possam ser: “eles não se corromperam pelos seus próprios pecados”. Mas Crisóstomo não diz “seus próprios”, mas que eles não estão corrompidos pelo pecado. E certamente toda criança é corrompida, como disse o salmista: “Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Salmos 51:5). Em vão procuramos solidez em muitas das doutrinas fundamentais do cristianismo entre os “pais”, para não dizer sobre o que eles negligenciaram, tal como a presença do Espírito Santo na assembleia, o chamado celestial e as relações celestiais da igreja, a diferença entre a casa de Deus e o corpo de Cristo, a bendita esperança, e o glorioso aparecimento do grande Deus e nosso Salvador Jesus Cristo (Tito 2:11–15).
Reflexões sobre a História do Batismo Infantil
O suficiente, cremos, para o presente propósito, foi dito sobre o assunto do batismo infantil. O leitor tem diante de si o testemunho das mais confiáveis testemunhas para os primeiros duzentos anos de sua história. A prática parece ter tomado sua ascensão e derivado toda a sua incrível influência com base na interpretação errônea de João 3:5: “Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Argumentava-se, a partir desta passagem, que o batismo era necessário para a salvação e todas as bênçãos da graça. A eficácia do sangue de Cristo, o poder purificador da palavra de Deus, e as operações graciosas do Espírito Santo, foram todas atribuídas à devida observância do batismo externo. E não é preciso muito esforço para perceber o lugar que isso tomou na igreja professa nesses últimos 1600 anos3, ou para perceber sua influência em todas as classes e épocas, embora muitos não cressem na regeneração batismal.
Dr. Wall afirma que os antigos cristãos, sem exceção de um homem sequer, ensinavam que essas palavras do Salvador se referiam ao batismo. Ele acredita que Calvino foi o primeiro homem a se opôr a essa interpretação, ou o primeiro a se recusar a aceitar a passagem como um ensino da necessidade do batismo para a salvação. Supondo que essas afirmações estejam corretas, elas provam que a grande estrutura eclesiástica que se ergueu sobre o batismo foi fundada sobre uma má interpretação. A igreja de Roma, os luteranos, os gregos, os anglicanos, continuam a seguir os “pais” nesta aplicação errada da verdade. “Devemos então”, diz Hooker, referindo-se à nova interpretação de Calvino sobre João 3:5, “considerar que aquilo que sempre foi interpretado de uma determinada maneira e não de outra, seja agora aceito sob o disfarce de uma capa de novidade? Deus adotou o batismo, não apenas como um símbolo ou emblema do que recebemos, mas também como um instrumento ou meio pelo qual recebemos a graça”. O bispo Burnet também observa, falando dos tempos antigos: “As palavras do nosso Salvador a Nicodemos foram expostas de modo a dar a entender a absoluta necessidade do batismo para a salvação. Essas palavras ’o reino de Deus’, tomadas com o significado de glória eterna, essa expressão de nosso Salvador era entendida como querendo dizer que nenhum homem podia ser salvo a menos que fosse batizado”, etc.4 Calvino ensinava que os benefícios do batismo eram limitados aos filhos dos eleitos, e assim introduzia-se a ideia do cristianismo hereditário. Os presbiterianos seguem Calvino e, como consequência de seu ensinamento, a circuncisão se torna tanto a justificativa como a regra para o batismo infantil. Mas alguns de nossos leitores podem estar ansiosos por saber o que acreditamos ser a verdadeira interpretação de João 3:5, visto que tanta coisa é construída encima deste versículo.
Qual é o Ensino de João 3:5?
Cremos que a expressão “nascer da água” não poderia, de forma alguma, se referir ao batismo. O novo nascimento é o tema do Salvador, sem o qual homem nenhum pode ver ou entrar no reino de Deus. Não havia ainda se tornado visível — “o reino de Deus não vem com aparência exterior” (Lucas 17:20) — mas estava lá entre eles, como a nova esfera de poder e bênção de Deus. A carne nunca poderia perceber esse reino. Cristo não tinha vindo para ensinar e melhorar a carne, como Nicodemos parece ter pensado; mas que o homem poderia ser participante da natureza divina que é transmitida pelo Espírito. Nenhum mero ritual exterior é capaz de admitir alguém ao reino. Deve haver uma nova natureza, ou uma nova vida, adequada à nova ordem de coisas. “Jesus respondeu, e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (João 3:3). Então o Senhor mostra a Nicodemos o único caminho para entrar no reino: “Aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. A água é aqui usada como um símbolo do poder purificador da Palavra de Deus, como em Pedro: “Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade”. Aqui, a verdade é mencionada como o instrumento, e o Espírito como o agente do novo nascimento, como ele continua dizendo: “Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus”. Duas coisas são necessárias—a Palavra e o Espírito (1 Pedro 1:22,23).
A passagem obviamente indica a aplicação da Palavra de Deus no poder do Espírito — operando no coração, consciência, pensamentos e ações — nos trazendo, assim, uma nova vida de Deus, na qual temos Sua mente e Seus pensamentos sobre o reino. As seguintes passagens farão com que isto fique ainda mais claro: “Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade” (Tiago 1:18). “Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra” (Efésios 5:26). “Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado” (João 15:3). Aqui temos a purificação moral da alma pela aplicação da Palavra através do Espírito, que julga todas as coisas, e que opera em nós novos pensamentos e afeições adequados à presença e glória de Deus.
Como uma questão de interpretação, então, não vemos alusão alguma ao batismo em João 3:5: o batismo manifesta o que já foi transmitido, porém o batismo em si mesmo não transmite nada. Por outro lado — de acordo com os comentários inspirados nas Epístolas — o batismo é o sinal da morte, não de dar vida, como os “pais” uniformemente afirmavam. “Ou não sabeis”, diz o apóstolo, “que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte” (Romanos 6:3–4, Colossenses 2, 1 Pedro 3). Além disso, é perfeitamente claro que Nicodemos não podia saber qualquer coisa sobre o batismo cristão, já que ele não foi instituído por nosso Senhor até depois de Ele ter ressuscitado dentre os mortos.
Os Modernos Pedobatistas
A igreja de Roma e todos os que seguem os “pais” confessam que a origem de sua prática é a tradição. Mas há muitos outros em nossos dias, como tem sido desde a Reforma5, que detêm o batismo infantil com base nos escritos do Novo Testamento. As seguintes são as principais passagens as quais eles se referem: “Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus”…“De outra sorte os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos”…“Porque a promessa vos diz respeito a vós, a vossos filhos”…“Criai-os na doutrina e admoestação do Senhor”. E muitos apoiam seus argumentos principalmente no batismo de famílias, e alguns também com base na aliança abraâmica. Veja Marcos 10:14; 1 Coríntios 7:14; Atos 2:39; Efésios 6:4; Atos 16:33; Gênesis 17.
Os anti-pedobatistas, ou “os batistas”, como chamam a si mesmos, simplesmente afirmam que, em todas as alusões ao batismo nos escritos dos apóstolos, ele é uniformemente associado à fé no evangelho, e que tais expressões como “sepultados com Ele pelo batismo” e “plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte” (Romanos 6:4,5), etc., devem significar que a pessoa assim batizada tem parte com Cristo pela fé. E, além disso, defendem que, como o batismo é uma ordenança de Cristo, deve necessariamente ser celebrada exatamente como Ele designou. Eles afirmam que nada além das Escrituras diretas devem ser o fundamento de nossa fé e prática nas coisas divinas. E sendo o batismo algo cuja ministração é necessária, e de maneira prescrita, sem a qual seria apenas uma noção na mente humana, essas coisas, portanto, são tão necessárias como o próprio batismo. E, portanto, segue que os verdadeiros candidatos devem ser apenas crentes professos, e o verdadeiro modo, que é apenas a imersão, são coisas necessárias para o verdadeiro batismo cristão6.
A Origem da Comunhão Infantil
Quando a superstição em geral toma o lugar da fé, e as noções humanas tomam o lugar da Palavra de Deus, até que ponto homens, mesmo que sejam sérios e iluminados, podem ser levados! Agostinho defendeu firmemente a prática da comunhão infantil. Pensava-se que isso era uma consequência necessária do batismo infantil. Os “pais” afirmavam que a graça de Deus derramada sobre os batizados era dada sem medida, e sem qualquer limitação quanto à idade. Assim, eles raciocinaram e chegaram à conclusão que a ceia do Senhor podia ser consistentemente administrada a todos que tinham sido batizados, sejam crianças ou adultos. O costume prevaleceu por muitas eras, e é ainda observada pela igreja grega, mas nos absteremos dos detalhes. Em geral, o significado espiritual intrínseco e o verdadeiro projeto da ceia do Senhor foi grandemente perdido de vista, e a mais supersticiosa reverência foi expressa para os símbolos exteriores da ordenança.
A Posição e Caráter do Clero
Ao estudarmos a história interna da igreja durante o quarto século, inumeráveis tópicos mereceriam uma breve observação: mas podemos nos referir somente àqueles que caracterizam o período. A posição alterada do clero é uma questão importante, e é responsável por muitas mudanças que foram introduzidas por eles. Desde o tempo de Constantino, os membros do ministério cristão atingiram uma nova posição social, com certas vantagens seculares. Isto levou um grande número a se unir à ordem sagrada pelos mais indignos motivos. Daí a triste influência dessa mistura profana em toda a igreja professa. Constantemente encontramos nela o orgulho, a luxúria arrogante, e a assumida dignidade de toda a ordem clerical. Assim, conta-se que Martinho de Tours, quando na corte de Máximo, deixou a imperatriz lhe esperando à mesa, e que quando o imperador desejou beber diante dele, e esperava receber a taça de volta após o bispo ter bebido, Martinho a passou ao seu próprio capelão, como se tivesse honra mais elevada do que qualquer potentado terreno. A circunstância nos mostra onde estava o clero então, e o que eles pensavam de si mesmos e da dignidade espiritual em oposição à classe secular. A igreja tinha então se tornado como “uma grande casa”, onde “não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para desonra”. E assim tem sido desde então, e assim será até o final; mas o caminho do fiel é simples. “De sorte que, se alguém se purificar destas coisas, será vaso para honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para toda a boa obra.” (2 Timóteo 2:20,21)
A Origem e Crescimento do Monasticismo
Antes de abordarmos o período da “igreja de Tiatira”, pode ser interessante tomar nota do surgimento e crescimento das primeiras tendências ascéticas. A influência do monasticismo foi, de fato, muito grande durante a idade das trevas, e em todas as igrejas ocidentais. Vamos traçar seu caminho desde sua fonte. É interessante conhecer o início das coisas, especialmente de coisas importantes e influentes.
Durante a violência da perseguição sob Décio, por volta do ano 251, muitos cristãos fugiram ao exílio voluntário. Dentre esses estava um jovem chamado Paulo de Alexandria, que fez sua morada no deserto de Tebas, no Alto Egito. Pouco a pouco ele se tornou ligado ao modo de vida que adotou por necessidade, e é celebrado como o primeiro eremita cristão, embora não tivesse fama ou influência na época: não tanta como seu grande sucessor imediato.
Antônio (ou Antão), que é considerado o pai do monasticismo, nasceu em Cooma, no Alto Egito, por volta do ano 251. Na infância e juventude, conta-se que era de disposição contemplativa, séria e com tendência ao isolamento. Ele pouco se importava com o aprendizado mundano, mas desejava ardentemente o conhecimento das coisas divinas. Antes de alcançar a idade de 19 anos, ele perdeu seus pais, e tomou posse de uma propriedade considerável. Uma dia, na igreja, aconteceu do evangelho referente ao jovem rico ter sido lido perante a assembleia. Antônio considerou as palavras do Salvador como se fossem enviadas do céu para ele. “Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; vem, e segue-me” (Lucas 18:22). Ele imediatamente doou sua terra aos habitantes de sua aldeia, vendeu o resto de suas propriedades e deu tudo aos pobres, exceto uma pequena porção que ele reservou para o cuidado de sua única irmã. Em outra ocasião ele ficou profundamente impressionado com as palavras do Senhor: “Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã” (Mateus 6:25–34), e tomando essas palavras em sentido literal, despojou-se do resto de suas propriedades e mandou sua irmã a uma sociedade de virgens piedosas para que ela pudesse ser livre de todos os cuidados com coisas terrenas e abraçasse uma vida de rígido asceticismo.
Conta-se que Antônio tenha visitado Paulo, o eremita, e todos os ascéticos mais famosos dos quais tinha ouvido falar, esforçando-se a aprender de cada um suas virtudes distintivas, e a combinar todas as suas graças em sua própria prática. Ele se fechou em uma tumba, onde viveu por dez anos. Por excessivos jejuns, exaustão, e uma imaginação acima do normal, ele imaginava-se atormentado por espíritos malignos, com quem ele tinha muitos e sérios conflitos. Antônio se tornou famoso. Muitos visitavam sua morada fora do comum na esperança de vê-lo, ou de ouvir o barulho de seus conflitos com os poderes das trevas. Mas ele saiu de sua tumba e passou a habitar em um castelo em ruínas perto do Mar Vermelho por outros vinte anos. Ele aumentou suas mortificações visando superar os espíritos malignos, mas as mesmas tentações e conflitos o seguiram.
Estranho como possa parecer, esse marcante e iludido homem tinha um verdadeiro coração para Cristo, e um coração terno para com seu povo. A perseguição sob Máximo (311) o tirou de sua célula para as cenas públicas em Alexandria. Sua aparição causou um grande efeito. Ele se dedicou aos sofredores, exortando-os a manterem inabalável confiança em suas confissões de Cristo, e manifestando grande amor aos confessores nas prisões e nas minas. Ele se expôs, de todas as maneiras, ao perigo, ainda que ninguém se aventurava a tocá-lo. Supunha-se que um tipo de santidade inviolável cercava esse homem misterioso que parecia um fantasma. Quando a fúria da perseguição passou, ele fugiu para um novo lugar de isolamento, ao lado de uma alta montanha. Ali ele cultivou uma pequena porção de terra; multidões se aglomeravam para ouvi-lo; e um grande número o imitava. Os tristes vinham a ele para serem confortados, os perplexos para serem aconselhados, e os inimigos para serem reconciliados. Milagres lhe foram atribuídos, e sua influência não tinha limites.
No ano 352, quando tinha 100 anos de idade, ele apareceu uma segunda vez em Alexandria. Ele o fez para contrariar a propagação do arianismo, e defendeu com toda sua influência a verdadeira fé ortodoxa. Sua aparição produziu uma grande sensação, multidões se aglomeravam para ver o monge — o homem de Deus, como lhe chamavam — e ouvi-lo pregar, e muitos pagãos foram convertidos ao cristianismo por meio dele. Antônio e seus monges eram apoiantes firmes e poderosos do credo niceno. Ele viveu até a idade de 105 anos, e morreu apenas alguns dias antes de Atanásio ter encontrado um refúgio entre os monges do deserto, em 356.
As Virtudes e Falhas de Antônio
Antônio era evidentemente sincero e honesto, embora fosse totalmente equivocado e enganado pelos artifícios e poder de Satanás. No lugar de agir de acordo com a comissão do Salvador aos Seus discípulos, “ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15), ou de seguir Seu exemplo de andar fazendo o bem, ele achou que podia alcançar uma espiritualidade mais elevada retirando-se do meio da humanidade, e devotando-se à austeridade da vida e à comunhão ininterrupta com o céu. Ele era um cristão, mas totalmente ignorante da natureza e objetivo do cristianismo. A santidade na carne foi seu único grande objetivo, embora o apóstolo tivesse dito: “Em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Romanos 7:18). Portanto, tudo foi um fracasso, total fracasso: como sempre deve ser, se pensarmos que há qualquer coisa boa na natureza humana, ou tentarmos nos tornar melhores em nós mesmos. Em vez de conseguir santificar sua natureza por meio dos jejuns e do ócio, ele descobriu que toda paixão foi estimulada a uma maior atividade.
“Dessa maneira, em sua solidão”, nos diz Neander, “ele teve que enfrentar muitos conflitos em suas faculdades mentais, os quais talvez poderiam ter sido evitados caso se envolvesse com algum tipo de vocação que exigisse o uso de todas as suas forças. As tentações contra as quais ele teve que batalhar foram das mais numerosas e poderosas, pois estava entregue à ociosa ocupação com si mesmo e se ocupava em lutar contra as imagens impuras que constantemente vinham do abismo de corrupção de dentro de seu coração, no lugar de esvaziar a si mesmo, dedicando-se a trabalhos mais dignos, ou de desviar o olhar para a eterna fonte de pureza e santidade. Em um período posterior, Antônio, com uma convicção fundada em longos anos de experiência, reconheceu isso e disse aos seus monges: ’Não ocupemos nossas imaginações pintando espectros e espíritos malignos; não atribulemos nossas mentes como se estivéssemos perdidos. Em vez disso, confortemo-nos e alegremo-nos todo o tempo, como aqueles que foram redimidos; e sejamos conscientes de que o Senhor está conosco, o Mesmo que os venceu e os tornou em nada. Lembremo-nos sempre que, se o Senhor está conosco, o inimigo não pode nos fazer mal. Os espíritos do mal aparecem de formas diferentes para nós, de acordo com o estado de mente com que eles nos encontram…Mas se nos encontrarem gozosos no Senhor, ocupados na contemplação da bem-aventurança futura e das coisas do Senhor, refletindo que tudo está nas mãos do Senhor, e que nenhum espírito maligno pode fazer qualquer mal ao cristão, eles afastam-se, em confusão, da alma que eles veem preservada por tais bons pensamentos.”7
É perfeitamente claro, a partir desses conselhos aos monges, que Antônio era não apenas um cristão sincero, mas que ele tinha um bom conhecimento do Senhor e da redenção, embora tivesse sido tão completamente desviado por um coração enganado. Nunca estamos seguros a menos que nos movamos sobre as linhas diretas da Palavra de Deus. O sistema que esse homem introduziu em seus falsos sonhos de aperfeiçoamento da carne se tornou, no decorrer do tempo, um canteiro de devassidão e vício. E assim continuou por mais de mil anos. Somente no século XVI a luz divina da abençoada Reforma, lançando luz sobre um cenário de densas trevas morais, revelou a arraigada corrupção e as flagrantes enormidades das diferentes ordens monásticas. Os monges daquele tempo, como enxames de gafanhotos, cobriam toda a Europa; eles proclamavam em todos os lugares, como nos informa a História, a devida obediência à santa mãe igreja, a devida reverência aos santos, e mais especialmente à Virgem Maria, a eficácia das relíquias, os tormentos do purgatório, e as benditas vantagens decorrentes de indulgências. Mas enquanto os monges perdiam sua popularidade e influência na Reforma, uma nova ordem foi necessária para ocupar o seu lugar e fazer sua obra má: e isto foi encontrado na Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola — os jesuítas. Mas temos de olhar mais uma vez para o inicio da história do monasticismo.
A Primeira Sociedade de Ascetas
A forma mais antiga em que o espírito asceta se desenvolveu na igreja cristã não se deu na formação de sociedades ou comunidades, como encontramos mais tarde, mas na seclusão de indivíduos isolados. Eles acreditavam, embora equivocados, que eles tinham um chamado especial para se esforçarem por uma vida cristã mais elevada; e, a fim de atingir essa eminente santidade, impuseram sobre si mesmos as mais severas restrições. Eles se retiravam para lugares desertos onde podiam se entregar a si mesmos em fechada meditação nas coisas divinas, e onde suas mentes pudessem estar inteiramente abstraídas de todos os objetos naturais e de quaisquer deleites para os sentidos. Tanto homens quanto mulheres supunham que deviam empobrecer seus corpos em vigílias, jejuns, trabalhos e autoflagelo. Como o corpo era considerado uma carga opressiva e um obstáculo para suas aspirações espirituais, eles competiam entre si sobre quão longe podiam carregar suas auto-mortificações. Eles sobreviviam à base das mais insanas e doentias dietas: às vezes se abstinham da comida e sono até que a natureza estivesse totalmente esgotada. O contágio dessa nova invenção de Satanás se espalhou por toda a parte. O misterioso recluso era tido como necessariamente investido de uma santidade particular. A célula do eremita era visitada pelos nobres, eruditos e devotos — todos desejosos de prestar homenagem ao homem santo de Deus; e assim o orgulho espiritual foi engendrado pela bajulação do mundo. A partir deste momento a vida monástica era tida em tal estima que muitos a adotaram como um emprego altamente honorável; e, posteriormente, formaram-se comunidades, ou instituições monásticas.
Pacômio, que era, como Antônio, um nativo de Tebas, se converteu ao cristianismo no início do século IV. Após praticar austeridades por algum tempo, foi informado por um anjo em seus sonhos de que ele tinha feito um progresso suficiente na vida monástica, e que agora deveria se tornar um mestre para outros. Pacômio fundou, então, uma sociedade na ilha do Nilo. Assim começaram os ascetas a viver em associação. A instituição logo se estendeu de tal forma que, antes da morte do fundador, chegou a oito monastérios, com 3000 monges; e no começo do século seguinte o número de monges já passava dos 50000. Eles viviam em células que, cada uma, continham três monges. Eles eram comprometidos à obediência absoluta dos comandos de Aba, ou pai. Eles vestiam uma roupa peculiar, sendo seu principal artigo uma pele de cabra, em imitação a Elias que, como João Batista, era tido como um exemplo da condição monástica. Eles nunca podiam se despir: eles dormiam com suas roupas, e em cadeiras construídas de tal forma que os mantivessem numa postura quase vertical. Eles rezavam muitas vezes por dia em jejum no quarto e sexto dia da semana, e se comunicavam no sábado e no dia do Senhor (domingo). Suas refeições eram feitas em silêncio, e com capuzes sobre seus rostos, de modo que ninguém pudesse ver seu vizinho. Eles dedicavam-se à agricultura e variadas formas de indústria, e tinham todas as coisas em comum, à imitação dos primeiros cristãos após o dia de Pentecostes8. Pacômio fundou sociedades similares para mulheres.
Os Monastérios e o Pontífice Romano
Até quase o final do quinto século, os monastérios eram colocados sob a superintendência dos bispos; os monges eram considerados simplesmente como leigos e não tinham qualquer pretensão de serem classificados entre a ordem sacerdotal. Circunstâncias, no entanto, no decorrer do tempo, levaram os monges a assumir um caráter clerical. Muitos deles se ocupavam no trabalho de ler e expor as Escrituras, e todos eles deveriam estar envolvidos no cultivo da vida espiritual mais elevada. Assim, a população os tinham em muita estima, especialmente quando eles começaram a exercer suas funções clericais além dos confinamentos de suas celas. Invejas logo surgiram entre os bispos e os abades: o resultado foi que os abades, para se libertarem da dependência que tinham de seus rivais espirituais, fizeram uma petição para que tivessem a proteção do Papa de Roma. A proposta foi aceita com prazer, e logo todos os monastérios, grandes e pequenos, abadias, mosteiros e conventos se submeteram à autoridade da Sé de Roma. Isto foi um imenso passo em direção ao poder pontifical de Roma.
O Papa podia agora estabelecer, em quase qualquer canto, uma espécie de polícia espiritual, que agia como uma rede de espiões sobre os bispos, assim como sobre as autoridades seculares. Este evento deve ser observado com cuidado se quisermos acompanhar os caminhos e meios da ascensão do poder, e da derradeira supremacia, do Pontífice Romano.
O sistema monástico logo se espalhou para além dos limites do Egito: e todos os grandes mestres da época, tanto no Oriente quanto no Ocidente, advogavam a causa do celibato e monasticismo. São Jerônimo, em particular, o homem mais erudito de seus dias, é considerado o elo de ligação entre as duas grandes divisões da igreja — a grega e a romana, ou a oriental e a ocidental. Ele foi o meio pelo qual o celibato e monasticismo foram fortemente levados adiante, especialmente entre as mulheres. Muitas senhoras romanas de classe se tornaram freiras através de sua influência. Ambrósio exaltava tanto a virgindade em seus sermões que as mães de Milão impediam que suas filhas assistissem seu ministério; mas multidões de virgens de outros cantos se reuniam em torno dele para receberem a consagração. Basílio introduziu a vida monástica em Ponto e Capadócia; Martinho, na Gália; Agostinho, na África; e Crisóstomo foi impedido pela sabedoria de sua mãe a se retirar, em sua juventude, a um eremitério remoto na Síria.
Antes de terminarmos este assunto pode ser interessante, de uma vez por todas, tomar nota sobre o crescimento e estabelecimento dos conventos.
A Origem das Reclusas Femininas
Desde períodos iniciais da história da igreja lemos sobre virgens devotas que professavam a castidade religiosa e se dedicavam ao serviço de Cristo. Seus deveres e devoções eram auto-impostos, de modo que podiam preservar suas relações domésticas ou entrar sem escândalo ao estado de casadas. Mas a origem das comunidades de reclusas femininas é atribuída a Pacômio, o grande fundador dos sistemas monásticos regulares. Antes de sua morte, que ocorreu por volta da metade do século IV, não havia menos do que 27.000 mulheres no Egito que, por si só, tinham adotado a vida monástica. As regras que ele formou para os conventos de freiras eram similares àquelas aplicadas aos monges. “Elas viviam de fundos em comum, usavam um dormitório em comum, uma mesa e um armário. Os mesmos serviços religiosos eram prescritos, e a habitual temperança e ocasionais jejuns eram apreciados com a mesma severidade. O trabalho manual não era menos rigidamente forçado, mas em vez da labuta agrícola imposta a seus ’irmãos’, a elas cabia tarefas mais leves, como costurar ou tecer. Por deveres tão numerosos, por ocupações admitindo tão grande variedade, elas superavam o tédio cotidiano, e a dureza da reclusão monástica.”9
É certo de que muitos desses estabelecimentos foram fundados durante o quarto século, e que eles se propagaram por todo o Egito, Síria, Ponto e Grécia, e que gradualmente penetraram em cada província onde o nome de Cristo era conhecido, e mesmo até hoje elas abundam em todos os países católicos romanos, e formam um estranho e incongruente apêndice para a igreja.
A Cerimônia dos Votos
O espírito cruel e impiedoso do papado é sentido dolorosamente até mesmo por seus próprios membros na consagração de uma freira. Isso não é natural, nem bíblico: é um ultraje para todo sentimento de nossa humanidade, ruinoso tanto para a alma quanto para o corpo, e submeter-se a isso só é possível pelo poder que Satanás tem de cegar as pessoas. Que misericórdia é estarmos longe de sua influência inexplicável e ilusões fatais! Ligeiramente abreviada, a seguinte descrição do cerimonial de uma noviça a tomar os votos vem da pena de uma testemunha ocular da cena que ocorreu em Roma:
"Por favores particulares foram-nos dados os melhores assentos, e, após esperarmos cerca de meia hora, dois criados em ricas texturas abriram caminho para a jovem condessa, que entrou na igreja lotada vestida da cabeça aos pés, com cabelos negros brilhando com diamantes. Apoiada por sua mãe, ela avançou até o altar. O sacerdote oficiante era vicário, o discurso do púlpito foi pronunciado por um monge dominicano, que a apresentou como a esposa prometida de Cristo — uma santa na terra, uma que renunciou às vaidades do mundo por uma antecipação das alegrias do céu.
"Tendo o sermão terminado, a própria doce vítima, ajoelhando-se diante do altar aos pés do cardeal, solenemente abjurou do mundo cujos prazeres e afeições ela parecia tão calculadamente desfrutar, e pronunciou aqueles votos que a separariam dele para sempre. Enquanto sua voz suavemente cantava aquelas palavras fatais, eu acredito que mal havia um olho em toda a imensa igreja que não estivesse cheio de lágrimas. Os diamantes que brilhavam em seus cabelos foram arrancados, e suas longas e belas tranças caíram luxuriantemente sobre seus ombros.
"A grade que a sepultaria foi aberta. A abadessa e sua negra fileira de freiras apareceram. Suas vozes corais cantavam uma sequência de boas-vindas, que dizia, ou parecia dizer ’espírito irmão, venha para fora!’. Ela renunciou a seu nome e título e adotou uma nova denominação, recebendo a bênção solene do cardeal e os últimos abraços de seus amigos em pranto, e então atravessou o ponto de seu destino do qual jamais retornaria. Um painel atrás do outro se abriu, e ela apareceu na grade novamente. Ali ela foi despojada de seus ornamentos e de seu traje esplêndido, seus belos cabelos foram impiedosamente cortados pelas tesouras fatais das irmãs, o que foi o suficiente para fazer toda a congregação estremecer. Assim que foi tosquiada de sua cobertura natural, as irmãs apressaram-se em vesti-la com as roupas sóbrias de freira, a touca branca e o véu de noviça.
“Ao longo de toda a cerimônia ela mostrou grande calma e firmeza, e não foi até que tudo tivesse terminado que seus olhos se encheram de lágrimas de emoção natural. Mais tarde, ela apareceu na pequena porta dos fundos do convento para receber a simpatia, os louvores e congratulações de todos os seus amigos e conhecidos, e até mesmo de estranhos, todos esperando pagar seus cumprimentos à nova esposa do céu.”10
A descrição dada aqui refere-se à profissão de uma freira na tomada do véu branco, um passo que simboliza o início do noviciado, ou ano de teste, ainda não irrevogável. A cerimônia de tomada do véu preto no final do ano é ainda mais solene e terrível, e quando terminada, a freira passa a ser reclusa para o resto da vida, e pode apenas ser libertada de seu voto pela morte. Aos olhos da lei romana, tanto civil quanto eclesiástica, o passo dado estaria além de qualquer revogação. Prisão, tortura e morte temporal e eterna são tidas como as punições pela desobediência. E quem pode dizer, de fora dos muros dos conventos, quais crueldades refinadas e prolongadas não são praticadas lá dentro? O poder é despótico; não há apelação, até que enganador e enganado, perseguidor e vítima indefesa, estejam lado a lado diante do justo tribunal de Deus.
Reflexões sobre os Princípios do Asceticismo
É realmente triste refletir sobre os muitos e sérios erros dos grandes doutores, ou dos primeiros “pais”, como são usualmente chamados. Não sabemos de nada mais grave e solene do que o fato de que eles enganaram muito as pessoas de então, e que por meio de seus escritos eles têm enganado a igreja professa desde então. Quem é capaz de estimar as terríveis consequências de tais ensinos pelos últimos 1400 anos, pelo menos? A má interpretação e má aplicação da Palavra de Deus é evidentemente a regra para esses líderes, e ensinar a sã doutrina é a exceção. E ainda assim eles são o orgulho e a alegada autoridade para uma grande porção da Cristandade até hoje.
Sobre o assunto do asceticismo, qualquer um com conhecimento comum das Escrituras pode enxergar a ignorância que tinham da mente de Deus, e o quanto pervertiam Sua Palavra. Somos exortados, por exemplo, a “mortificar as obras do corpo”, mas nunca a mortificar o próprio corpo. O corpo é do Senhor, e deve ser cuidado. “Não sabeis vós”, diz o apóstolo, “que os vossos corpos são membros de Cristo?”. Verdadeiramente, devem ser reduzidos à servidão, mas este é o modo mais sábio de cuidar do corpo (Romanos 8:13, 1 Coríntios 6:15, 9:27). Novamente, o apóstolo diz: “Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra”, e então ele explica o que são esses membros: “a fornicação, a impureza, o afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria” (Colossenses 3:5). Estas são as obras do corpo que devemos mortificar — que devemos entregar à morte de maneira prática; e isto sobre o fundamento de que a carne foi condenada à morte na cruz. “E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gálatas 5:24). Observe que o versículo não diz que estão crucificando, ou que deveriam crucificar a carne, mas que já a crucificaram. Deus a colocou fora de Sua vista pela cruz, e devemos mantê-la fora de nossa vista pelo auto-julgamento. O corpo, pelo contrário, tem no Novo Testamento um lugar muito importante como o templo do Espírito Santo, mas a tendência do asceticismo é de maltratar o corpo e alimentar a carne. “As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne” (Colossenses 2:23).
Os “pais” parecem ter se esquecido que o asceticismo era fruto da filosofia pagã, e de modo nenhum do cristianismo divino, mas eles parecem nunca terem olhado com cuidado para as Escrituras para conhecerem a mente de Deus sobre esses assuntos. Não tendo entendido a total ruína do homem na carne, eles em vão pensavam que ela podia ser melhorada, e foram assim desviados de inumeráveis maneiras, especialmente quanto à obra de Cristo, o julgamento da carne por Deus, o verdadeiro princípio da adoração, e todo o caminho do serviço cristão.
Tendo visto o estabelecimento do grande sistema monástico que exerceria uma influência tão poderosa em conexão com o cristianismo, a literatura e a civilização através da idade das trevas, deixemos o assunto por enquanto e retornemos à nossa história geral.
Arcádio e Honório (395 d.C.)
Teodósio, o Grande, deixou dois filhos, Arcádio, com idade de dezoito anos, e Honório, que tinha apenas onze. O mais velho ficou com a soberania do Oriente, e o mais novo a do Ocidente. Nada pode ser mais impressionante do que a condição do mundo romano nesse momento, ou mais adequado para despertar nossa compaixão: dois imperadores de tal fraqueza a ponto de serem incapazes de conduzir a administração dos assuntos públicos, e todo o império em um estado de perigo e alarme por causa dos invasores góticos. A mão do Senhor é manifesta aqui. Onde está agora o gênio, a glória e o poder de Roma? Expiraram junto com Teodósio. Em um momento em que o império precisava de prudência, de habilidade marcial e dos talentos de um Constantino, ele foi declaradamente governado por dois príncipes imbecis. Mas seus dias estavam contados na providência de Deus, e deveriam passar muito rápido.
A mais feroz tempestade que já tinha assolado o império estava então pronta a irromper em sua hora de fraqueza. O competente general Flávio Stilicho (ou Stilico), a última esperança de Roma, foi assassinado logo após a morte de Teodósio, e toda a Itália caiu nas mãos dos bárbaros. Os godos tinham se rendido aos exércitos e especialmente à política de Teodósio, mas bastou as notícias de sua morte para que eles se erguessem em revolta e vingança. O famoso Alarico, o astuto e competente líder dos godos, apenas esperou para uma oportunidade favorável para levar adiante um esquema de maior magnitude e ousadia do que qualquer outro que tenha passado na mente de qualquer dos inimigos de Roma desde os tempos de Aníbal. Ele foi, sem dúvida, um ministro dos justos juízos de Deus sobre um povo tão manchado com o sangue de Seus santos, além de terem crucificado o Senhor da glória e matado Seus apóstolos. Deixaremos os detalhes com os historiadores do declínio e queda de Roma: mas podemos dizer brevemente que Alarico era então seguido não apenas pelos godos, mas também pelas tribos de quase todo nome e raça. A fúria do deserto seria então derramada sobre a amante e corrupta do mundo. Ele conduziu suas forças para a Grécia sem oposição; ele devastou sua terra frutífera e saqueou Atenas, Corinto, Argos e Esparta; e aquela que era impiamente chamada de “a cidade eterna” foi sitiada e saqueada. Por seis dias ela foi entregue ao abate sem remorsos e a todo tipo de pilhagem. Assim caiu a culpada e devota cidade pelo juízo de Deus: nenhuma mão se estendeu para ajudá-la: ninguém para lamentar seu destino. Também as províncias mais ricas da Europa, como a Itália, a Gália e a Espanha, foram devastadas pelos sucessores imediatos de Alarico, especialmente Átila, e novos reinos foram instituídos pelos bárbaros. Assim a história do quarto grande império mundial termina por volta do ano 478 d.C., 1229 anos após a fundação de Roma.
Teodorico, rei dos ostrogodos, um príncipe de igual excelência nas artes da guerra e no governo, restaurou uma era de paz e prosperidade, varreu todos os vestígios do governo imperial, e fez da Itália um reino.11
Reflexões sobre as Calamidades de Roma
O leitor cristão pode aqui achar proveitoso fazer uma pausa por um momento e contemplar a derrubada do império ocidental e a divisão de seu território entre as várias hordas de bárbaros. É nosso privilégio e para nossa edificação vermos, em tudo isso, o cumprimento e harmonia das Escrituras, a soberana providência de Deus, e o cumprimento de Seus propósitos. Podemos também nos permitir derramarmos lágrimas de compaixão pelas misérias de nossos iludidos semelhantes. Isso não seria nada mais do que a terna compaixão daquEle que chorou sobre a devota cidade de Jerusalém. É nosso dever estudarmos a história pela certeza da luz das Escrituras; se não for pelas Escrituras — como tentam alguns — será pela incerta luz da história. Assim podemos nos alegrar na presença de Deus com a página da história aberta diante de nós, e nossa fé fortalecida pelo poderoso contraste entre o reino de Deus e toda a glória terrena. “Por isso”, diz o apóstolo, “tendo recebido um reino que não pode ser abalado, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente, com reverência e piedade” (Hebreus 12:28). A superioridade do cristianismo sobre as mais poderosas instituições pagãs foi então manifesta a todos. Quando os esmagadores juízos de Deus caíram sobre a Itália, quebrando em pedaços o cetro de ferro do império, a igreja não sofreu nenhum dano. Em vez de ser exposta ao perigo, ela foi bastante protegida, e usada como o meio para proteger outros. Como a arca que se ergueu sobre as tenebrosas águas do dilúvio, a igreja foi preservada da fúria do invasor. Não houve sinal de bárbaros abraçando a velha religião da Grécia e de Roma: ou eles aderiam às superstições de seus ancestrais, ou adotavam alguma forma de cristianismo. Não há um solo firme para o pecador em meio às convulsões da terra, as ascensões e quedas de impérios, além da Rocha Eterna, o Cristo de Deus ressuscitado e exaltado. “Bem-aventurados todos aqueles que nele confiam” (Salmos 2:12). O Senhor providenciou a segurança de Seu povo pela conversão prévia daqueles que subverteram o império.
A Conversão dos Bárbaros
É sempre interessante e edificante identificar a mão do Senhor ao tornar a ira do homem em instrumento para Seu próprio louvor, e ao trazer o maior bem ao Seu próprio povo em meio ao que parecia ser sua mais pesada calamidade. No reinado de Galieno, por volta de 268, um grande número de provinciais Romanos tinham sido levados em cativeiro pelos bandos góticos; muitos desses cativos eram cristãos, e vários pertenciam à ordem eclesiástica. Eles foram dispersos por seus mestres como escravos nos vilarejos: mas também como missionários pelo Senhor. Eles pregaram o evangelho ao povo bárbaro, e muitos foram convertidos. Seu aumento e ordem podem ser inferidos do fato de que eles foram representados no concílio de Niceia por um bispo chamado Teófilo.
Ulfilas, que é comumente chamado “o Apóstolo dos Godos”, mereceu a grata lembrança da posteridade, mas especialmente dos cristãos. Por volta da metade do século IV, ele inventou um alfabeto e traduziu as Escrituras para a linguagem gótica, com a exceção do livro de Samuel e de Reis, por receio de que seu conteúdo belicoso (cheio de guerras) pudesse parecer favorável à ferocidade dos bárbaros. A princípio eles parecem ter sido simples e ortodoxos em sua fé, mas mais tarde se tornaram profundamente manchados com o arianismo, especialmente após os ministros arianos, que foram expulsos de suas “igrejas” por Teodósio, terem trabalhado diligentemente entre eles.
Alarico e seus godos eram cristãos professos. Eles dirigiam sua ira contra os templos pagãos, mas reverenciavam muito as “igrejas”. Esta foi a grande misericórdia de Deus para Seu povo. Muitos fugiam para as “igrejas”, onde encontravam um santuário. A fé fervorosa e o zelo infatigável de Ulfilas, juntamente com sua vida irrepreensível, tinha ganhado o amor e confiança do povo. Eles receberam na fé as doutrinas do evangelho, que ele pregava e praticava: de modo que os primeiros invasores do império tinham previamente aprendido, em sua própria terra, a professar, ou ao menos respeitar, a religião dos conquistados. E aqui vemos a verdade, ou melhor, o cumprimento das palavras do Apóstolo em sua Epístola aos Romanos: “O evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego”; e depois: “Eu sou devedor, tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes.” Os cidadãos cultos do Império Romano e os rudes habitantes da Cítia e da Germânia foram, do mesmo modo, colocados sob o poder salvador do evangelho.
A Conversão de Clóvis
Como a conversão de Clóvis é conhecida como sendo a mais importante do século V, devemos fornecer alguns detalhes em particular sobre o evento — importante, em relação às suas consequências, tanto imediatas quanto remotas, na história da Europa, e também da igreja.
Os francos, um povo da Germânia, tinham se estabelecido no norte da França, perto da aldeia Cambrai, uma parte mais religiosa do país, que ficou famosa pelo santuário de São Martinho de Tours e pelas lendárias virtudes de outros santos. Clóvis era um pagão, mas Clotilda, sua esposa, tinha abraçado a fé católica. Ela vinha a muito tempo incitando-o a tornar-se cristão, mas ele se demorava a crer. Por fim, no entanto, quando em uma batalha contra os alamanos, e se encontrando em perigo, ele pensou no Deus de Clotilda, e orou a Ele, declarando que seus antigos deuses tinham falhado para com ele, e prometendo se tornar um cristão se ele ganhasse a vitória. A maré da batalha virou; seus inimigos foram derrotados, e, fiel ao seu voto, no Natal de 496, Clóvis foi batizado em Reims pelo bispo Remígio. Três mil guerreiros seguiram seu exemplo, declarando estarem dispostos a adotarem a mesma religião de seu rei.
Aqui temos outro Constantino. Clóvis encontrou na profissão do cristianismo algo mais favorável aos seus interesses políticos, mas isto não produziu mudança para melhor em sua vida. Seu objetivo era conquistar, sua ambição não tinha limite, suas obras eram ousadas e cruéis. De um mero líder franco com um território pequeno ele se tornou o fundador da grande monarquia francesa. E de sua confissão da fé católica, e de sua aliança com o Pontífice Romano, ele foi reconhecido como o campeão do catolicismo, e declarou-se o único soberano ortodoxo do Ocidente: todos os outros eram arianos. Alarico, que conquistou Roma; Genserico, que conquistou a África; Teodorico, o Grande, que se tornou o rei da Itália; e muitos dos reis lombardos, eram todos arianos. Por esse motivo os reis da França derivam de Clóvis o título de “Filho mais velho da Igreja”.
Ao estudante da profecia é interessante observar que, por essa época, pelo menos cinco ou seis reis bárbaros estavam em posse das províncias romanas, e governavam o que havia sido o império latino. Mas isto havia morrido. Morreu como um império, e deve permanecer no lugar de morte até ser ressuscitado, de acordo com a Palavra do Senhor, nos últimos dias (Apocalipse 13, 17).
Antes de concluirmos o período de Pérgamo, achamos que será necessário observar, mesmo que brevemente, três coisas: o estado interno da igreja, a controvérsia pelagiana e a controvérsia nestoriana.
Ritos e Cerimônias
A adoção mais generalizada do cristianismo, como pode-se imaginar, foi seguida por um aumento do esplendor em tudo o que dizia respeito à — assim chamada — adoração a Deus. “Igrejas” foram construídas e adornadas com maiores custos; o clero oficiante passou a vestir-se em roupas mais ricas, a música se tornou mais elaborada, e muitas novas cerimônias foram introduzidas. E esses usos eram então justificados sobre o mesmo terreno que a alta cúpula da igreja usa para justificar os extraordinários ritos e cerimônias nos dias de hoje12. A intenção era recomendar o evangelho aos pagãos por cerimônias que pudessem superar aquelas da velha religião. Multidões eram, então, atraídas à igreja, como são hoje, sem qualquer entendimento suficiente sobre sua nova posição, e com mentes ainda possuídas de noções pagãs e corrompidas pela moralidade pagã. Mesmo nos primeiros dias do cristianismo encontramos irregularidades na igreja em Corinto no que diz repeito às práticas não esquecidas dos pagãos. O acendimento de velas à luz do dia, incenso, images, procissões, purificações, e inumeráveis outras coisas, foram introduzidas nos séculos IV e V. Como observa Mosheim: “Enquanto a boa vontade dos imperadores colaborasse com o avanço da religião cristã, a piedade indiscreta dos bispos obscurecia sua verdadeira natureza e oprimia suas energias pela multiplicação dos ritos e cerimônias.”13
A Influência Degenerativa do Ritualismo
A tendência de todo o ritualismo eclesiástico é produzir um espírito de superstição que subverte a fé: do mero formalismo que substitui a direção do Espírito Santo, e de descansar em nossas próprias boas obras em rejeição à obra consumada de Cristo. A Palavra de Deus é assim praticamente deixada de lado, o Espírito Santo é entristecido, e o coração é aberto para as incursões de Satanás. Quando a fé se encontra em vivo exercício, a Palavra de Deus é estritamente seguida, e a prometida direção do Consolador é confiada, a alma é forte e vigorosa na vida divina, e as sugestões do inimigo passam despercebidas. Satanás é um atento observador dos diferentes estados da alma do crente e da igreja professa. Ele sabe quanto será bem-sucedido em suas tentativas contra o crente individual ou contra a igreja; ele espera o tempo certo — ele aguarda uma oportunidade. Quando ele vê a mente tomando uma direção errada, ele sussurra, bajula, estimula. Que pensamento solene para todos nós!
A Heresia Pelagiana
A condição da igreja no início do século V deu ao adversário uma oportunidade de trazer uma nova heresia, que introduziu uma nova controvérsia que continuou com mais ou menos violência desde aqueles dias até hoje. Trata-se do pelagianismo. A grande heresia, o arianismo, que tinha até então agitado a igreja, originou-se no Oriente e era relacionada à Divindade de Cristo, e agora esta nova se erguia no Ocidente, e tinha por assunto a natureza do homem após a queda e suas relações com Deus. Esta deturpava a questão do pecador perdido, e aquela, o divino Salvador.
Diz-se que Pelágio foi um monge do grande monastério de Bangor, no País de Gales, e provavelmente o primeiro bretão que se distinguiu como um teólogo. Seu verdadeiro nome era Morgan. Supõe-se que seu seguidor, Celéstio, era nativo da Irlanda. Agostinho fala dele como sendo mais jovem que Pelágio — e mais ousado e menos astuto. Estes dois companheiros no erro visitaram Roma, onde se tornaram íntimos de muitas pessoas de reputação ascética e santa, e disseminaram suas opiniões com cautela e privacidade. Mas, após o cerco do ano 410, eles passaram para a África, onde avançaram mais abertamente com suas opiniões.
Aparentemente a motivação de Pelágio não estava em qualquer desejo de formar um novo sistema doutrinal, mas sim de se opôr ao que considerava ser indolência moral e um espírito mundano entre os irmãos. Por isso, ele sustentava que o homem possuía um poder inerente para fazer a vontade de Deus e para alcançar o mais alto grau de santidade. Deste modo suas visões teológicas foram, em grande medida, bem formadas e determinadas, porém totalmente falsas, sendo consistentes somente com seu asceticismo rígido e com os frutos nativos que este produzia. Como as Escrituras inegavelmente atribuem todo o bem no homem à graça de Deus, assim Pelágio também, num sentido criado por ele próprio, reconhecia isso; mas suas ideias sobre graça divina eram, de fato, nada mais do que os meios externos para ressaltar os esforços humanos: ele não via a necessidade de uma obra de graça celestial no coração e nem da operação do Espírito Santo. Isto o levou a ensinar que o pecado de nossos primeiros antepassados não tinham prejudicado ninguém além deles mesmos, e que o homem é agora nascido tão inocente como Adão, como Deus o havia criado, e que era possuidor do mesmo poder e pureza moral. Estas doutrinas, e outras ligadas a elas, especialmente a ideia do livre arbítrio do homem — “um poder imparcial de escolha entre o bem e o mal” — foram secretamente disseminadas por Pelágio e seu colega Celéstio em Roma, Sicília, África e Palestina. No entanto, as novas opiniões foram geralmente condenadas, exceto no Oriente. Lá, por exemplo, João, bispo de Jerusalém, que considerava que as doutrinas de Pelágio concordavam com as opiniões de Orígenes, às quais ele tinha aderido, promoveu Pelágio, permitindo que ele professasse livremente seus sentimentos e angariasse discípulos.14
Agostinho e a Graça Divina
Agostinho, o famoso bispo de Hipona, a grande luz evangélica15 do Ocidente, e o mais influente de todos os escritores cristãos latinos, começou por volta dessa época a refutar, com sua pena, as doutrinas de Pelágio e Celéstio. E principalmente a ele é dado, como sendo um instrumento de Deus, o crédito de impedir o crescimento dessa seita naquele tempo. Por uma marcante conversão, e por profundo exercício de alma, ele tinha sido treinado sob a disciplina do Senhor para realizar essa grande obra. Foi assim que o todo-sábio Deus secretamente levantou um testemunho em oposição a Pelágio, e, por meio de sua heresia, pôs em evidência mais visões do evangelho da graça do que tinha sido ensinado desde os tempos dos apóstolos, e também visões mais plenas da verdade, santidade e humildade cristã. As igrejas ocidentais, conduzidas por Agostinho, continuaram perseverantemente resistindo às falsas doutrinas com concílios, livros e cartas. Os gauleses, os bretões, e até mesmo os palestinos, por seus concílios, e os imperadores por suas leis e penalidades, até então tinham esmagado a controvérsia logo em seu início. Mas os princípios fundamentais do pelagianismo em suas muitas formas e níveis permanecem até o tempo presente. No entanto, em vez de rastrear a história dessa heresia, vamos brevemente nos referir ao que as Escrituras ensinam sobre os dois principais pontos do assunto.
Reflexões sobre a Condição do Homem e a Graça de Deus
Se o mero raciocínio humano fosse permitido nessa controvérsia, ela seria interminável. Mas se a autoridade da Palavra de Deus é respeitada, ela logo se resolve. Que há algo bom na natureza humana caída, e que o homem, como tal, tem poder para escolher o que é bom e rejeitar o que é mal, são coisas que estão na raiz do pelagianismo em suas numerosas formas. A total ruína do homem é negada, e todas as ideias de graça divina que parecem inconsistentes com o livre arbítrio do homem são excluídas desse sistema. Mas o que diz as Escrituras? Uma única linha da Palavra de Deus satisfaz o homem da fé. E isto deveria ser o único argumento do mestre, do evangelista e do cristão em particular. Devemos sempre tomar o terreno da fé contra todos os adversários.
Em Gênesis 6, Deus expõe Sua opinião sobre a natureza humana caída. “E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente”. Deus não podia encontrar nada no homem além do mal, e mal sem cessar. Novamente, no mesmo capítulo, lemos: “E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra”. Não alguma carne, observemos, mas toda a carne tinha corrompido seu caminho sobre a terra. Aqui temos o juízo de Deus sobre a natureza corrupta; mas, ao mesmo tempo, Ele revela Sua graça soberana para redimir a condição do homem assim julgado. Deus provê uma arca de salvação, e então anuncia o convite: “Entra tu e toda a tua casa na arca” (Gênesis 7:1). A cruz é o testemunho, e a grande expressão, das grandes verdades figuradas pela arca. Ali temos de um modo, como em nenhum outro lugar, o juízo de Deus sobre a natureza humana com todo o seu mal; e, ao mesmo tempo, a revelação de Seu amor e graça em toda sua plenitude de poder salvífico.16
Mas todas as Escrituras são consistentes com Gênesis 6 e a cruz de Cristo. Tome, por exemplo, Romanos 5 e Efésios 2. No primeiro é dito estarmos “fracos”; mas no último, que estamos “mortos”, mortos em delitos e pecados. O apóstolo, mais no início da Epístola aos Romanos, com muito cuidado prova a ruína do homem e a justiça de Deus, e aqui temos Seu amor demonstrado no grande fato da morte de Cristo por nós. “Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios”. Mas por que é dito “a seu tempo”? Porque o homem tinha sido plenamente provado ser não apenas “ímpio”, mas “fraco” demais para fazer qualquer coisa boa para Deus, ou para se mover um passo sequer em sua direção. Sob a lei, Deus mostrou ao homem o caminho, apontou meios, e deu-lhe uma longa prova; mas o homem não tinha poder algum para sair de sua triste condição de pecador. Quão humilhante, mas quão saudável, é a verdade de Deus! É bom conhecermos nossa condição de perdidos. Quão diferente é isso da falsa teologia e da orgulhosa filosofia dos homens! Mas da parte de Deus, bendito seja Seu nome, o estado do homem (assim demonstrado) foi apenas a oportunidade para a manifestação de Sua graça salvadora; e por isso Jesus morreu. “Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores”. Agora o homem deve se deparar, ou com o juízo de Deus em incredulidade, ou com Sua salvação pela fé. Não há algo como estar “encima do muro”. A prova mais completa de nossa condição perdida e do amor gracioso de Deus é “que Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5:6–10).
Em Efésios 2 não se trata meramente de uma questão de fraqueza moral do homem, mas de sua morte. “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados”. Em Romanos o homem é visto como impotente, ímpio, um pecador, e um inimigo; aqui, como moralmente morto: e este é o pior tipo de morte, pois é a própria fonte da mais ativa impiedade. “Em que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência”. Que golpe para o orgulhoso poder que o homem pensa ter de escolher entre o bem e o mal! Aqui, ao contrário, ele é visto como estando sob o governo de demônios — como escravo de Satanás. O homem admite muito mais facilmente ser ímpio do que impotente. Ele se orgulhará de ter sua opinião própria — de ser independente e muito capaz de julgar e escolher por si próprio nas coisas espirituais.
Um dos dogmas favoritos de Pelágio, se não o fundamento de seu sistema, era que “como o homem tem a capacidade de pecar, assim também ele não apenas tem a capacidade de discernir o que é bom, mas do mesmo modo tem poder para desejá-lo e realizá-lo. E esta é a liberdade do arbítrio, que é tão essencial para o homem que ele não pode perdê-la”. Nos referimos a esta falsa noção simplesmente porque ela é muito aceita pela mente natural, e é tão difícil de se livrar dela mesmo após sermos convertidos, sendo sempre um grande obstáculo à obra da graça de Deus na alma. Uma vez que o homem está morto em seus pecados, Deus e Sua própria obra devem ser tudo. É claro que há uma grande variedade entre os homens naturalmente, quando estão “fazendo a vontade da carne e dos pensamentos”. Alguns são benevolentes e morais, alguns vivem em grosseira e aberta impiedade, e alguns podem ter um gratificante tipo de coração sensível: mas por que motivo? Para fazer a vontade de Deus? Certamente não! Deus não está em todos os seus pensamentos. Eles são energizados pelo espírito de Satanás, e guiados por ele de acordo com o curso deste mundo. “Nenhum servo pode servir dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se há de chegar a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom.” (Lucas 16:13)
Como o Homem é Responsável?
Mas onde, pode-se perguntar, e de que forma entra a responsabilidade do homem? Certamente o homem é responsável por considerar que Deus é verdadeiro, e aceitar como justo, por mais humilhante que seja, Seu julgamento sobre sua natureza e caráter. “Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior” (1 João 5:9). Aceite esse quadro sombrio que Deus pinta sobre o homem e diga: este sou eu, isto é o que eu tenho feito e o que eu sou. A salvação é pela fé: não pelo arbítrio (desejo), escolha, ou obras, mas sim pelo crer. “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele… E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más.” (João 3:16–19)
Como poderia alguém deixar de ver que uma responsabilidade é criada por essa demonstração de bondade divina em Cristo, e uma de caráter tão óbvio, solene e considerável? Tanto é assim, de fato, que a evidência é decisiva e final, e que o incrédulo será julgado diante de Deus. Não é uma questão, perceba, deles não encontrarem perdão, mas de preferirem as trevas à luz para que continuem em pecado. Isto é o que Deus coloca contra eles, e como poderia haver um fundamento mais justo e razoável de condenação? Impossível. Que possa ser a feliz condição de todos os que leem essas páginas de se curvarem à humilhante sentença das Escrituras sobre nossa natureza, e de nos considerarmos pecadores perdidos à vista de Deus. Que assim um Deus todo misericordioso e gracioso nos encontre na grandeza de Seu amor, e nos abençoe com tudo o que é devido a Cristo, como o Salvador da humanidade.
Os Nestorianos
Como a seita chamada de nestoriana ocupa um lugar importante na história da igreja, vamos tomar nota brevemente de sua formação. Eles são, às vezes, chamados de sírios, uma vez que seu fundador foi um sírio. Cremos que são numerosos na Síria atualmente17, mas não receberam do governo turco a proteção a qual tinham direito, e assim foram expostos a constantes assaltos das tribos predatórias. Milhares de nestorianos nas montanhas do Curdistão, incluindo homens, mulheres e crianças, foram massacrados em 1843, e suas vilas totalmente destruídas pelas tribos curdas. Desde o ano 1834, uma interessante missão foi estabelecida entre eles pelo Conselho Americano de Missões Estrangeiras. O caráter e procedimentos da missão são muito comentados por Dr. Grant, um dos missionários que residiu entre os nestorianos por um tempo considerável, e que tinha estudado seus modos e costumes com grande minúcia e cuidado, e acabou publicando um tratado visando provar que essa interessante classe de pessoas são os descendentes das dez tribos perdidas de Israel. Mas suas conclusões, como outras sobre o mesmo assunto, podem muito bem ser postas em dúvida.18
Nestório, um monge sírio, tornou-se um presbítero da igreja em Antioquia. Ele era estimado e celebrado por conta da rígida austeridade de sua vida, e do impressionante fervor de sua pregação. Ele atraiu grandes e atentas audiências, e logo se tornou um grande favorito do povo. No ano 428 ele foi consagrado bispo de Constantinopla. Mas a disciplina do claustro tinha lhe preparado mal para uma posição tão importante na vida pública. Tão logo ele foi promovido a esse nível, ele começou a demonstrar um zelo intemperado contra as várias descrições dos hereges, o que devia-se mais ao fanatismo do monge do que ao espírito tolerante e suave do cristianismo genuíno. Em seu discurso inaugural, dirigindo-se ao imperador Teodósio, o jovem, ele se pronunciou com estas violentas expressões: “Dá-me um país purgado de todos os hereges, e em troca por isto eu lhe darei o céu. Me ajude a subjugar os hereges, e eu lhe ajudarei a subjugar os persas”. Mas não demorou muito até que o próprio Nestório fosse também acusado de heresia.
O novo bispo logo em seguida pronunciou sua declaração de guerra contra os hereges por meio de Atos de violência e perseguição. Ele excitou tumultos entre o povo: os arianos foram atacados, sua casa de reuniões foi queimada, e outras seitas foram perseguidas. Tais procedimentos, no entanto, logo levantaram contra Nestório, até mesmo dentre os ortodoxos, uma numerosa hoste de inimigos, que buscaram e logo conseguiram sua queda. Aconteceu assim…(continua no próximo tópico).
Anastácio e a Mariolatria
Anastácio, um presbítero que tinha acompanhado Nestório desde a Antioquia, e que era seu amigo íntimo, atacou, em um discurso público, o uso da expressão “Mãe de Deus”, que era aplicada à virgem Maria. O termo então posto em oposição tão violentamente tinha do seu lado a autoridade do uso consagrado pela tradição e muitos nomes de grande peso para com o povo. Nestório aprovou o discurso, apoiou seu amigo, e em vários discursos explicou e defendeu seu ataque. Muitos ficaram satisfeitos com esses discursos, e muitos se despertaram contra Nestório e seu amigo: a agitação em Constantinopla foi imensa, os gritos de “Heresia, heresia!” se ergueram e as chamas de uma grande e dolorosa controvérsia se acenderam.
A Diferença Entre Nestório e Seus Oponentes
Nunca houve uma contenda doutrinal na qual os partidos em conflito fossem tão próximos. Ambos aderiam e apelavam ao credo niceno: ambos criam na absoluta Divindade e na perfeita humanidade do Senhor Jesus. Mas foi inferido pelos inimigos de Nestório, especialmente por Cirilo, que ele era inconsistente quanto à encarnação, com base em sua objeção ao termo “mãe de Deus”. O significado ou importância do disputado termo, como usado pelos doutores no século anterior, não era o de implicar que a virgem comunicou a vida divina ao Salvador, mas de afirmar a união da Divindade e humanidade em uma Pessoa — que o “menino nos nasceu, um filho se nos deu”, era Deus encarnado. Assim foi atribuída a Nestório a ideia de que ele defendia a mera humanidade do Redentor, e que o Espírito apenas habitou nEle após ter se tornado um homem, como acontecia antigamente com os profetas. Mas Nestório, enquanto viveu, se declarou totalmente oposto a tais opiniões. Também não parece que tais opiniões foram alguma vez afirmadas por ele, mas apenas inferidas por seus adversários com base na sua rejeição do epíteto “Mãe de Deus”, e de alguns termos incautos e ambíguos que ele utilizou em seus discursos públicos sobre o assunto.
Cirilo e a Ortodoxia
Cirilo, bispo de Alexandria, na controvérsia que tinha se erguido, aparece como o grande campeão da ortodoxia. Mas todos os historiadores concordam em atribuir a ele um caráter mais soberbo e contrário ao de um cristão. Ele é acusado de ser movido pela inveja por causa do crescente poder e autoridade do bispo de Constantinopla, e de ser incansável, arrogante e inescrupuloso em seus caminhos. Ele era também tão violento contra os hereges quanto Nestório. Ele perseguiu os novacianos e expulsou os judeus de Alexandria. Um zelo honesto e piedoso pode ter animado esses grandes clérigos, mas eles falharam totalmente em unir ao zelo a prudência e moderação cristã, e logo aliaram ao zelo as piores paixões da natureza humana.
Cirilo foi primeiramente impelido a entrar na controvérsia quando descobriu que cópias dos sermões de Nestório estavam circulando entre os monges no Egito, e que eles tinham abandonado o termo “Mãe de Deus”. Ele imediatamente culpou tanto os monges quanto Nestório, e denunciou a novidade como herética. Todas as partes logo se agitaram, e palavras raivosas, que não precisam ser agora repetidas, foram usadas por todos os partidos. É suficiente dizer que, quando Nestório descobriu que Cirilo tinha habilmente conseguido assegurar a influência de Celestino, bispo de Roma, e que ele estava envolvido com outras dificuldades, ele apelou a um concílio geral. Como alguns de seus oponentes já tinham peticionado para tal assembleia, ela foi acordada, e o imperador Teodósio emitiu ordens para uma assembleia em Éfeso no ano 431, que é chamada de Terceiro Concílio Geral. Eles se reuniram em junho. Cirilo, em virtude da dignidade de sua sé, presidiu. Acusações foram postas contra Nestório. Ele foi condenado como culpado de blasfêmia, privado da dignidade episcopal, cortado do sacerdócio em todas as partes, e enviado ao exílio, no qual ele terminou seus dias por volta do ano 450.
Cerca de 200 bispos assinaram a sentença contra Nestório, mas ainda assim permanece a questão, por parte da maioria dos historiadores, se ele era realmente culpado de aderir aos erros pelos quais foi condenado. Mas todos concordam que ele era imprudente e intemperado em sua linguagem, vaidoso de sua própria eloquência, que desconsiderava os escritos dos primeiros “pais”, e que era apto a ver heresias em tudo o que diferia da fraseologia dogmática à qual estava acostumado desde jovem. Mas é difícil determinar quem foi o principal causador dessa grande disputa: se foi Cirilo ou Nestório.19
O Encerramento do Período de Pérgamo
O concílio de Éfeso estava longe de pôr fim a essas contendas vergonhosas. Em vez de restaurar harmonia à igreja, só fez aumentar suas angústias. João, bispo de Antioquia, e outros clérigos orientais, julgaram Cirilo e seus amigos de terem agido muito injustamente e com precipitação inadequada no caso de Nestório: assim ergueu-se uma nova controvérsia, e em meio a isto nasceu uma nova heresia — o eutiquianismo, que muito perturbou as igrejas orientais por cerca de vinte anos.
Eutiques, abade de um convento em Constantinopla, na ânsia de sua oposição ao nestorianismo, correu ao extremo oposto. Ele foi acusado de inconsistência quanto às doutrinas da encarnação, e denunciado como herege. Isto levou a outro concílio que ocorreu na Calcedônia no ano 451, e que é chamado de Quarto Concílio Geral. Mas os detalhes dessas disputas locais fogem do escopo deste livro. Nosso plano é dar ao leitor um esboço distinto no menor espaço possível, e apenas apresentar alguns poucos detalhes em casos em que o nome da pessoa se tornou um sinônimo para as opiniões que ensinava, tais como Ário, Pelágio, etc., ou quando os eventos, tais como as grandes perseguições, merecem a atenção da igreja ao longo de todas as eras.
Para levar a cabo esses propósitos, será agora necessário voltarmos nossa atenção mais especialmente ao poder crescente e às sublimes pretensões da igreja de Roma. Em Leão, o Grande, podemos ver o encerramento do período de Pérgamo, e a aproximação da monarquia papal. Mas antes de nos aventurarmos nessas águas turbulentas, faremos bem em estudarmos nosso mapa divino — a história profética de Deus da igreja durante aquele período tenebroso e, muitas vezes, tempestuoso.
The Inquirer, 1839, p. 232↩
Veja História do Batismo Infantil, de Dr. Wall. Nós citamos sua tradução (para o Inglês) dos “pais”. Tendo recebido os agradecimentos do clero da Câmara dos Comuns, da Convocação, e as honras de D. D. da Universidade de Oxford, por sua grande obra em defesa do batismo infantil, podemos confiar em suas citações como essencialmente corretas, e como as mais favoráveis em relação ao tema.↩
N. do T.: o livro foi escrito no século XIX↩
Política Eclesiástica, de Hooker, livro 5. Burnet em Artigos, artigo 27.↩
Pelos reformadores, e mais tarde pelos puritanos, foram feitos esforços para encontrar nas Escrituras o que a igreja de Roma tinha mantido como tradição; os protestantes recorriam à Bíblia para tudo, e os católicos para os “pais”.↩
Reflexões sobre a História de Wall, de Gale, vol. 3, p. 84↩
História Geral da Igreja, vol. 3, p. 310. Veja também História da Igreja, por James Craigie Robertson, vol. 1, p. 295.↩
Robertson, volume 1; Neander, volume 3; Crenças do Mundo, de Gardner, volume 2.↩
Waddington, vol. 2, p. 252.↩
Crenças do Mundo, de Gardner.↩
Enciclopédia Britânica, vol. 19, p. 420. Dezoito Séculos Cristãos, de White, p. 94.↩
Veja A Igreja e o Mundo, 1866.↩
História Eclesiástica, vol. 1, p. 366, Murdock e Soames. Robertson, vol. 1, p. 316.↩
“O erro fundamental do monge Pelágio era a negação de nossa total corrupção pelo pecado derivado de Adão, e expiado unicamente pela morte e ressurreição do segundo Homem, o último Adão. Por isso ele pregava que a liberdade era verdadeiramente possuída por todos os homens, não apenas no sentido de isenção de alguma restrição exterior, mas da liberdade da natureza de escolher entre o bem e o mal, negando, assim, a escravidão do pecado no interior do homem. Assim, mesmo em sua aplicação cristã, ele parece ter compreendido a graça como pouco mais do que o perdão por esta ou aquela ofensa, e não como a concessão de uma nova natureza ao crente, devido a qual ele não pratica o pecado, pois nasceu de Deus. Assim não havia lugar no esquema pelagiano para o homem estar perdido de um lado, e para o crente estar salvo no outro. De fato, ele pregava que a raça humana era concebida em uma inocência como a do estado primordial de Adão até que pecasse e então caísse sob a culpa e suas consequências. Os pelagianos negavam a imputação do pecado de Adão, vendo nele nada mais do que a influência de um mal exemplo. Assim, enquanto a ruína moral do homem o fazia perder a força, bem como o relacionamento com o Cabeça da igreja, por um lado, pelo outro lado, sob a graça, estavam contadas todas as naturais e as sobrenaturais dotações da família humana. Por isso, a lei da consciência e o evangelho eram considerados como diferentes métodos e diferentes estágios de justiça, sendo os recursos e operações da graça válidos apenas de acordo com as tendências da vontade. Novamente, a redenção em Cristo se tomou, se não um mero aperfeiçoamento, com certeza uma exaltação e transfiguração da humanidade. O próprio Cristo não era nada além do padrão supremo de justiça, alguém que estimulava uns a guardarem perfeitamente a lei moral, e, por Sua obra, estimulava outros ao amor e ao exemplo pelos conselhos evangélicos da perfeição moral superior à lei.” W. Kelly↩
N. do T.: aqui não se refere ao que conhecemos hoje como “denominações evangélicas”, mas simplesmente no sentido puro da palavra, isto é, daquilo que defende o evangelho.↩
Para detalhes, veja Notas sobre o Livro de Gênesis.↩
N. do T.: este texto foi escrito no século XIX↩
Veja Crenças do Mundo, de Gardner, vol. 2, p. 531↩
Manual dos Concílios, de Landon, p. 225; Neander, vol. 4, p. 141; Mosheim, vol. 1, p. 468.↩
Roma e a Expansão de Sua Influência (397—590 d.C.)
A Epístola à Igreja em Tiatira
“E ao anjo da igreja de Tiatira escreve: Isto diz o Filho de Deus, que tem seus olhos como chama de fogo, e os pés semelhantes ao latão reluzente: Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras. Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu. Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras. E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras. Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha. E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações, e com vara de ferro as regerá; e serão quebradas como vasos de oleiro; como também recebi de meu Pai. E dar-lhe-ei a estrela da manhã. Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.” (Apocalipse 2:18–29)
Pensamos que basta um pouco de discernimento espiritual e um conhecimento moderado sobre a história eclesiástica para ver o papado da Idade Média prenunciado nesta epístola. Vimos em Éfeso o declínio do primeiro amor, em Esmirna a perseguição do poder romano, em Pérgamo vemos Balaão seduzindo a igreja e a unindo ao mundo; mas as coisas são ainda piores em Tiatira. Aqui temos as consequências tristes porém naturais dessa união ímpia. Como poderia ser de outro modo quando qualquer que meramente se submetesse ao rito exterior do batismo fosse considerado como nascido de Deus? A porta foi assim escancarada para que o destruidor e o corruptor entrassem no recinto sagrado da igreja de Deus. Todo o testemunho quanto ao seu caráter celestial e sua separação do mundo estava agora perdido. Ela tinha falsificado a palavra do Senhor que diz aos Seus discípulos: “Não são do mundo, como eu do mundo não sou” (João 17:16). De fato, na aparência, o cristianismo tinha ganhado uma vitória. A cruz era então revestida em ouro e pedras preciosas, mas esta era a glória do mundo, não de um Cristo crucificado. Era, na verdade, o mundo que tinha ganhado a vitória, e a humilhação da igreja assim estava completa.
Apenas o Senhor podia estimar as terríveis consequências de tal estado de coisas. Seus olhos viam a corrupção, as idolatrias, e as perseguições da assim chamada Idade das Trevas, da qual a igreja em Tiatira foi um prenúncio notável. Veremos agora resumidamente o conteúdo da epístola.
Os títulos do Senhor são a primeira coisa a ser observada. Eles são cheios das mais adequadas instruções para os poucos fiéis quando o corpo geral de cristãos está identificado com este mundo. Ele Se apresenta como o Filho de Deus, que tem olhos como chama de fogo, e Seus pés como latão reluzente. Quando Pedro confessou que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo, Ele imediatamente acrescentou: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. E agora, em antecipação a tudo o que estava por vir, Ele chama a atenção para os pensamentos de Seu povo para o fundamento imutável sobre o qual a igreja é construída. Ele também assume os atributos do juízo divino. Fogo é o símbolo dos penetrantes olhos de juízo, como chamas de fogo, de um juízo que a tudo perscruta; e os pés como latão reluzente, do juízo iminente.
Aqui temos, então, no caráter que o bendito Senhor toma, a garantia da perfeita segurança do remanescente fiel, e a afirmação do infalível julgamento sobre a falsa profetiza e sua numerosa prole de filhos corruptos — filhos de sua sedução e corrupção. Jezabel era não apenas uma profetiza como também uma mãe: ela não apenas seduziu o povo de Deus por suas falsas doutrinas, matando também a muitos; como também uma ampla classe dos piores dentre os homens derivou sua existência a partir de sua corrupção [de Jezabel]. Isto é dolorosamente manifesto no decorrer de toda a Idade das Trevas—o “estado de Jezabel” da igreja. Ela se estabeleceu dentro da igreja como se fosse sua própria casa, e decretou a todo o mundo que ela era infalível e que devia ser implicitamente obedecida em todos os assuntos da fé. Concordar com tal suposição blasfema era infidelidade a Cristo; se opôr a ela resultava em sofrimento e morte.
À medida que as pretensões de Roma falavam cada vez mais alto e as trevas cresciam cada vez mais densas, muitos dos santos de Deus se tornaram cada vez mais devotos a Cristo e a Suas reivindicações. O que é devido a Cristo deve sempre ser a palavra de ordem do cristão, e não o que é devido àqueles em posições elevadas. Parece ter havido uma energia espiritual nessa época que se ergue acima de tudo o que houve desde os dias dos apóstolos. Isto é graça — a maravilhosa graça de Deus para com Seus verdadeiros santos em um tempo de muita provação. É a linha prateada de Seu próprio amor que é tão preciosa a Sua vista. Podemos nem sempre ser capazes de traçá-la na história eclesiástica, mas lá está ela, e lá ela brilha aos olhos e ao coração de Deus em meio à abundante iniquidade. Isto deve ser notado, e sempre lembrado, como algo de muito encorajamento ao cristão quando colocado em circunstâncias de provas. Ouça o que o Próprio Senhor diz: “Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras”. Aqui temos amor, fé e esperança em vivo exercício, os três grandes princípios fundamentais do verdadeiro cristianismo prático; e vemos que as últimas obras são mais que as primeiras. Não nos deparamos com tal testemunho fiel, ou tal medida de devoção, desde os primeiros dias da igreja em Tessalônica. Pode ser, no entanto, que a impiedade ao redor tornou a piedade deles ainda mais preciosa para o coração do Senhor, levando-O a elogiá-los ainda mais. Mas nenhum coração que bate verdadeiramente para Ele em um dia mau passará desconhecido, despercebido ou não recompensado.
No entanto, embora o Senhor ame elogiar o que Ele pode em Seu povo, e observar as coisas boas antes de falar das coisas más, Ele também não tarda em detectar suas falhas. Eles corriam o perigo de adulterarem com a falsa doutrina e com o falso sistema religioso de Jezabel; portanto Ele diz: “Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria” (v. 20). Não obstante a fidelidade de muitas almas fervorosas em Tiatira (ou seja, na igreja medieval), havia também a aceitação pública do espírito do mal: “toleras a mulher Jezabel” (versão Almeida Revisada). Esta era a sombra escura sobre a linha prateada: que às vezes acaba parecendo completamente obscurecida. Mas o Senhor não falhou, como sempre, em levantar testemunhas adequadas para Ele Próprio. Assim como havia santos na casa de César, um Obadias na casa de Acabe, um remanescente fiel em Israel que não tinha se curvado a Baal, assim o Senhor nunca foi deixado sem uma testemunha fiel no decorrer da Idade Média. No entanto, havia uma permissividade ao mal no estado geral de coisas, o que entristecia o coração do Senhor e trazia os Seus juízos.
“A mulher”, pode ser interessante observar, é usada como um símbolo do estado geral; “o homem”, é dito, é um símbolo de atividade responsável. Balaão e Jezabel são nomes simbólicos — um profeta e uma profetiza. O primeiro agiu como um sedutor entre os santos; e a última se estabeleceu dentro da igreja professa e fingia ter absoluta autoridade ali. Isto era ir muito além até mesmo da impiedade de Balaão. Mas todos sabemos o que Jezabel foi quando se assentou como rainha em Israel. Seu nome chega até nós como envolto em crueldades e sangue. Ela odiava e perseguia as testemunhas de Deus; ela encorajava e patrocinava os sacerdotes idólatras e profetas de Baal; ela acrescentava violência à corrupção: tudo virou ruína e confusão. E este é o nome que o Senhor escolheu para simbolizar o estado geral da igreja professa durante a Idade Média. Em Tiatira, Ele, cujos olhos eram como chama de fogo, podia ver a semente daquilo que carregaria tal fruto ruim até dias póstumos, e assim Ele adverte Seu povo para que retenham aquilo que eles já tinham, o que inclui Ele Próprio. “Outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha”. Como o estado de Jezabel continua até o fim e nunca pode ser consertado, o Senhor direciona então os olhos da fé do remanescente para Seu próprio retorno — “Até que eu venha”. A brilhante esperança de Sua vinda é assim apresentada como um conforto ao coração em meio à ruína geral; e Seus santos são aliviados, pelo Próprio Senhor, das vãs tentativas dos homens de consertar a igreja 1 e o mundo. Que libertação misericordiosa! Mas a pobre natureza humana não pode entendê-la, e assim tenta, vez após outra, consertar questões tanto na igreja como no Estado.
Temos evidentemente três classes de pessoas mencionadas nesta epístola: (1) Os filhos de Jezabel — aqueles que devem seu nome e lugar cristão ao seu sistema corrupto. Um julgamento impiedoso levará a todos estes. Foi dado espaço para o arrependimento, mas eles não se arrependeram; portanto, o pleno juízo de Deus cairá sobre eles. “Ferirei de morte a seus filhos”. (2) Aqueles que não são seus filhos, mas que não fazem oposição a ela: são maleáveis e indolentes. Esta, infelizmente, é uma ampla classe de pessoas em nossos próprios dias. Ela caracteriza a condição pública da cristandade. Sem consciência diante de Deus, eles se contentam em flutuar suavemente correnteza abaixo, em comunhão com algum sistema religioso que lhes pareça mais agradável a suas próprias mentes. Quanto ao que é agradável para a mente de Deus, eles nunca buscam saber. Ainda assim eles são Seus filhos. O juízo para tais é “grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras”. (3) O remanescente fiel, os “vencedores”. Eles são aqui mencionados como “os demais”, ou o remanescente; eles terão poder sobre as nações em associação com Cristo quando Ele vier para reinar. Enquanto isso eles têm essa doce e preciosa promessa: “E dar-lhe-ei a estrela da manhã”. Isto é a associação consciente com Ele Próprio até mesmo hoje. A igreja medieval era especialmente culpada de duas coisas: ela arrogante e perversamente buscava possuir poder supremo sobre as nações, e ela perseguia o remanescente fiel dos santos, tais como os valdenses e outros. Mas os santos, uma vez assim perseguidos, ainda possuirão o reino, e reinarão com Cristo por 1000 anos; e todo o sistema de Jezabel será totalmente e para sempre rejeitado: “É forte o Senhor Deus que a julga” (Apocalipse 18:8).
Há apenas mais uma coisa para tomar nota neste esboço da condição pública da cristandade desde o início do sistema papal. A exortação a “ouvir” é colocada após a promessa especial. Isto marca o remanescente como distinto e separado do corpo geral. Nas três primeiras igrejas a palavra de advertência — “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” — vem antes da promessa. Mas nas quatro igrejas finais temos a promessa antes do chamado a ouvir. O significado óbvio dessa mudança é profundamente solene. Nas primeiras três, o chamado a ouvir é dirigido a toda a assembleia, mas nas últimas apenas ao remanescente. Parece que, nestas, é esperado que ninguém ouviria além dos vencedores. O corpo professo geral parece tanto cego como surdo através do poder de Satanás e das poluições de Jezabel; que temível condição! Devemos também ter em mente que os quatro estados, como representados pelas últimas quatro igrejas, continuam até o final da vinda do Senhor. Que Ele possa nos guardar de tudo o que cheire a Jezabel, para que possamos apreciar devidamente nossa união com Ele Próprio e Suas bênção prometidas aos “vencedores”.
Tendo então brevemente examinado o quadro divinamente pintado sobre o estado de Jezabel da igreja durante a Idade das Trevas, nos voltaremos agora aos amplos, porém tristes, registros de sua história.
O Começo do Período Papal
É geralmente admitido que esse período começa com o pontificado de Gregório, o Grande, em 590, e termina com a Reforma na primeira metade do século XVI. Mas, antes de entrarmos na história geral, tentaremos responder a uma questão que tem sido perguntada e que, sem dúvida, está na mente de muitos: Quando, e por que meios, o poder caiu nas mãos do pontífice romano, o que levou a sua supremacia e despotismo durante a Idade Média? É uma pergunta interessante, mas respondê-la plenamente nos levaria além de nossos limites. Podemos apenas apontar alguns poucos fatos na cadeia de eventos que levou à fundação do grande poder e soberania da Sé de Roma.
Desde o tempo do famoso decreto de Milão em 313, a história da igreja mudou de caráter. Ela passou então de uma condição de angústia e perseguição para o auge de uma prosperidade e honra mundana: outras questões além daquelas do cristianismo foram doravante envolvidas em sua história. Tendo entrado em uma aliança com o Estado, seu futuro caminho foi necessariamente formado por suas novas relações. Ela não podia mais agir simplesmente no nome do Senhor Jesus, e de acordo com Sua santa Palavra. Mas nunca poderia haver uma completa amalgamação (mistura entre os dois lados). Um era do céu, e o outro era deste mundo. Eles são, por natureza, opostos um ao outro. Ou a igreja aspirava ser senhora do Estado, ou o Estado invadia o terreno da igreja e desconsiderava seus direitos inerentes. Foi exatamente isto o que aconteceu. Logo após a morte de Constantino, a luta entres esses dois grandes poderes, a igreja e o Estado, pelo governo do mundo, começou; e, de modo a assegurar o êxito nesta guerra, o pontífice romano recorreu a caminhos e meios que não caracterizaremos aqui, uma vez que nos depararemos com eles em breve.
Antes de Constantino transferir a sede do império a Bizâncio e construir Constantinopla, Roma era a metrópole reconhecida, e seu bispo o primaz. Mas quando Constantinopla tornou-se a cidade imperial, seu bispo foi promovido à categoria de patriarca, e logo começou a reivindicar a dignidade de pontífice romano. Este foi o início da igreja grega como uma comunhão separada, e da longa disputa entre o Oriente e o Ocidente. Havia então quatro patriarcas, de acordo com o plano do imperador: em Roma, Constantinopla, Antioquia e Alexandria. A categoria do bispo dependia da superioridade da cidade em que presidia, e como Constantinopla era então a capital do mundo, seus bispos não ficavam atrás de ninguém em honra e magnificência. Os outros ficaram invejosos, Roma queixou-se, a contenda começou, a brecha se alargou. Mas Roma nunca descansou até que tivesse ganhado a ascendência sobre seus rivais mais fracos e menos ambiciosos.
As Vantagens de Roma
A corte de Constantinopla, embora possa ter encorajado as esperanças e ambições dos bispos, afetava o governo da igreja com poder despótico, e decidia em controvérsias religiosas do tipo mais grave. Mas no Ocidente não era assim. O pontífice romano desse período demonstrou o espírito independente e agressivo do papado que se elevou a tais alturas em épocas posteriores. Os bispos do Oriente foram assim colocados em desvantagem em consequência de sua dependência da corte e de suas disputas com os imperadores. Além disso, a presença e grandeza do soberano oriental mantinha a dignidade do bispo em um lugar secundário. Em Roma não havia mais ninguém para disputar com a classe ou estilo do pontífice.
A retirada dos imperadores de Roma, como residência real, foi então favorável ao desenvolvimento do poder eclesiástico ali; pois, embora abandonada por seus governantes, era ainda venerada como a verdadeira capital do mundo. Deste modo, Roma possuía muitas vantagens como a sede do bispo supremo. Mas o fator principal que impulsionou e consolidou o poder da Sé romana foi a crescente crença, por toda a Cristandade, de que São Pedro foi seu fundador. Os bispos romanos negavam que sua precedência originava-se na grandeza imperial da cidade, mas sim em sua descendência linear de São Pedro. Este dogma foi geralmente recebido por volta do começo do século V.
Por tais argumentos a igreja de Roma estabeleceu seu direito de governar a universal igreja. Ela sustentava que Pedro era primaz entre os apóstolos, e que seu primado é herdado pelos bispos de Roma. Mas pode ser interessante observar aqui o duplo aspecto do romanismo — o eclesiástico e o político. Em ambos os aspectos ele reivindicava a supremacia. Eclesiasticamente ele sustentava: (1) que o bispo de Roma é o juiz infalível em todas as questões de doutrina; (2) que ele tem o direito inerente ao governo supremo em convocar concílios gerais e presidir sobre eles; (3) que o direito de fazer nomeações eclesiásticas pertencia a ele; (4) que a separação da comunhão da igreja de Roma envolve a culpa de cisma. Politicamente ela reivindicava, aspirava e ganhava preeminência e poder sobre toda a sociedade européia, assim como sobre todos os governos europeus. Veremos provas abundantes desses fatores em particular no decorrer de sua bem definida história, a qual daremos prosseguimento agora.
Não foi até depois do primeiro concílio de Niceia que a supremacia dos bispos romanos passou a ser, em geral, permitida. Os primeiros bispos de Roma mal são conhecidos na história eclesiástica. A ascensão de Inocente I no ano 402 deu força e definição a esse novo princípio da igreja latina. Até este tempo não havia qualquer reconhecimento legal da supremacia de Roma, embora ela fosse considerada a principal igreja do Ocidente, e fosse frequentemente procurada pelos outros grandes bispos por um julgamento espiritual em questões de disputa. Quando a igreja grega caiu no arianismo, a igreja latina aderiu firmemente ao credo niceno 2, o que a elevou muito na opinião de todo o Ocidente. “Na mente de Inocente”, diz Milman, “parece ter surgido, pela primeira vez, a vasta concepção da supremacia eclesiástica universal de Roma; ainda sombria e escura, mas completa e abrangente em seu esboço.”
Leão I, Apelidado de “O Grande”
Podemos prosseguir, sem interrupção, do nome de Inocente para o de Leão, que ascendeu à cadeira de São Pedro no ano 440, e a ocupou por 21 anos. Ele era notável por suas habilidades políticas, erudição teológica e grande energia eclesiástica. Ele sustentava, com a arrogância de romano e com o zelo de clérigo, que todas as pretensões e todas as práticas em sua igreja eram questões para a contínua sucessão apostólica. Contudo, parece que ele era firme na fé quanto à salvação, e zelosamente oposto a todos os hereges. As igrejas orientais tinham perdido o respeito da Cristandade pelas suas longas e vergonhosas controvérsias. Poder, e não sutilezas, era a ambição de Roma. Leão condenou toda a raça de hereges, desde Ário a Eutiques; mas mais especialmente a heresia maniqueísta.
Por seus grandes esforços e extraordinário gênio ele levantou as reivindicações do bispo romano como sendo o representante de São Pedro a uma altura nunca antes vista. “O apóstolo”, diz ele, “foi chamado Petra, a pedra, por cuja denominação ele é constituído o fundamento…Em sua cadeira habita a sempre viva, a super-abundante, autoridade. Que os irmãos, portanto, reconheçam que ele é o primaz de todos os bispos, e que Cristo, que não nega a ninguém seus dons, ainda assim não os concede a ninguém exceto por meio dele.”3
Tomando devida consideração pelo caráter dos tempos e pelas opiniões oficiais e inerentes, cremos que Leão era sincero em suas convicções, e provavelmente um cristão. De coração ele cuidava do povo de Deus, e mais de uma vez, por suas orações e sagacidade política, salvou Roma dos bárbaros. Quando Átila, o mais terrível dos conquistadores estrangeiros, com suas incontáveis hostes, pairava sobre a Itália, pronto para cair sobre a indefesa capital, Leão foi adiante o “Destruidor” no nome do Senhor, e como o chefe espiritual de Roma, e tão fervorosamente orou por seu povo que as paixões selvagens do huno se acalmaram e, para espanto de todos, ele concordou com os termos pelos quais a cidade foi salva do caos e abate. Mas o principal objetivo da vida de Leão, e a que ele cumpriu plenamente, foi estabelecer as bases da grande monarquia espiritual de Roma. Durante seu pontificado ele foi o nome mais conhecido no império, se não em toda a Cristandade. Ele morreu no ano 461.
O Imperador Justiniano
O nome de Justiniano é tão famoso na história, e tão conectado à legislação tanto civil quanto eclesiástica, que seria injusto para com nossos leitores passar por ele sem tomar uma nota, mesmo que ele não esteja imediatamente relacionado à igreja latina. Ele pertencia ao Oriente, e assim dificultava a ascensão do Ocidente.
No ano 527 Justiniano ascendeu ao trono de Constantinopla e o ocupou por quase quarenta anos. Ele delegou os assuntos políticos e militares do império a seus ministros e generais, e devotou seu tempo às coisas que ele pensava serem mais importantes. Ele gastou muito de seu tempo em estudos teológicos e na regulação dos assuntos religiosos de seus súditos, tais como prescrever o que os sacerdotes e o povo devia crer e praticar. Ele gostava de se misturar em controvérsias e de agir como legislador em assuntos religiosos. Sua própria fé — ou melhor, sua servil superstição — distinguia-se pela mais rígida ortodoxia, e uma grande porção de seu longo reinado foi gasto na extinção de heresias. Mas isto levou a muitos casos de perseguição, tanto públicas como privadas.
Nesse meio tempo Justiniano viu um novo campo se abrindo para suas energias em outra direção, e imediatamente voltou sua atenção a isto. Após a morte de Teodorico, o Grande, em 526, os assuntos da Itália caíram em uma condição muito confusa, e os novos conquistadores estavam longe de permanecerem firmemente assentados em seus tronos. Despertando a hostilidade dos romanos contra os bárbaros, o exército imperial tornou-se unido e determinado; e, conduzidos pelos capazes generais Belisário e Narses, as conquistas da Itália e África foram alcançadas em um espaço muito curto de tempo. Diante da visão das bem conhecidas águias, os soldados dos bárbaros se recusaram a lutar, e as nações lançaram fora a supremacia dos ostrogodos. Os generais imperiais buscaram então uma guerra de extermínio. Conta-se que durante o reinado de Justiniano a África perdeu cinco milhões de habitantes. O arianismo foi extinto naquela região, e na Itália supõe-se que o número dos que pereceram pela guerra, fome, ou por outros motivos, tenha excedido sua população atual 4. Os sofrimentos desses países, durante as revoluções desse período, foram maiores do que tinham suportado em qualquer outro, seja em tempos anteriores ou posteriores, de modo que tanto os eventos seculares do reinado de Justiniano quanto seus próprios esforços legislativos tiveram uma influência importante, porém muito infeliz, na história do cristianismo.
Após erigir a igreja5 de Santa Sofia, e outras vinte e cinco outras igrejas em Constantinopla, e após publicar um novo édito de seu código, ele morreu em 565 d.C.6
Passemos então ao terceiro grande fundador do edifício papal.
Gregório I, Apelidado de “o Grande” (590 d.C.)
Chegamos agora ao final do sexto século do cristianismo. Neste ponto encerra-se a história do período inicial da igreja, e começa a do período medieval. O pontificado de Gregório pode ser considerado como a linha que separa os dois períodos. Uma grande mudança acontece. As igrejas orientais declinam e recebem pouca atenção, enquanto as igrejas do Ocidente, especialmente a de Roma, atraem amplamente a atenção do historiador. E como Gregório pode ser considerado o homem representativo desse período transicional, nos esforçaremos para colocá-lo de forma justa perante o leitor.
Gregório nasceu em Roma por volta do ano 540, sua família sendo de classe senatorial, e ele próprio sendo o bisneto de um papa chamado Félix, de modo que, em sua descendência, ele herdou tanto a dignidade civil quanto a eclesiástica. Pela morte de seu pai ele se tornou possuidor de grande riqueza, que ele imediatamente dedicou a usos religiosos. Ele fundou e manteve sete monastérios: seis na Sicília, e a outra, que era dedicada a Santo André, na mansão de sua família em Roma. Ele liquidou em dinheiro suas roupas e joias caras e seus móveis e distribuiu aos pobres. Quando tinha cerca de 35 anos ele deixou de lado seus compromissos civis, assumiu sua residência no monastério romano e começou uma vida estritamente ascética. Embora fosse seu próprio convento, ele começou com os mais baixos deveres monásticos. Todo seu tempo era gasto em oração, lendo, escrevendo, e fazendo os mais abnegados exercícios. A fama de sua abstinência e caridade se espalhou por toda a parte. Com o decorrer do tempo ele se tornou abade de seu monastério; e, com a morte do papa Pelágio, ele foi escolhido pelo senado, clero e povo para preencher a cadeira vazia. Ele se recusou, e esforçou-se por vários meios a escapar das honras e dificuldades do papado. Mas ele foi forçadamente ordenado, pelo amor do povo, como bispo supremo.
Tirado da quietude de um claustro e de suas pacíficas meditações ali, Gregório via-se então envolvido no gerenciamento dos mais variados e desconcertantes assuntos tanto da igreja como do Estado. Mas ele estava evidentemente preparado para o grande e árduo trabalho que tinha diante de si. Vamos tomar nota, primeiramente, da fervente caridade de Gregório.
A Caridade Fervente de Gregório
O caráter de Gregório se distinguia pelo fervor de seus Atos de caridade. Embora elevado ao trono papal, ele viveu em um estilo simples e monástico. Seu palácio era cercado pelos pobres sofredores, como tinha sido seu monastério, e o alívio era distribuído com uma mão liberal. Não contente em apenas exercitar sua caridade sozinho, ele poderosamente exortava seus irmãos episcopais a abundarem na mesma. “Que o bispo não pense”, diz ele, “que apenas a leitura e pregação são suficientes, ou apenas estudiosamente manter-se em retiro, enquanto a mão que enriquece permanece fechada. Mas que sua mão seja generosa; que faça avanços em direção àqueles que estão em necessidade; que considere as necessidades dos outros como se fossem de si próprio; pois sem essas qualidades o nome do bispo é um título vão e vazio”.
A riqueza da Sé romana permitiu-lhe exercitar extensas caridades. Como administrador dos fundos papais, Gregório tem a reputação de ser justo, humano e muito laborioso. Mas seu biógrafos são tão volumosos em seus relatos sobre suas boas obras que chega a ser difícil tentar um breve esboço. No entanto, como podemos estimá-lo como um crente em Cristo, apesar da falsa posição em que estava e sua consequente cegueira quanto ao verdadeiro caráter da igreja, nos deleitamos em demorar um pouco mais em sua memória, e também traçar a linha prateada da graça de Deus apesar da ímpia mistura das coisas seculares e sagradas.
Na primeira segunda-feira de cada mês ele distribuía grandes quantidades de provisões a todas as classes. Os doentes e enfermos eram superintendidos por pessoas designadas para inspecionar todas as ruas. Antes de sentar-se à sua própria refeição, uma porção era separada e enviada aos famintos à sua porta. Os nomes, idades e moradias daqueles que recebiam o alívio papal encheram um grande volume. Tão severa era a caridade de Gregório que, certo dia, ao ouvir sobre a morte de um homem pobre pela fome, condenou-se a si mesmo a uma dura penitência pela culpa de negligência como administrador da divina graça. Mas sua ativa benevolência não se limitava à cidade de Roma; era algo quase mundial. Ele entrava em todas as questões que afetavam o bem-estar de todas as classes, e prescrevia minuciosas regulamentações para todas, para que os pobres não fossem expostos à opressão dos ricos, ou os fracos fossem oprimidos pelos fortes. Mas isto ficará mais evidente quando tomarmos nota da posição eclesiástica e temporal de Gregório.
A Posição Eclesiástica e Secular de Gregório
O cuidado pastoral da igreja era evidentemente o principal objetivo e deleite do coração de Gregório. Ele acreditava que esta era sua obra, e com prazer teria se dedicado inteiramente a isto; pois, de acordo com a credulidade supersticiosa da época, ele tinha a mais profunda convicção de que o cuidado e governo de toda a igreja pertencia a ele como sucessor de São Pedro; e também, que ele era obrigado a defender a dignidade especial da Sé de Roma. Mas ele foi compelido, a partir do perturbado estado da Itália, e pela segurança de seu povo — seu querido rebanho — a empreender muitos tipos de negócios incômodos, totalmente estranhos ao seu chamado espiritual. Os invasores lombardos7 eram, naquela época, o terror dos italianos. Os godos tinham sido, em grande medida, civilizados e romanizados. Mas esses novos invasores eram bárbaros sem remorso e impiedosos; embora, por mais estranho que seja dizê-lo, eles eram os autodeclarados campeões do arianismo. E o poder imperial, em vez de proteger seus súditos italianos, agiu apenas como um obstáculo para que eles se defendessem. Guerra, fome e pestilência tinham dizimado e despopulado tanto o país, que todos os corações falhavam, e todos se voltavam ao bispo como o único homem para a emergência desses tempos, de tão firme que era a opinião sobre sua integridade e capacidade entre os homens.
Assim vemos que o poder secular, em primeira instância, foi imposto ao Papa. Não parece que ele buscava essa posição — uma posição tão ansiosamente procurada por muitos de seus sucessores; mas vemos que ele entrou com relutância em deveres tão pouco de acordo com o grande objetivo de sua vida. Ele involuntariamente deixou para trás a vida quieta e contemplativa de monge, e entrou em assuntos do estado como um dever a Deus e a seu país. A direção dos interesses políticos de Roma recai sobretudo sobre Gregório. Ele foi guardião da cidade e o protetor da população da Itália contra os lombardas. Toda a história presta testemunho à sua grande capacidade, sua incessante atividade, e a multiplicidade de suas ocupações como o virtual soberano de Roma.
No entanto, por mais inconsciente que Gregório tenha sido quanto aos efeitos de sua grande reputação, ele contribuiu muito para a dominação eclesiástica e secular de Roma. A preeminência em seu caso, por mais triste que fosse para um cristão, era desinteressada e exercida de modo benéfico; mas não foi assim com seus sucessores. A infalibilidade do Papa, a tirania espiritual, a perseguição aos de diferentes opiniões, a idolatria, a doutrina do mérito das obras, o purgatório e as missas pelas almas dos mortos, coisas que se tornaram marcas registradas do papado, ainda não haviam se estabelecido totalmente em Roma; mas, podemos dizer, estavam todas à vista.
Não devemos, no entanto, prosseguir com esse assunto no momento; voltemos a um assunto mais interessante e mais agradável a nossas mentes.
O Zelo Missionário de Gregório
Apesar do abatimento da igreja e de todas as classes da sociedade através das invasões dos bárbaros, o bendito Senhor zelava pela disseminação do evangelho em outros países. E certamente foi pela Sua misericórdia que as hostes de invasores que se espalharam pelas províncias do império foram logo convertidos ao cristianismo. Eles podem ter tido muito pouco entendimento sobre sua nova religião, mas isto abrandou muito sua ferocidade e mitigou os sofrimentos dos conquistados. Gregório era muito zeloso em seus esforços de estender o conhecimento do evangelho e trazer as nações bárbaras à fé católica. Mas seu plano favorito, e o que tinha estado a muito tempo em seu coração, era a evangelização dos anglo-saxões.
A bela história do incidente que primeiramente dirigiu a mente de Gregório à conversão da Britânia é prazerosa demais para não merecer um espaço em nosso texto. Nos primeiros dias de sua vida monástica, pelo menos antes de sua elevação ao papado, certo dia chamou-lhe a atenção alguns meninos bonitos de cabelos claros expostos à venda no mercado. Conta-se que ocorreu a seguinte conversa neste lugar. Ele perguntou de que país eles vinham. “Da ilha da Britânia”, foi a resposta. “Os habitantes dessa ilha são cristãos ou pagãos?” “Eles ainda são pagãos”. “Que infelicidade”, disse ele, “que o príncipe das trevas possua gente de tamanha graça! Que tal beleza de rosto possa desejar aquela melhor beleza da alma”. Ele então perguntou por qual nome eram chamados. “Anglos”, foi a resposta. Brincando com as palavras, ele disse: “Verdadeiramente eles são Anjos! De que província?” “Da província de Deira, na Nortúmbria”. “Certamente eles devem ser resgatados ’de ira’ — da ira de Deus, e chamados à misericórdia de Cristo. Qual o nome do rei deles?” “Ella”, foi a resposta. “Sim”, disse Gregório, “Aleluias devem ser cantadas nos domínios desse rei.”
“Ser o primeiro missionário desse belo povo”, diz Milman, “e conquistar a ilha remota e bárbara, como um César cristão, para o reino de Cristo, tornou-se a santa ambição de Gregório. Ele conseguiu com muito esforço o consentimento do Papa, e tinha já partido e viajado por três dias, quando foi abordado por mensageiros enviados para chamá-lo de volta. Toda a Roma tinha se levantado em piedoso motim e compeliu o Papa a revogar sua permissão”8. Mas embora ele tenha sido assim prevenido de executar sua missão em pessoa, ele nunca perdeu de vista seu nobre objetivo. A partir desse momento ele não foi mais permitido a retornar ao seu monastério. Ele foi forçado a embarcar em assuntos públicos, primeiro como um diácono, e mais tarde como supremo pontífice. Mas tudo isso era uma dignidade compulsória para Gregório. Seu coração estava voltado para a salvação dos jovens de cabelo claro da Inglaterra e preferiria mil vezes ter embarcado em viagem à nossa ilha 9, com todas as suas dificuldades e perigos desconhecidos, do que ser coroado com as honras do papado. Mas tal era o caráter de sua mente, que ele perseguia com incansável atenção e devoção qualquer plano de piedade que tivesse planejado anteriormente. Daí aconteceu que, após ter sido elevado à cadeira papal, foi-lhe permitido promover e enviar um grupo de quarenta missionários para as margens da Britânia. Mas antes de falarmos sobre o caráter e resultados dessa missão, será interessante olhar brevemente para a história da igreja nas Ilhas Britânicas desde o início.
A Primeira Colocação dos Alicerces da Cruz na Britânia
À muito tempo, nos primeiros dias da simplicidade apostólica, a cruz de Cristo, cremos, foi plantada nessa ilha. Há evidência histórica para acreditar que “Cláudia”, mencionada por Paulo em sua Segunda Epístola a Timóteo, foi a filha de um rei britânico, que se casou com um distinto romano chamado “Prudente”. Esta circunstância não parecerá improvável se tivermos em mente que, durante todo o período do domínio romano nesse país, devem ter havido muitas oportunidades para a disseminação do cristianismo, as quais seriam prontamente abraçados por aqueles que amavam o Senhor Jesus e as almas dos homens. Além disso, era o costume da época para os reis e nobres britânicos enviar seus filhos para Roma para educação; e esta prática, conta-se, prevaleceu a tal ponto que uma mansão foi estabelecida expressamente para eles, e um imposto de um centavo era cobrado de cada casa na Inglaterra para apoiá-la.10
Outra testemunha para o precoce estabelecimento do cristianismo nesse país é o testemunho dos “Pais”. Justino Mártir, Irineu e Tertuliano, que escreveram no século II, afirmam que, em cada país conhecido aos romanos havia pessoas que professavam o cristianismo — desde aqueles que andavam em carroças até os que não tinham nem um lar para viver, não havia raça de homens dentre os quais não houvessem orações oferecidas no nome de um Jesus crucificado. Temos também o testemunho dos últimos “Pais”. A corrente histórica parece ser carregada pela menção de bispos britânicos tendo participado de vários dos concílios gerais no século IV; e sua ortodoxia no decorrer da controvérsia ariana foi atestava pelo peso das evidências de Atanásio e Hilário. É também digno de nota que Constantino — que tinha passado algum tempo com seu pai na Britânia — ao escrever às igrejas do império sobre a disputa concernente à Páscoa, citou a igreja britânica como um exemplo de ortodoxia. A heresia pelagiana, conta-se, foi introduzida na Britânia por alguém chamado Agrícola no ano 429, onde encontrou muita aceitação; mas em uma conferência em Saint Albans os mestres hereges foram derrotados pelo clero ortodoxo.11
A Antiga Igreja Britânica
Embora a igreja britânica tivesse adquirido tal crédito pela ortodoxia, temos muito pouca informação confiável quanto à sua ascensão e progresso, ou quanto aos meios pelos quais isto foi efetuado. Há muitas tradições, mas elas mal são dignas de serem repetidas, e são impróprias para uma breve história. Há ampla evidência, no entanto, de que na primeira parte do século IV, e pelo menos por duzentos anos antes da chegada dos monges italianos, a igreja britânica tinha uma organização completa, com seus próprios bispos e metropolitas.
De acordo com o testemunho tanto dos historiadores antigos quanto dos modernos, as doutrinas e rituais da igreja antiga da Britânia eram de caráter muito simples se comparadas com a grega e romana, embora ainda muito longe da simplicidade do Novo Tetamento. Eles ensinavam a unicidade da Divindade, a Trindade, a natureza divina e humana de Cristo, a redenção por Sua morte, e a eternidade de recompensas e punições futuras. Eles consideravam a ceia do Senhor como um símbolo, e não um milagre; eles tomavam o pão e o vinho como nosso Senhor comandou que fossem tomados — em memória dEle — e eles não recusavam o vinho aos leigos. Sua hierarquia consistia de bispos e sacerdotes, com outros ministros, e uma cerimônia especial era feita para a ordenação. O casamento era comum entre o clero. Havia também monastérios com monges vivendo neles, jurados à pobreza, castidade e obediência a seu abade. As “igrejas”12 eram construídas em honra aos mártires, e cada “igreja” tinha muitos altares; as cerimônias eram realizadas na língua latina, em tom monocórdico pelos sacerdotes. Disputas eram finalmente resolvidas por sínodos provinciais, que ocorriam duas vezes ao ano; acima disso, em questão de disciplina, não havia apelação. Assim vemos que as doutrinas da igreja antiga da Britânia era caracterizada por uma verdadeira simplicidade apostólica, e como instituição ela era livre e sem restrições.13
É motivo de sincera gratidão14 que a história inicial da igreja na Inglaterra tenha deixado um nome tão íntegro comparado às superstições e corrupções do Oriente e do Ocidente. Mas, infelizmente, sua existência como um estabelecimento separado não durou muito. Ela mal pôde sobreviver à metade do século VII. Suas calamidades foram provocadas por três passos consecutivos, todos estes fora de sua própria jurisdição — a retirada das tropas romanas da Britânia; a Conquista Saxônica; e a Missão Agostiniana. Vamos agora olhar brevemente para cada um desses passos e seus efeitos.
Vimos algo sobre o declínio e aproximação da queda do Império Romano. Em consequência das pesadas calamidades que caíram sobre a cidade e as províncias de Roma, as tropas foram gradualmente retiradas da ilha britânica para que protegessem o centro do domínio. E os romanos, vendo que não podiam mais dispensar as forças necessárias para um estabelecimento militar na Britânia, partiram finalmente da ilha por volta da metade do século V, cerca de 475 anos após Júlio César ter desembarcado, pela primeira vez, em suas margens. O governo então caiu nas mãos de um número de príncipes insignificantes que, é claro, brigaram entre si. Guerras civis, fraqueza nacional e desmoralização logo se seguiram, com seus habituais juízos.
A retirada das tropas romanas necessariamente expôs o país a invasores, especialmente os pictos e escotos. Os chefes britânicos, incapazes de resistir a esses audaciosos ladrões e saqueadores, apelaram, em sua angústia, a Roma. “Os bárbaros”, eles diziam, “atravessaram nossas muralhas como lobos em um rebanho de ovelhas, vão embora com seus espólios e retornam todos os anos.” Mas por mais que os romanos pudessem ter pena de seus velhos amigos, eles agora não podiam ajudá-los. Decepcionados com a ajuda de Roma, e desesperado por sua incapacidade de defenderem-se contra as desoladoras tribos do Norte, os britânicos se voltaram aos saxões por ajuda.15
A Chegada dos Saxões à Inglaterra
Por volta da metade do século V os navios saxões chegaram à costa britânica e, sob seus líderes, Hengist e Horsa, desembarcaram algumas centenas de guerreiros ferozes e desesperados. Estes famosos líderes imediatamente tomaram o campo a frente de seus seguidores e derrotaram completamente os pictos e escotos. Mas o remédio se provou pior do que a doença. Um grande mal foi afastado, mas um outro pior apareceu. Os saxões, vendo que o país que eles tinham sido contratados a defender possuía um clima mais agradável que o próprio país deles, e ansiosos por trocar as sombrias margens do Norte pelos campos ricos da Britânia, convidaram novas levas de seus compatriotas para unirem-se a eles; e assim, de defensores eles se tornaram conquistadores e mestres dos malfadados britânicos. Os anglos e outras tribos se espalharam pelo país; e embora os britânicos não tivessem cedido sem uma luta severa, o poder saxão prevaleceu e reduziu os nativos à completa submissão, ou levou-os a procurar abrigo nas montanhas do País de Gales, na Cornualha e em Cumberland. Muitos emigraram, e alguns se estabeleceram em Armórica, agora Bretanha, no noroeste da França.
Mas os saxões e anglos não eram apenas guerreiros selvagens, eles eram também pagãos selvagens e impiedosos. Eles exterminavam o cristianismo onde quer que conquistavam. De acordo com o “venerável Bede”, os bispos e seu povo foram indiscriminadamente abatidos com fogo e espada, e não havia ninguém para enterrar as vítimas de tal crueldade. Edifícios públicos e privados foram, do mesmo modo, destruídos, sacerdotes foram assassinados por toda a parte no altar; alguns que tinham fugido para as montanhas foram apreendidos e mortos aos montes, outros, cansados e com fome, renderam-se, abraçando a escravidão perpétua em troca da vida; alguns fugiram a regiões além do mar, e alguns levaram uma vida de pobreza entre as montanhas, florestas e rochedos.
A Britânia, após esse evento, recaída a um estado de obscuro barbarismo, foi retirada da visão do mundo civilizado e afundou-se às profundezas da miséria e crueldade; e ainda assim esse é o mesmo povo que o Senhor pôs no coração de Gregório para ganhá-lo para Si pelo evangelho da paz. Como podiam alguns pobres monges, sem frota ou exército, como podemos bem exclamar, se aventurar em tais margens, e menos ainda ganhar os corações e subjugar a vida de tais selvagens à fé e prática do evangelho da paz? É o mesmo evangelho que triunfou sobre o judaísmo, o orientalismo, o paganismo, e pelo mesmo poder divino, em breve triunfaria sobre o feroz barbarismo dos anglo-saxões. Quão fraca e tola é a infidelidade que questiona sua origem divina, poder e destino! Observaremos agora o progresso da missão.
A Missão de Agostinho na Inglaterra
No ano 596, e cerca de 150 anos após a chegada dos saxões na Britânia, a famosa missão de Gregório saiu da Itália rumo a essa ilha. Uma companhia de quarenta monges missionários, sob a direção de Agostinho, foram enviados para pregar o evangelho aos ignorantes anglo-saxões. Mas ao ouvir sobre o caráter e hábitos selvagens do povo, e sendo ignorantes de sua língua, eles ficaram seriamente desencorajados e tiveram medo de prosseguir. Agostinho foi enviado de volta pelos outros para suplicar a Gregório que os dispensassem do serviço. Mas ele não era um homem que abandonava uma missão daquele tipo. Ele não a planejou com pressa, mas foi o resultado de muita oração e deliberação. Ele, portanto, os exortou e encorajou a seguir em frente, confiando no Deus vivo e na esperança de ver o fruto de seus labores na eternidade. Ele entregou-lhes cartas de apresentação para bispos e príncipes, e lhes garantiu toda assistência em seu poder. Assim animados eles prosseguiram a sua viagem e, viajando pelo caminho da França, chegaram na Britânia.
Os 41 missionários, tendo desembarcado na Ilha de Thanet, anunciaram a Etelberto, rei de Kent, sua chegada de Roma e sua missão com novas de grande alegria para ele e para seu povo. As circunstâncias favoreceram muito essa marcante missão. Bertha, a rainha (filha de Clotário I, rei dos francos), era cristã. Seu pai estipulou em seu acordo matrimonial que devia ser permitido a ela a livre profissão do cristianismo, na qual tinha sido educada. Um bispo participava de sua corte, e vários de sua casa eram cristãos, e as cerimônias eram conduzidas de acordo com a forma romana. O Senhor, neste caso, usou uma mulher, como Ele fez muitas vezes, para a propagação do evangelho entre os pagãos. Estas contrastam favoravelmente com a classe de “mulheres Jezabel”, e preservam a linha prateada da graça de Deus nessas tempos de trevas. Bertha era da casa de Clóvis e Clotilda.
Etelberto, influenciado por sua rainha, recebeu bondosamente os missionários. Foi permitido a Agostinho e seu séquito que prosseguissem para a Cantuária, a residência do rei. Este consentiu com uma entrevista, mas ao ar livre por medo de magia. Os monges se aproximaram da festa real de maneira muito imponente. Um deles, carregando uma grande cruz prateada com a figura do Salvador, conduziu a procissão, a qual seguiram-se os demais, cantando seus hinos em Latim. Ao chegarem ao carvalho escolhido como o local da conferência, foi dada permissão para que pregassem o evangelho ao príncipe e seus assistentes. O rei foi então informado que eles tinham vindo com boas novas, e até mesmo vida eterna para aqueles que os recebessem, e o prazer da bem-aventurança no céu para sempre. O rei ficou favoravelmente impressionado, e lhes deu uma mansão na cidade real de Cantuária, e liberdade para pregarem o evangelho a sua corte e ao povo. Eles então marcharam para a cidade, cantando em uníssono a ladainha: “Te suplicamos, ó Senhor, em toda a Tua misericórdia, que Tua ira e Tua fúria sejam removidas desta cidade, e de Tua santa casa, porque nós temos pecado. Aleluia”.
Por esses passos preparatórios o caminho dos missionários tornou-se simples e fácil. A aprovação do monarca inspirou seus súditos com confiança, e abriu seus corações aos mestres. Novos convertidos se multiplicaram rapidamente. No Natal do ano 597 conta-se que não menos que 10.000 pagãos foram reunidos ao rol da igreja católica pelo batismo. Etelberto também se submeteu ao batismo e ao cristianismo na forma romana, tornando-se a religião estabelecida de seu reino. Esta foi a primeira base de Roma na Inglaterra. Ela estava agora determinada em subjugar a igreja britânica ao papado, e estabelecer sua autoridade na Grã-Bretanha, como tinha feito na França. Ela começou a trabalhar da seguinte maneira…(continua no próximo capítulo)
A Hierarquia Católica Romana Formada na Inglaterra
Gregório, ao ouvir sobre o grande sucesso de Agostinho, enviou-lhe mais missionários, que carregaram com eles um número de livros, incluindo os Evangelhos, utensílios cerimoniais, vestimentas, relíquias, e o pálio que deveria investir Agostinho como Arcebispo da Cantuária. Ele também orientou-lhe que consagrasse doze bispos em sua província; e, caso achasse vantajoso para a propagação da fé, que estabelecesse outro metropolita em York, que deveria então ter autoridade de nominar outros doze bispos para os distritos nortenhos da ilha. Tais foram os rudimentos da igreja inglesa; e tal era a exagerada impaciência de Gregório pela supremacia eclesiástica, que ele estabelecia um plano de governo para locais antes de terem sido visitados pelos evangelistas.
“Na visão eclesiástica do caso”, diz Greenwood, “a igreja anglo-saxônica era a filha genuína de Roma. Mas, além dos limites desse estabelecimento, nenhum direito de parentesco pode ser atribuído a ela dentro das ilhas britânicas. Uma numerosa população cristã ainda existia nos distritos nortenhos e ocidentais, cujas tradições não davam apoio à alegação romana de maternidade. O ritual e disciplina das igrejas britânicas, galesas e irlandesas diferiam em muitos pontos daquelas de Roma e dos latinos em geral. Eles celebravam a festa da Páscoa em conformidade com a prática das igrejas orientais, e na forma de tonsura16, assim como no rito batismal, ele seguiam o mesmo modelo: diferenças que, por si só, parecem suficientes para excluir toda a probabilidade de um pedigree puramente latino”.17
Agostinho, então à frente da hierarquia composta de doze bispos, imediatamente fez a ousada tentativa de trazer a antiga igreja britânica sob a jurisdição romana. Através da influência de Etelberto ele obteve uma conferência com alguns dos bispos britânicos em um lugar que, naquela época, foi chamado de “carvalho de Agostinho”, em Severn. Ali o clero romano e o britânico se encontraram pela primeira vez; e a primeira e imperiosa exigência de Agostinho foi: “Reconheçam a autoridade do bispo de Roma”. “Desejamos amar todos os homens”, eles humildemente responderam, “e qualquer coisa que fizermos por vocês, faremos também a este a quem chamam de Papa”. Surpresos e indignados com sua recusa, Agostinho os exortou a adotarem os costumes romanos quanto à celebração da Páscoa, à tonsura e à administração do batismo, para que uma uniformidade de disciplina e adoração pudesse ser estabelecida na ilha. A isto eles positivamente se recusaram. Tendo recebido o cristianismo, primeiramente, não de Roma, mas do Oriente, e nunca tendo reconhecido a igreja romana como sua mãe, eles viam-se como independentes da Sé de Roma. Um segundo e um terceiro concílio foi realizado, mas sem melhores resultados. A Agostinho foi claramente dito que a igreja britânica não reconheceria homem algum como supremo na vinha do Senhor. O arcebispo exigiu, argumentou, censurou, realizou milagres; mas tudo sem efeito — os britânicos eram firmes. Por fim, lhe disseram que eles não podiam se submeter nem à soberba dos romanos, nem à tirania dos saxões. Despertado à irada indignação pela quieta firmeza deles, o zangado sacerdote exclamou: “Se vocês não receberem os irmãos que lhes trazem paz, vocês receberão inimigos que lhes trarão guerra. Se vocês não se unirem conosco para mostrar aos saxões o caminho da vida, vocês receberão deles o golpe da morte”. O arrogante arcebispo retirou-se, e supõe-se que tenha morrido pouco tempo depois, em 605 d.C., mas sua profecia de mal agouro cumpriu-se logo após sua morte.
Edelfrido, um dos reis anglo-saxões, ainda um pagão, juntou um numeroso exército e avançou em direção a Bangor, o centro do cristianismo britânico. Os monges fugiram em grande alarme. Cerca de 1250 deles se refugiaram em um local afastado, onde concordaram em continuar juntos em oração e jejum. Edelfrido se aproximou e, ao ver um número de homens desarmados, perguntou quem eram. Ao dizerem-lhe que eram os monges de Bangor que tinham vindo a orar pelo sucesso de seus conterrâneos: “Então”, ele clamou, “embora não tenham armas, estão lutando contra nós”; e ordenou a seus soldados que caíssem sobre os monges em oração. Cerca de 1200, conta-se, foram mortos, e apenas cinquenta escaparam em fuga. Assim o domínio de Roma começou na Inglaterra, o que continuou por quase mil anos.
Se Agostinho tinha realmente algo a ver com o assassinato dos monges, parece difícil dizer. Aqueles que tomam uma forte visão protestante do caso afirmam claramente que seus últimos dias foram ocupados em fazer arranjos para o cumprimento de sua própria ameaça. Outros, que tomam uma visão oposta, negam que haja qualquer evidência de que ele influenciou os pagãos para a terrível tragédia. Mas, seja como for, uma suspeita tenebrosa deve sempre pairar sobre a política de Roma. As próprias palavras vingativas de Agostinho, e toda sua história, confirmam a suspeita. Tal era a natureza da intolerante Jezabel — quando o argumento falhava, ela apelava para a espada. A partir de então o romanismo caracterizou-se pela arrogância e sangue. A antiga igreja da Britânia, que era limitada aos distritos montanhosos do País de Gales, gradualmente diminuiu e desapareceu.18
Reflexões sobre a Missão de Agostinho e o Caráter de Gregório
Agostinho [de Cantuária] é mencionado por alguns historiadores como um cristão devoto, e seu empreendimento missionário como um dos maiores nos anais da igreja. Mas, sem querer diminuir um degrau sequer da grandeza do homem ou de sua missão, não podemos nos esquecer que as Escrituras são o único padrão verdadeiro de caráter e obras. Ali aprendemos que o fruto do Espírito é “amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança” (Gálatas 5:22). E, certamente, o grande clérigo não manifestou para com seus irmãos, os cristãos britânicos, a graça do amor, a paz, ou a conciliação; pelo contrário, ele era orgulhoso, imperioso, soberbo e vanglorioso.
Esses sérios defeitos em seu caráter não eram desconhecidos a Gregório, como ele diz, em uma carta endereçada a ele: “Eu sei que Deus tem realizado, através de você, grandes milagres entre o povo, mas lembremo-nos de que, quando os discípulos disseram com alegria ao divino Mestre: ’Senhor, pelo teu nome, até os demônios se nos sujeitam’, Ele lhes respondeu: ’Alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus’19. Enquanto Deus assim emprega sua agência, lembre-se, meu querido irmão, de julgar a si mesmo secretamente por dentro, e conhecer bem o que você é. Se você ofendeu a Deus em palavras ou ações, preserve essas ofensas em seus pensamentos para reprimir a vanglória de seu coração, e considere que o dom de milagres não lhe é concedido por si mesmo, mas para aqueles cuja salvação você está trabalhando para conseguir”. Em outra carta ele o alertou contra a “vaidade e pompa pessoal”, e lembrou-lhe “que o pálio de sua dignidade devia ser usado no serviço da igreja, e não para ser colocado em competição com o púrpura real nas ocasiões estatais”.
Agostinho era totalmente inadequado para uma missão que requeria paciência e uma terna consideração pelos outros. A igreja britânica tinha existido por séculos, seus bispos tinham tomado parte em grandes concílios eclesiásticos e assinado seus decretos. Os nomes de Londres, York e Lincoln são encontrados nos registros do Concílio de Arles (314 d.C.), de modo que devemos, no mínimo, respeitar nos britânicos o desejo deles de aderirem à liturgia transmitida pelos seus ancestrais, e de resistir à suposição estrangeira da supremacia espiritual de Roma. Agostinho falhou completamente em se aproveitar das lições de humildade que tinha recebido de seu grande mestre, e assim tem menos motivo de reivindicação sobre nossa estima e admiração.
O grande clérigo Gregório, assim como seu grande missionário, não sobreviveu muito tempo após a conquista espiritual da Inglaterra. Desgastado por seus grandes labores e enfermidades, ele morreu no ano 604, assegurando a seus amigos que a expectativa da morte era seu único consolo, e pedindo-lhes que orassem por sua libertação dos sofrimentos corporais.
A conduta de Gregório durante os treze anos e seis meses em que foi bispo de Roma demonstra um zelo e uma sinceridade dificilmente igualada na história da igreja romana. Ele era laborioso e abnegado no que ele acreditava ser o serviço de Deus, e em seu dever para com a igreja e para com toda a humanidade. A coleção de suas cartas, quase 850 em seu número, carrega um amplo testemunho de sua capacidade e atividade em todos os assuntos dos homens, e em todas as esferas da vida. “De tratar com reis patriarcas ou imperadores sobre as mais elevadas preocupações da Igreja e do Estado, ele passava a dirigir o gerenciamento de uma fazenda, ou ao alívio de algum aflito peticionário em alguma dependência distante de sua Sé. Ele aparece como um papa, como um soberano, como um bispo, como senhorio. Ele toma medidas para a defesa de seu país, para a conversão dos pagãos, para a repreensão e reconciliação dos cismáticos”, etc.20
Mas, não obstante as variadas excelências de Gregório, ele era profundamente infectado com os princípios e o espírito da época em que vivia. O espírito de Jezabel estava evidentemente trabalhando ainda em sua juventude. Em vão procuramos por qualquer coisa parecida com a simplicidade cristã na igreja de Deus dessa época. Não podemos duvidar da piedade do próprio Gregório; mas, como um eclesiástico, o que ele era? Envenenado até o fundo do coração pela grosseira ilusão das reivindicações universais da cadeira de São Pedro, ele não podia arriscar nenhum rival, como vemos em sua oposição determinada e amarga às pretensões de João, bispo de Constantinopla; e, o que era ainda mais tenebroso, vemos o mesmo espírito em sua exultação ao saber sobre o assassinato do imperador Maurício e sua família pelo cruel e traiçoeiro Flávio Focas, simplesmente porque Gregório presumiu que Maurício fosse culpado do que ele considerou heresia. Ao que parece, Maurício apoiou o que Gregório julgou ser usurpação da parte de João, ao assumir o título de bispo universal. Mas mesmo sancionar tal afirmação não era qualquer pequeno crime na mente do pontífice romano. E assim foi com Gregório. Quando a notícia da sangrenta tragédia chegou a seus ouvidos, ele se alegrou; pareceu a ele ser uma luz de dispensação providencial para a libertação da igreja de seus inimigos. As própria fontes de caridade parecem ter secado nos corações de todos os que já se sentaram em um trono papal, quando se tratava de rivais eclesiásticos. A justiça, a franqueza, a humanidade, e todo sentimento correto do cristianismo acabam cedendo às dominantes reivindicações da falsa igreja. Até mesmo Gregório se curvou e foi terrivelmente corrompido pela “mulher Jezabel” (Apocalipse 2:20).
A Superstição e a Idolatria de Gregório
Ambição misturada com humildade e superstição misturada com fé caracterizavam o grande pontífice. Esta estranha mistura e confusão era, sem dúvida, o resultado de sua falsa posição. É difícil entender como um homem de tão bom senso pôde se tornar tão degradado pela superstição a ponto de acreditar na operação de milagres por meio de relíquias, e recorrer a tais coisas para a confirmação da verdade das Escrituras. Mas a triste verdade é que, em vez de devotar-se aos interesses de Cristo, ele foi cegado pelo grande e absorvente objetivo: os interesses da igreja de Roma. Paulo podia dizer: “Uma coisa faço”; e também “Uma coisa sei”. Primeiro, devemos saber que somos perdoados e aceitos; então, fazer as coisas que agradam a Cristo é o elevado e celestial chamado do cristão. “Para conhecê-lo, e à virtude da sua ressurreição, e à comunicação de suas aflições, sendo feito conforme à sua morte…Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Filipenses 3:10–14). Tal era, e deveria sempre ter sido, o espírito e o anelo do cristianismo. Mas o que encontramos ao final do sexto século? Qual era a “uma coisa” que Gregório tinham em vista? Claramente não eram as reivindicações de um Cristo celestial, e conformidade com Ele em Sua ressurreição, sofrimentos e morte. Podemos seguramente afirmar que o grande objetivo de sua vida pública foi estabelecer além de qualquer disputa o bispado universal de Roma. E para este fim, em vez de levar almas a deliciarem-se nos caminhos de Cristo, assim como nEle Próprio, o que Paulo sempre fez, ele buscava fazer avançar suas reivindicações da Sé Romana pela idolatria e corrupção. Nem mesmo o espírito de perseguição estava totalmente ausente.
O monasticismo, sob o patrocínio de Gregório, especialmente de acordo com as regras mais estritas de Benedito, foi grandemente revivido e amplamente estendido. A doutrina do purgatório, respeito por relíquias, a adoração de imagens, a idolatria dos santos e dos mártires, o mérito das peregrinações a lugares santos, foram todos ensinados ou sancionados por Gregório, como coisas conectadas ao seu sistema eclesiástico. E temos de reconhecer que tudo isso são características inegáveis da atividade de Balaão e da corrupção de Jezabel.
Mas agora passemos ao século VII. A Idade das Trevas está próxima, e tenebrosa de fato ela é. O papado começa a assumir uma forma definida. E, como chegamos em nossa história ao final de uma era do cristianismo e ao começo de outra, podemos fazer uma pausa proveitosa por um momento para fazer um levantamento geral do progresso do evangelho em diferentes países.
N. do T.: aqui no sentido de seu testemunho na terra↩
N. do T.: a doutrina da Santíssima Trindade defendida no concílio de Niceia, em oposição à doutrina do arianismo↩
Cathedra Petri, de Greenword, vol. 1, p. 348.↩
N. do T.: Este livro foi escrito no Século XIX↩
N. do T.: Aqui provavelmente no sentido de construção religiosa, ou templo, e não no sentido bíblico de “igreja”.↩
Milman, vol. 1, p. 350; J. C. Robertson, vol. 1, p. 473; Milner, vol. 2, p. 336.↩
Os lombardos foram uma tribo germânica de Brandenburg. De acordo com a crença popular, eles tinham sido convidados à Itália por Justiniano para lutar contra os godos. O chefe deles, Alboin, estabeleceu um reino que durou de 568 a 774. O último rei, Desidério, foi destronado por Carlos Magno. Como os encontraremos novamente em conexão com nossa história, apenas tomamos esta breve nota sobre sua origem. — Dicionário de Datas, de Haydn.↩
Cristianismo Latino, vol. 1, p. 434↩
N. do T.: o autor do livro vivia na Inglaterra↩
Para detalhes, veja Vida de Paulo, de Conybeare e Howson; e Monasticismo Inglês, de Travers Hill.↩
J. C. Robertson, vol. 1, p. 450.↩
Aqui no sentido de construção, ou templo cristão↩
Ver Monasticismo Inglês, por Travers Hill, p. 141, as obras de Gildas; A História Eclesiástica da Nação Inglesa, por Bede; A História Eclesiástica da Grã-Bretanha, por Jeremy Collier, vol. 1.↩
O autor vivia na Inglaterra.↩
Enciclopédia Britânica, vol. 5, p. 301.↩
N. do T.: Corte circular, rente, do cabelo, na parte mais alta e posterior da cabeça, que se faz nos clérigos; cercilho, coroa. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.↩
Cathedra Petri, livro 3, p. 215.↩
Gardner, vol. 1, p. 391.↩
Lucas 10:17–20.↩
J.C. Robertson, vol. 2, p. 4.↩
Europa (372 d.C.—814 d.C.)
A Disseminação do Cristianismo na Europa
O sistema eclesiástico que os monges italianos introduziram na Inglaterra rapidamente se disseminou, e finalmente triunfou. Em cerca de 100 anos após a chegada de Agostinho [de Cantuária], esse sistema era professado e crido por toda a Britânia anglo-saxônica. A igreja inglesa, assim fundada sobre o modelo romano, não podia falhar em manter uma posição especialmente dependente de Roma. Esta união em um período inicial foi promovida e fortalecida pelos monges, freiras, bispos, nobres e príncipes ingleses, que faziam frequentes peregrinações ao túmulo de São Pedro em Roma. O clero britânico, embora ainda aderente aos antigos modos, e dispostos a resistir à presunção estrangeira, foram obrigados a isolarem-se nas extremidades do país. O romanismo agora prevalecia sobre toda a Inglaterra.
A Escócia e a Irlanda parecem ter sido abençoadas com o cristianismo por volta da mesma época que a Britânia. Por meio de soldados, marinheiros, missionários e cristãos perseguidos vindos do sul, o evangelho foi pregado e muitos creram. No entanto, o início da história religiosa desses países é coberto de lendas, portanto vamos nos referir apenas aos nomes e eventos que possuem boa autenticidade.
Os Primeiros Pregadores do Cristianismo na Irlanda
Supõe-se que Patrício (ou Patrick), o apóstolo da Irlanda, nasceu por volta do ano 372 nas margens do rio Clyde. Conta-se que Kilpatrick1 tenha adotado seu nome por causa dele. Seus pais eram cristãos sinceros; seu pai era um diácono, e seu avô era um presbítero. Sua mãe, que buscava instilar em seu coração as doutrinas do cristianismo, era irmã do celebrado Martinho, arcebispo de Tours. Mas o jovem Succath, seu nome original, não era seriamente inclinado para a religião. Algum tempo depois, seus pais deixaram a Escócia e se estabeleceram na Britânia. Aos dezesseis anos, quando Succath e suas duas irmãs estavam brincando à beira do mar, alguns piratas irlandeses, comandados por O’Neal, levaram os três para seus barcos e os venderam como escravos na Irlanda. Por seis anos ele foi empregado em cuidar do gado.
Durante o período de sua escravidão ele suportou muitas e grandes dificuldades. Mas a consciência de seu pecado veio à tona. Ele ficou sério e pensativo. Quando tinha mais ou menos quinze anos ele havia cometido algum grande pecado que então pressionava pesadamente sobre sua consciência, noite e dia. Ele orava com frequência e chorava muito; de fato, tal era o fervor dentro de sua alma que ele ficou insensível ao frio, à chuva e a outas inconveniências às quais ele era exposto. Ele então pensava em seu lar, nas ternas palavras e sinceras orações de sua mãe; e Deus graciosamente usou a lembrança do evangelho que ela lhe ensinava para abençoar sua alma. Ele nasceu de novo. “Eu tinha dezesseis anos”, ele diz, “e não conhecia o Deus verdadeiro; mas naquela ilha estranha o Senhor abriu meus olhos incrédulos e, embora tardiamente, ponderei sobre meus pecados e fui convertido com todo o meu coração ao Senhor meu Deus, que se importou comigo em meu triste estado, teve piedade de minha juventude e ignorância, e que me consolou como um pai consola seus filhos. O amor de Deus aumentou cada vez mais em mim, com fé e temor do Seu nome. O Espírito me incentivou em tal nível que eu me derramava em orações umas cem vezes por dia. E, durante a noite, nas florestas e nas montanhas, quando cuidava do meu rebanho, a chuva, a neve, as geadas e os sofrimentos que eu suportei me impeliam a buscar a Deus. Naquela época eu não sentia a indiferença que agora sinto; o Espírito fermentava o meu coração”.2
Se podemos confiar que essas palavras saíram dos lábios de Succath, elas apresentam um testemunho muito mais puro da verdade do evangelho do que o que encontramos na igreja de Roma. Elas apresentam uma alma exercitada em relacionamento estreito com o Próprio Deus. As formas e o sacerdócio do romanismo destroem esta comunhão bela, pessoal e direta com Deus e com Seu Cristo através da graça e poder do Espírito Santo. Mas tal, sem dúvida, era o cristianismo dessas Ilhas Britânicas antes de ser corrompida pelos emissários papais.
No decorrer do tempo Succath ganhou sua liberdade e, após viajar e pregar muito, ele retornou a sua família. Mas ele logo sentiu um desejo irresistível de voltar à Irlanda e pregar o evangelho aos pagãos, entre os quais ele tinha encontrado o Salvador. Em vão seus pais e amigos tentaram detê-lo. Ele rompeu todos os obstáculos, e com o coração cheio do zelo cristão partiu para a Irlanda. Ele tinha então mais de 40 anos de idade e, de acordo com alguns escritores, tinha sido ordenado presbítero, e foi então consagrado bispo da Irlanda. Por causa disso ele é conhecido como São Patrício. Ele devotou o resto de sua vida à Irlanda, e trabalhou entre eles com grande efeito, embora em meio a muitas dificuldades e perigos. A conversão da Irlanda é atribuída aos seus esforços. O ano de sua morte é incerto.
O Zelo Missionário da Irlanda
Os benditos frutos dos trabalhos de São Patrício foram abundantemente manifestados em anos posteriores. A Irlanda, nessa época, é descrita como uma espécie de paraíso de paz e piedade; e sua fama pelo ensino puro das Escrituras se ergueu tão alto que chegou a receber a honorável denominação de “a ilha dos Santos”. Os labores do clero irlandês, no entanto, não se confinavam em seu próprio país. Naturalmente apaixonados por viajar e vagar, e estando energizados por um amor pelas almas, muitos deixaram seu país natal, em grupos missionários, sob a liderança de um amado e devoto abade. Geralmente conta-se que os monastérios eram tão cheios de monges nessa época que não havia espaço suficiente em seu próprio país para o emprego de seu zelo, de modo que eles sentiam que era seu dever exercer suas atividades em outras terras. Assim vemos uma ampla linha prateada da graça de Deus naquele povo rude, mais distintamente marcado do que em qualquer outra parte da Cristandade. O nome do Senhor seja louvado. Mas tomemos um exemplo para observarmos estas obras.
A Missão de Columba
Columba, um homem piedoso, de descendência real e cheio de boas obras, ficou profundamente impressionado com a importância de se levar o evangelho a outras terras. Ele pensava na Escócia, e determinou-se a visitar o país do famoso Succath. Tendo comunicado sua intenção a alguns de seus companheiros cristãos, que concordaram em acompanhá-lo, a missão foi acordada. Por volta do ano 565 Columba, acompanhado por doze companheiros, navegou das margens da Irlanda em um barco aberto de vime coberto de peles e, após experimentar muita dificuldade em sua pequena e rude embarcação, o nobre grupo missionário chegou às Ilhas Ocidentais — um conglomerado de ilhas ao largo da costa oeste da Escócia chamado de Hébridas. Eles desembarcaram perto da rocha estéril de Mull, ao sul das cavernas basálticas de Staffa, e fixaram sua morada em uma pequena ilha, mais tarde conhecida como Iona, ou Icolmkill. Lá ele fundou seu monastério, mais tarde tornado tão famoso na história da igreja. A tradição preservou um ponto na costa onde desembarcaram por meio de um montículo artificial, vagamente semelhante a um barco invertido, modelado segundo o padrão dos currach, no qual os piedosos monges navegaram através do mar.3
Pensa-se que um bom número de cristãos já tinha encontrado um refúgio naquela rocha estéril. Naquele tempo ela devia ser quase completamente isolada das moradas dos homens. As águas das Hébridas são tão tempestuosas que a navegação em barcos abertos deve ter sido extremamente perigosa. O nome Iona significa “A Ilha das Ondas”. Além de suas ondas transversais, suas correntes e seus recifes, a pesada maré do Atlântico rola sobre as suas praias. A respeito dos monges de Iona, falaremos de cada um; mas ainda não terminamos com a Irlanda.
Columbano, outro monge de grande santidade, parece ter deixado sua cela cerca de sessenta anos após Columba. Ele nasceu em Leinster, e treinou no grande monastério de Bangor na costa de Ulster. Uma sociedade de 3000 monges, sob o governo de seu fundador, Comgal, foi gerada nesse convento. A igreja na Irlanda ainda era livre; não tinha sido ainda escravizada pela igreja de Roma. Eles eram simples e sinceros em seu cristianismo comparado às formas sem vida e ao elemento sacerdotal do papado. Nem mesmo as construções religiosas desse período se assemelham aos conventos papistas de épocas posteriores. Mesmo assim, eles já tinham viajado para muito além da simplicidade do cristianismo apostólico.
A Palavra de Deus não era o único guia deles. O cristianismo não tinha existido no mundo por 600 anos sem ter contraído muitas corrupções. Ele passou através de muitos eventos de grande importância na história da igreja. O gnosticismo, o monasticismo, o arianismo e o pelagianismo eram gigantescos males naqueles dias; mas o monasticismo era a instituição popular ao final do século VI.
As Características de um Monge Superior
Cria-se que um proficiente na piedade mística daqueles dias podia operar milagres, proferir profecias e desfrutar de visões divinas. Ele era tão cercado por uma espécie de santidade temerosa que ninguém ousava tocar no homem de Deus. Ele saía de sua cela como se viesse de um outro mundo, com ele mesmo e suas vestes cobertas de poeira e cinzas. Ele ousadamente repreendia os vícios dos reis, confrontava os mais cruéis tiranos, ameaçava o derrube de dinastias, e assumia um tom elevado de superioridade sobre todas as dignidades seculares.
Assim era Columbano. Com uma colônia de monges ele partiu de barco da Irlanda por volta do ano 590. Ele pretendia pregar o evangelho para além dos domínios francos, mas aportou na Gália. A fama de sua piedade chegou aos ouvidos de Guntram, rei da Borgonha, que o convidou a se estabelecer naquele país. Recusando a oferta do rei, o abade solicitou permissão para se retirar a algum ermo inacessível. Ele se estabeleceu nos Vosges. Por um tempo os missionário tiveram que suportar grandes dificuldades. Eles frequentemente tinham, por dias, nenhuma outra comida além de ervas selvagens, cascas de árvores e, provavelmente, peixes do córrego. Mas, gradualmente, eles causaram uma impressão favorável sobre as pessoas dos arredores. Todas as classes olhavam para eles com reverência. Provisões lhes eram enviadas, especialmente por aqueles desejosos de lucrar pelas orações daqueles homens santos. O suprimento era descrito como miraculoso. A piedade e poderes maravilhosos do abade logo reuniram muitos ao seu redor. Monastérios se ergueram em diferentes locais, e os devotos se aglomeravam para enchê-los.
Columbano presidiu como abade sobre todas essas instituições. Seu modo de governo foi provavelmente o mesmo que tinha em Bangor, na Irlanda. Embora seu deleite sempre fosse vagar pelos bosques selvagens, ou habitar por dias em sua caverna solitária, ele ainda exercia uma estrita superintendência sobre todos os monastérios que ele tinha formado. O trabalho, a dieta, a leitura, o tempo para oração, e o estabelecimento das punições eram todos ditados por ele mesmo. Com o tempo, ele caiu em disputas com seus vizinhos quanto ao dia de guardar a Páscoa. Ele escreveu sobre o assunto ao Papa Gregório e a Bonifácio, colocando a igreja de Jerusalém acima da de Roma, como sendo o local da ressurreição do Senhor. Ele também trabalhou em Meltz, Suíça e Itália. Após fundar muitos monastérios, ele morreu em Roma no ano 610.
O mais celebrado seguidor do grande abade foi seu conterrâneo São Galo, que o acompanhara em todo o seu destino; mas, ficando doente quando seu mestre passava pela Itália, não pôde mais segui-lo e foi deixado em Helvétia. Mais tarde, ele pregou ao povo em sua própria língua, fundou o famoso monastério que leva seu nome, e é honrado como o apóstolo da Suíça. Ele morreu por volta do ano 627. Da época de São Patrício até a metade do século XII a igreja na Irlanda continuou a afirmar sua independência de Roma, e a manter sua posição como um ramo vivo e ativo da igreja, sem possuir qualquer chefe (ou cabeça) terreno4. Vamos nos voltar agora para a Escócia.
Os Primeiros Pregadores do Cristianismo na Escócia
Cerca de 150 anos antes do famoso Columba ter desembarcado na ilha de Iona, São Niniano, “um homem muito santo da nação britânica”, como Bede o chama, pregou o evangelho nos distritos do sul da Escócia. Este missionário, como quase todos os santos dos primeiros séculos, é declarado como tendo sangue real. Ele recebeu sua educação em Roma, ensinado pelo famoso Martinho de Tours, e, retornando à Escócia, fixou sua residência principal em Galloway.
Se podemos confiar nos seus biógrafos, devemos crer que ele foi por toda a parte pregando a Palavra, e que selvagens que viviam nus o ouviram, se maravilharam e foram convertidos. “Ele apressou-se sobre a obra para a qual tinha sido enviado pelo Espírito, sob o comando de Cristo, e tendo sido recebido em seu país, uma grande multidão se reuniu, com muita alegria em todos, e uma maravilhosa devoção e louvor a Cristo ressoou em todos os lugares; alguns o tomaram por profeta. Presentemente o extenuante lavrador entrou no campo de seu Senhor, começou a arrancar as coisas mal plantadas, para dispersar essa má colheita e destruir aqueles mal construídos”. Milhares, conta-se, foram batizados e se uniram ao exército dos fiéis.
Ele começou a construir uma “igreja” de pedra nas margens do Solway mas, antes que fosse terminada, recebeu notícia sobre a morte de seu amigo e patrono São Martinho, e piedosamente dedicou a “igreja” a sua honra. Conta-se que esse foi o primeiro edifício de pedras erguido na Escócia e, por conta de sua aparência branca e brilhante comparada às cabanas de troncos e lama até então usados, atraiu grande atenção. Ela foi chamada em saxão de “giz derretido”, e assim o é até os dias atuais.5
Não sabemos nada sobre os sucessores imediatos de São Niniano: até a missão de Columba a história do cristianismo na Escócia é pouco conhecida. Sem dúvidas o Senhor manteria vivo o fogo que ele tinha acendido, e preservou e disseminou a verdade do evangelho que tinha sido recebido por tantos. Dentre os pictos, ao sul de Grampians, Niniano parece ter trabalhado principalmente e com sucesso, mas com o celebrado Columba começa o período mais interessante nos anais eclesiásticos da Escócia.
Já vimos Columba e sua colônia de monges estabelecendo-se em Iona. Ali ele construiu seu monastério, tal como era. E tão famoso se tornou o colégio de Iona que foi considerado, por muitos anos, se não por séculos, a luz do mundo ocidental. Homens, eminentes pela erudição e piedade, foram enviados para fundar bispados e universidades em cada canto da Europa. Por 34 anos Columba viveu e trabalhou naquela rocha solitária. Ocasionalmente ele visitava o continente, fazendo a obra de um evangelista entre os bárbaros escoceses e pictos, plantando igrejas e exercendo uma imensa influência sobre todas as classes; mas seu grande objetivo era treinar homens para a obra do evangelho no país e no exterior. Sem dúvida manter-se-ia uma ligação estreita e amigável entre o Norte da Irlanda e o Oeste da Escócia; de fato, naquela época ambas as regiões eram consideradas idênticas e eram conhecidas pela denominação geral de escoceses.
Os Missionários de Iona
Perto do fim do século VI, ou início do século VII, missionários começaram a sair dos claustros de Iona carregando a luz do cristianismo, não meramente a diferentes partes da Escócia, mas também à Inglaterra e ao continente. Agostinho [de Cantuária] e seus monges italianos chegaram em Kent um pouco antes do famoso Aidan de Iona e seus monges entrarem em Northumberland. Assim a igreja saxônica foi invadida por cristãos missionários em suas duas extremidades.
Osvaldo, então rei da Nortúmbria, era cristão. Ele tinha sido convertido, batizado e recebido à comunhão na igreja escocesa quando era um jovem e exilado nesse país. Ao recuperar o trono de seus ancestrais ele naturalmente desejou que seu povo fosse levado ao conhecimento do Salvador. A seu pedido, os anciãos de Iona lhe enviaram um grupo missionário chefiado pelo piedoso e fiel Aidan. O rei atribuiu-lhes a ilha de Lindisfarne por residência. Ali Aidan estabeleceu o sistema de Iona, e a comunidade viveu de acordo com o governo monástico. Muitos se uniram ao monastério, vindos tanto da Escócia quanto da Irlanda. O próprio rei zelosamente ajudou na disseminação do evangelho: às vezes pregando, e às vezes agindo como um interpretador, tendo aprendido a língua celta durante seu exílio. Bede, embora fortemente romano em suas afeições, dá um testemunho sincero às virtudes desses clérigos do Norte — “Seu zelo, sua gentileza, sua humildade e simplicidade, seu estudo sério das Escrituras, sua liberdade de todo o egoísmo e avareza, sua honesta ousadia ao lidar com os grandes, sua ternura e caridade para com os pobres, sua vida estrita e abnegada.”6
A obra da conversão parece ter prosperado nas mãos de Agostinho [da Cantuária] e Aidan. Os monges italianos estendiam seus ensinamentos e influência sobre o sul e sudoeste do reino, enquanto os monges escoceses espalhavam a verdade de um evangelho mais puro e simples sobre as províncias do norte, do leste e da região central. Ao mesmo tempo, York, Durham, Lichfield e Londres se encheram de homens escoceses. Assim Roma e Iona se encontraram em solo inglês, uma colisão que era inevitável; quem se tornaria o mestre? Agostinho [de Cantuária], que tinha sido consagrado primaz da Inglaterra pelo papa, exigiu que os monges celtas se conformassem à disciplina romana: a isto eles se recuraram prontamente, e defenderam com grande firmeza sua própria disciplina e as regras de Iona. Sérias disputas então se levantaram. Roma não podia se submeter a nenhum rival, ela estava determinada a manter a Inglaterra sob seus domínios.
Após a morte do piedoso e generoso Osvaldo, o trono foi preenchido por seu irmão Oswiu, que também tinha se convertido ao cristianismo e foi batizado na Escócia durante seu cativeiro. Mas sua princesa aderiu aos costumes de Roma, e a família seguiu a mãe. Uma forte influência foi assim exercida contra os monges escoceses; e, cansados das contínuas provocações e da conduta inescrupulosa dos agentes do pontífice, tanto eclesiásticos quanto seculares, os firmes presbíteros ficaram determinados a deixar a Inglaterra e retornarem a Iona. De longe, a maior e mais importante parte do país tinha sido convertida ao cristianismo por meio de seus labores; mas o triunfo de Roma na conferência de Whitby em 664, através da sutileza do padre Wilfred, os desencorajou tanto que eles silenciosamente se retiraram do campo após a ocupação de cerca de trinta anos. “Por mais santo que tenha sido o teu Columba”, disse o astuto Wilfred, “prefere-o ao príncipe dos apóstolo, a quem Cristo disse ’Tu és Pedro, e te darei as chaves do reino dos céus’?”. O Rei Oswiu estava presente, e professou obediência a São Pedro. “Receio”, disse ele, “que quando eu chegar ao portão do céu, não haverá ninguém para abri-lo para mim”. O povo logo seguiu seu príncipe, e em um curto período de tempo toda a Inglaterra tornou-se subserviente de Roma. Mas nem argumentos, intimidação, nem o escárnio, tinham qualquer efeito sobre os presbíteros do Norte. Eles se recusaram a reconhecer que deviam fidelidade ao bispo de Roma. A Escócia ainda era livre. Os padres, como de costume, puseram-se a trabalhar com os príncipes. Isto foi realizado como descrito a seguir.
A Tonsura Clerical
Dentre os muitos assuntos de disputa entre os missionários celtas e italianos, o verdadeiro dia para a celebração da Páscoa e a verdadeira forma da tonsura clerical animaram as mais ferozes controvérsias, despertaram as mais fortes paixões e, finalmente, levaram à queda da igreja da Escócia e ao triunfo dos sacerdotes de Roma. Mas, tendo já falado sobre a questão da Páscoa em ligação com o concílio de Niceia, vamos apenas tomar nota sobre a disputa sobre a tonsura.
Pode parecer estranho aos nossos jovens leitores protestantes, que podem nunca ter visto um padre católico sem seu chapéu, que o corte de seu cabelo fosse algo de mais peso em sua ordenação do que sua erudição ou sua piedade. E a mera forma em que era raspada era considerada de tanta importância que tornou-se um teste de ortodoxia. Os monges escoceses seguiam as igrejas do Oriente, tanto na observância da Páscoa quanto na forma de tonsura. Eles raspavam a parte de trás da cabeça de orelha a orelha na forma de uma crescente. Os orientais reivindicavam João e Policarpo como seu exemplo e autoridade. Os italianos professavam ficar em grande choque por tal barbaridade, e chamavam-na de tonsura de Simão Mago. O clero romano usava uma forma circular. Isto era feito tornando careca um pequeno ponto redondo bem no topo da cabeça, e aumentando o ponto à medida que o eclesiástico avançava nas ordens sagradas. A tonsura tornou-se um requisito como uma preparação para as ordens por volta do quinto ou sexto século.
Agostinho [de Cantuária] e seus sucessores na sé da Cantuária, seguindo os escritos dos mais antigos e veneráveis “Pais”, afirmavam que a tonsura foi primeiramente introduzida pelo príncipe dos apóstolos, em honra à coroa de espinhos que foi pressionada sobre a cabeça do Redentor; e que o instrumento inventado pela impiedade dos judeus para a ignomínia e tortura de Cristo pode ter sido utilizada por Seus apóstolos como seu ornamento e glória. Por mais de um século a controvérsia se ergueu com grande ferocidade. As questões prosseguiam a tal ponto que um homem era ou não era considerado um herege de acordo com o local do couro cabeludo em que se fazia careca: na coroa (topo da cabeça) ou na parte de traz da cabeça. Roma se encheu de raiva; meios humanos pareciam insuficientes para conquistar um miserável bando de presbíteros em um canto remoto da ilha. Eles se recusavam a curvar-se perante ela. O que deveria ser feito? Como sempre, achando-se incapaz de alcançar seu objetivo por meio dos padres, ela recorreu a favoritos na corte, nobres e príncipes. Naitam, rei dos pictos, foi convencido a crer que, ao se submeter ao papa, ele seria igual a Clóvis e Clotaire. Lisonjeado por tal grandeza de glória futura, ele recomendou que todo o clero de seu reino recebesse a tonsura de São Pedro. Então, sem demora, ele enviou agentes e cartas para cada província e fez com que todos os monastérios e monges recebessem a tonsura circular de acordo com a moda romana. Alguns se recusaram. Os anciãos da rocha aguentaram por um tempo, mas as ordens do rei, o exemplo do clero e a fraqueza de alguns dentre eles conduziu ao caminho da destruição de Iona e de toda a antiga igreja da Escócia. Por volta do início do século VIII a navalha foi introduzida, eles receberam a tonsura latina, tornaram-se servos de Roma, e continuaram assim até o período da Reforma.7
Quem Eram os Culdees?
Culdees eram uma espécie de reclusos religiosos que viviam em lugares afastados. A comunidade cristã de Iona foi chamada de Culdees. E este é, provavelmente, o motivo pelo qual aquele ponto isolado foi fixado por Columba como o local de seu monastério. Embora totalmente livres das corrupções dos grandes monastérios no continente, a vida e as instituições de Columba eram estritamente monásticas. E, a partir de fragmentos de informação recolhidos da história, parece bem certo de que “eles se gloriavam em seus milagres, respeitavam relíquias, praticavam penitências, jejuavam às quartas e sextas-feiras, tinham algo bem similar às confissões auriculares, às absolvições e às missas para os mortos; mas é certo que eles nunca se submeteram aos decretos do papado em relação ao celibato”. Muitos dos culdees eram homens casados. São Patrício era filho de um diácono e neto de um sacerdote.8
Mas, embora esses homens bons e santos fossem tão infectados pela superstição dos tempos, a situação remota em que se encontravam, a simplicidade de seus modos, e a pobreza de seu país devem tê-los preservado muito das influências romanas e dos vícios predominantes dos monastérios mais opulentos. Prefiramos pensar no monastério deles como um seminário, nos quais homens eram treinados para a obra do ministério. Em anos posteriores os monges foram frequentemente perturbados, e algumas vezes abatidos, por piratas. No século XII passou a ser posse dos monges romanos. “Sue fé pura e primitiva”, diz Cunningham, “havia partido; seu renome por causa da piedade e erudição se foi; mas a memória deles sobreviveu, e era então considerada com maior reverência supersticiosa do que nunca. Muito antes disso o monastério foi usada como sepulcro da realeza, numerosas peregrinações foram feitas até ele, e agora reis e chefes começaram a enriquecê-lo com doações de dízimos e terras. As paredes que então estavam desmoronando foram consertadas; e os viajantes podem apreciar essas veneráveis ruínas eclesiásticas se erguendo de um cais em meio ao vasto oceano com sentimentos parecidos com aqueles com os quais é possível considerar os templos de Tebas meio enterrados, mas ainda em pé, no meio das areias do deserto”.
Vamos agora deixar de lado por um tempo as Ilhas Britânicas. A primeira introdução da cruz na Inglaterra, Escócia e Irlanda, e o triunfo final de Roma nesses países, são eventos do mais profundo interesse por si só; mas por terem acontecido em nosso próprio país9 eles têm direito à nossa atenção especial. A partir desse momento poucas mudanças exteriores aconteceram na história da igreja, embora possam ter havido muitas lutas internas a partir dos numerosos abusos e das exigências audaciosas de Roma.
A Disseminação do Cristianismo na Alemanha e Arredores
É mais do que provável que a cruz tenha sido introduzida, num período primitivo, no coração das florestas germânicas, assim como naquelas cidades e distritos que estavam sujeitos ao Império Romano. Os nomes de vários bispos da Alemanha 10 são encontrados nas listas dos concílios de Roma e Arles realizados sob a autoridade de Constantino nos anos 313 e 314. Mas não foi até o final do sexto e início do sétimo século que o cristianismo foi amplamente disseminado e firmemente enraizado na região. Os bretões (ou britânicos), os escotos (ou escoceses) e os irlandeses foram honrados por Deus como os principais instrumentos nessa grande e abençoada obra. O ardente Columbano, cuja missão já tomamos nota, foi o líder dos primeiros grupos que foram ao auxílio dos pagãos no continente europeu. Ele primeiramente atravessou a França, então passou o Reno e trabalhou pela conversão dos suábios, bávaros, francos e outras nações da Alemanha. St. Kilian, um escocês e evangelista muito devoto, o seguiu. Ele é considerado o apóstolo da Francônia e honrado como um mártir por sua fidelidade cristã por volta do ano 692. Willibrord, um inglês missionário com onze de seus compatriotas, cruzou para a Holanda para trabalhar entre os frísios; mas assim como outros anglo-saxões do período ele era fervorosamente devoto à Sé Romana. Ele foi ordenado bispo de Witteburg pelo papa; seus associados propagaram o evangelho através da Vestfália e dos países vizinhos.
Mas o homem que levou as nações da Germânia como um rebanho de ovelhas sob o pastorio de Roma foi o famoso Vinfrido. Ele nasceu em Crediton, em Devonshire, de uma nobre e rica família, por volta do ano 680. Ele entrou em um monastério em Exeter quando tinha sete anos, e mais tarde se mudou para Nursling em Hampshire. Ali ele se tornou famoso por sua capacidade como pregador e como expositor das Escrituras. Ele se sentia chamado por Deus logo no início de sua vida para ir mundo afora como um missionário aos pagãos. Ele navegou para a Frísia no ano 716. Seus labores foram longos e abundantes. Três vezes ele visitou Roma e recebeu grandes honras do papa. Sob o título de São Bonifácio, e considerado o apóstolo da Germânia, ele morreu como um mártir aos sessenta e cinco anos. Mas embora ele tenha sido um missionário muito bem-sucedido, um homem de grande força de caráter, de grande erudição e de vida santa, ele era um vassalo jurado do papa, e buscava mais o avanço da igreja de Roma do que o avanço do evangelho de Cristo.11
O Grande Projeto Papal para o Engrandecimento
A difusão do cristianismo nesse século ultrapassou em muito seus anteriores, tanto nos países do Oriente quanto do Ocidente. Vimos alguns de seus triunfos no Ocidente. No Oriente conta-se que os nestorianos trabalharam com incrível afinco e perseverança para propagar a verdade do evangelho na Pérsia, Síria, Índia, e entre as nações bárbaras e selvagens habitantes dos desertos e das costas mais remotas da Ásia. Em particular, o vasto império da China foi iluminado por seu zelo e diligência com a luz do cristianismo. Durante vários séculos sucessivos, o patriarca dos nestorianos enviou um bispo para presidir sobre as igrejas de então na China. Essas interessantes pessoas rejeitaram a adoração de imagens, a confissão auricular, a doutrina do purgatório, e muitas outras doutrinas corruptas das igrejas romana e grega.
A igreja oriental, ou igreja grega, parece ter sido impedida, por causa de dissensões internas, de se preocupar muito com a disseminação do cristianismo entre os pagãos. No Ocidente tudo era atividade mas, infelizmente, não para a disseminação do evangelho ou para a conversão de almas.12
O Período de Transição do Papado
Retornemos agora a Roma. Sua importância e influência como um centro reivindica nossa maior atenção por mais um pouco. Os domínios espirituais do papa então se estendiam por toda a parte. De todas as partes do império bispos, príncipes e povos olhavam para Roma como o pai de sua fé e a mais elevada autoridade na Cristandade. Mas, embora assim exaltada à mais alta soberania espiritual, o supremo pontífice e sua relação com o império oriental ainda era um assunto delicado. Isto era insuportável para o orgulho e ambição de Roma. A poderosa batalha pela vida e poder político agora começava, e durou por todo século VII e VIII. Este foi o período de transição de um estado de subordinação ao poder civil ao estado de auto-existência política. Como isto poderia ser alcançado era então o grande problema que o Vaticano tinha que resolver. Mas o domínio espiritual não podia ser mantido sem o poder secular.
Os lombardos — os vizinhos mais próximos e temidos dos papas — e o império grego eram os dois grandes obstáculos no caminho da soberania secular do papa. A queda do império ocidental e a ausência de qualquer governo nacional fez com que o povo romano olhasse para o bispo como seu chefe natural. Ele foi assim investido com uma influência política especial, distinta de seu caráter eclesiástico. As invasões dos lombardos, como já vimos, e a fraqueza dos gregos, contribuíram para o aumento do poder político nas mãos dos pontífices. Mas isto foi apenas acidental, ou uma necessidade diante das emergências imprevistas. Os Estados romanos ainda eram governados por um oficial do império oriental, e o próprio papa, se ofendesse o imperador, era suscetível de ser preso e lançado na prisão, como foi, de fato, o caso do papa São Martinho no ano 653, que morreu no exílio no ano seguinte.
O Único Grande Objetivo do Papado
A cada dia tornava-se mais e mais evidente que não poderia haver paz sólida para Roma, nem fundamento seguro para a supremacia já alcançada, a menos que fosse alcançada a derrubada total tanto dos poderes gregos quanto lombardos na Itália, e a apropriação de seus espólios pela santa Sé. Este era então o único grande objetivo dos sucessores de São Pedro e a batalha que eles tinham que lutar. Mas, assim como a vinha de Nabote, o jizreelita, isso deveria ser possuído por bem ou por mal. Jezabel conspira, e a morte de Nabote é realizada. A história dos reis lombardos e da grande controvérsia iconoclástica durante os séculos VII e VIII lançam muita luz sobre os meios usados para alcançar esse fim; mas disso tudo podemos dizer apenas uma palavra para passarmos adiante, e sugerir aos nossos leitores a consulta direta à história geral.13
“Há abundante fundamento histórico para acreditar”, diz Greenwood, “que esse objetivo havia, por essa época, se moldado muito distintamente na mente do papado: o território de seu inimigo religioso, o imperador, devia ser definitivamente anexado ao patrimônio de São Pedro, juntamente a um Estado territorial muito mais extenso à medida que a oportunidade viesse ao alcance. Mas restava a árdua e aparentemente impossível tarefa de arrancar essas potenciais aquisições das mãos do inimigo lombardo. E, de fato, todo o curso da política papal estava então direcionada ao cumprimento desse único objetivo.”
Pepino e Carlos Magno (741–814 d.C.)
Os olhos dos papas tinham, por algum tempo, se voltado para a França como o ponto de partida de onde viria a libertação. A nação franca tinha sido católica desde o início de seu cristianismo; mas uma conexão mais próxima com Roma foi mais tarde formada por meio de São Bonifácio, o monge inglês. Cheio como era da reverência de sua nação por São Pedro e seus sucessores, ele exerceu toda sua influência entre os bispos da França e Alemanha para estender a autoridade da Sé Romana. Isto preparou o caminho para a solução do grande problema que tinham em mãos.
Pepino, que era o alto mordomo ou prefeito do palácio de Childerico III, rei dos francos, exercera por muito tempo todos os poderes do Estado junto com todos os atributos da soberania, com exceção do título. Ele pensou que chegara o momento de pôr um fim à realeza de seu mestre e assumir o nome e as honras reais. Ele possuía em grande medida todas as qualidades que a nobreza e o povo estavam acostumados a respeitar nos príncipes daquela época. Ele era um guerreiro galante e um estadista experiente. Por uma brilhante série de sucessos ele tinha grandemente estendido o domínio dos francos. O pobre rei, sendo destituído de tais capacidades, afundou no favor popular e foi apelidado de “o Estúpido”. Pepino, no entanto, tinha sabedoria para prosseguir cautelosamente neste estágio de seus planos. Bonifácio, que desempenhava um importante papel nesse assunto, foi secretamente despachado para Roma para preparar o papa para a mensagem de Pepino, e com instruções de como respondê-lo. No meio tempo, ele reuniu os estados do reino para deliberar sobre o assunto. Os nobres deram a opinião de que, primeiramente, o pontífice deveria ser consultado, independentemente do quão lícito fosse o que o prefeito desejava. De acordo, dois eclesiásticos confidenciais foram enviados a Roma para proporem a seguinte questão ao papa Zacarias: “Se a lei divina não permitia que um povo valente e guerreiro destronasse um monarca imbecil e indolente, que era incapaz de desempenhar qualquer das funções da realeza, e substituí-lo por um mais digno de governar, e um que já tinha rendido mais importante serviço ao Estado?”. A resposta lacônica do papa, já em posse de todos os segredos, foi rápida e favorável. “Aquele que legalmente possui o poder real pode também legalmente assumir o título real.”
O papa, sem dúvida, respondeu como seus questionadores desejavam. Pepino se sentiu então seguro de seu prêmio. Fortificado pela aprovação da mais alta autoridade eclesiástica, e seguro da aquiescência do povo, ele ousadamente assumiu o título real. Ele foi coroado por Bonifácio na presença nos nobres e prelados do reino reunidos em Soissons, no ano 752. Mas o caráter religioso da coroação marcou o crescente poder do clero. A cerimônia judaica da unção foi introduzida por Bonifácio para santificar o usurpador, e os bispos ficavam ao redor do trono como se fossem de igual posição com os nobres armados. De acordo com o uso dos francos, Pepino foi elevado sobre o escudo, entre as aclamações do povo, e proclamado rei dos francos. Childerico, o último dos reis merovíngios, foi despojado da realeza sem oposição, despojado de seus longos cabelos, tonsurado e encerrado em um monastério.
A Sanção de Zacarias à Conspiração de Pepino
A parte que Bonifácio e seu chefe, o papa, tiveram nessa revolução, e a moralidade dos procedimentos, têm sido assuntos de muita controvérsia. Os escritores papais têm dolorosamente tentado exonerar os inescrupulosos sacerdotes, e os escritores protestantes tentam criminalizá-los. Mas se compararmos a conduta deles com os princípios do Novo Testamento, não pode haver controvérsia. Cada princípio e sentimento correto, tanto humanos quanto divinos, foram prontamente sacrificados para assegurar a aliança de Pepino contra os gregos e lombardos. A violação dos direitos sagrados dos reis, a grande lei da sucessão hereditária, a rebelde ambição de um servo, a degradação do soberano legítimo, e a absolvição de súditos por suas infidelidades, são aqui todos sancionados pelo papado como sendo corretos aos olhos de Deus, uma vez que eles eram os meios pelos quais o papa seria elevado à uma soberania secular. Tal foi a ousada perversão e a terrível blasfêmia da Sé Romana na metade do século VIII. Que o estudante da história da igreja tome nota dessa ocorrência como característica do papado, e como um precedente para suas futuras pretensões. Este acontecimento é geralmente relatado como o primeiro exemplo de interferência do papa nos direitos dos príncipes e na fidelidade dos súditos. Mas os sucessores de Zacarias fizeram amplo uso desse precedente em anos posteriores. Eles afirmavam que os reis da França, a partir desse tempo, podiam ser coroados apenas pela autoridade do papa, e que a sanção papal era seu único título legal. Mal podiam Pepino ou Zacarias prever os imensos efeitos dessa negociação na história da igreja e do mundo. Foi o grande primeiro passo em direção ao futuro reinado do bispo de Roma — o importante elo na cadeia de eventos.
A Soberania Secular do Papado é Estabelecida
Através de uma troca mútua de bons ofícios, em menos de três anos Pepino cruzou os Alpes à frente de um numeroso exército, derrubou os lombardos, e recuperou o território italiano que eles tinham arrancado do império ocidental. A justiça exigiria, de fato, que o território retornasse ao imperador, a quem pertencia; ou ele poderia retê-lo para si mesmo. Mas ele não fez nem um nem o outro. Consciente de sua obrigação para com a santa Sé, ele respondeu que não tinha ido à batalha por amor de homem algum, mas apenas por amor de São Pedro, e para obter o perdão de seus pecados. Ele então transferiu a soberania sobre as províncias em questão para o bispo de Roma. Esta foi a fundação de todo o domínio secular dos papas.
Astolfo, rei dos lombardos, tendo jurado a Pepino que restauraria a São Pedro as cidades que ele tinha tomado, as tropas francesas foram retiradas. Mas a magnificente “doação”, no que dizia respeito ao papa, estava apenas no papel. Ele não tinha sido posto em posse real dos territórios cedidos, nem tinha os meios de pôr-se a si mesmo em posse do dom real. Mal o rei franco retornou dos Alpes, Astolfo recusou-se a cumprir seu compromisso. Ele reuniu suas divisões dispersas e continuou seus ataques sobre os territórios dispersos da igreja. Ele devastou o país até os próprios muros de Roma e sitiou a cidade. O papa, indignado tanto com a conduta evasiva de Pepino quanto com a perfídia dos lombardos, enviou mensagens a seus protetores francos pelo mar a toda pressa, pois todos os caminhos por terra estavam fechados pelo inimigo. Sua primeira carta recordou ao rei Pepino que ele arriscava a eterna condenação se não completasse a doação que havia prometido a São Pedro. Seguiu-se uma segunda carta, mais patética e mais persuasiva. Mesmo assim os francos se atrasaram. E, finalmente, o papa escreveu uma terceira, como se viesse do próprio São Pedro. A ousadia e pretensão dessa carta é tão terrível que a citaremos inteiramente como um exemplo dos meios usados pelo papa para aterrorizar os bárbaros para a proteção da santa Sé e o avanço de seus domínios. Ele considerou todos os meios justificáveis para alcançar tais propósitos elevados. Assim se lê:
“Eu, Pedro, o apóstolo, protesto, admoesto e conjuro-vos, os mais cristãos reis, Pepino, Carlos e Carlomano, com toda a hierarquia, bispos, abades, padres e todos os monges; todos os juízes, duques, condes, e todo o povo dos francos. A mãe de Deus, do mesmo modo, vos conjura, e vos adverte e ordena, ela, assim como os tronos e domínios e todas as hostes do céu, a salvar a amada cidade de Roma dos detestados lombardos. Se ouvirdes, eu, Pedro, o apóstolo, prometo-vos minha proteção nesta vida e na próxima, preparar-vos-ei as mais gloriosas mansões no céu, e conceder-vos-ei as alegrias eternas do paraíso. Façam causa comum com meu povo de Roma, e vos concederei qualquer coisa para a qual orardes. Conjuro-vos a não deixarem esta cidade ser lacerada e atormentada no inferno com o diabo e seus anjos pestilentos. De todas as nações debaixo do céu os francos são os mais elevados na estima de São Pedro; para mim, vós mereceis todas as vossas vitórias. Obedecei, e obedecei rapidamente; e, por meu sufrágio, nosso Senhor Jesus Cristo vos dará uma longa vida, segurança, vitória, e na vida futura, multiplicará Suas bênçãos sobre vós, entre Seus santos e anjos.”14
O Prenúncio do Homem do Pecado
Nada pode nos dar uma ideia mais expressiva da terrível apostasia da igreja de Roma que essa carta. O único direito para a vida eterna é a obediência ao papa; o mais elevado dever do homem é a proteção e ampliação da santa Sé. Mas onde está Cristo? Onde estão Suas reivindicações? Onde está o cristianismo? Em vez de buscar converter os bárbaros e ganhar suas almas para Cristo, o santíssimo nome do Senhor e o nome do apóstolo são prostituídos para os mais baixos propósitos. O soldado que luta mais duro pela Sé Romana, embora destituído de qualquer qualificação moral e religiosa, é assegurado de grandes vantagens temporais na vida presente, e na vida vindoura o mais elevado assento no céu. Certamente temos aqui o mistério da iniquidade, e o prenúncio daquele homem de pecado, o filho da perdição, que se opõe e exalta a si mesmo sobre tudo o que é chamado Deus, ou que é adorado, de modo que ele como Deus se assenta no templo e Deus, mostrando-se como se fosse Deus — dele mesmo, cuja vinda é segundo a obra de Satanás, com todo o poder e sinais e prodígios de mentira. (2 Tessalonicenses 2:3–12)
Pepino logo tinha seus francos em ordem de marcha. As ameaças e promessas da “carta de São Pedro” tiveram o efeito desejado. Eles novamente invadiram a Itália. Astolfo cedeu imediatamente às exigências de Pepino. O território contestado foi abandonado. Embaixadores do Oriente estavam presentes na conclusão do tratado, e exigiram a restituição de Ravena e seu território ao seu mestre, o imperador; mas Pepino declarou que seu único objetivo na guerra era demonstrar sua veneração por São Pedro; e ele concedeu, pelo direito de conquista, tudo a seus sucessores. Os representantes do papa agora passavam pela terra, recebendo a homenagem das autoridades e as chaves das cidades. Mas o território que ele aceitou de um potentado estrangeiro na forma de uma doação pertencia ao seu mestre reconhecido, o imperador oriental. Ele [o papa] havia contratado, por uma grande soma, que teve o cuidado de tornar pagável no céu, um poderoso estrangeiro para roubar sua soberania de direito para sua própria vantagem, e sem vergonha ou hesitação ele aceitou a fraude. O rei francês pôde ser destronado e humilhado por seu servo, e o império grego pôde ser roubado e desafiado por seu sacerdote, se a igreja fosse assim engrandecida. Tal sempre foi a política de Roma.
Mas a generosa doação de Pepino — que morreu no ano 768 — esperou pela confirmação de seu filho, Carlos Magno. No ano 774, quando os lombardos mais uma vez ameaçaram os territórios romanos, a ajuda da França foi implorada. Carlos Magno prosseguiu à sua ajuda. Ele chegou em Roma na véspera da Páscoa. Os romanos, segundo nos contam, receberam o rei com ilimitada demonstração de alegria. Trinta mil cidadãos saíram-lhe ao encontro; todo o corpo do clero com cruzes e bandeiras, e as crianças das escolas, que levavam ramos de palmeira e oliveira, o saudaram com hinos de boas vindas. Ele desmontou, e prosseguiu a pé em direção à igreja de São Pedro, onde o papa e todo o clero estavam à espera. O rei devotamente beijou cada degrau das escadas e, ao chegar ao patamar beijou o papa, e entrou no edifício segurando sua mão direita. Ele passou a véspera da Páscoa em devotos exercícios e rezas. Mas quando o coração do rei estava quente e terno, o papa Adriano trouxe ao assunto uma nova escritura de doação à santa Sé. Carlos Magno, então, aumentou em grande medida a doação que Pepino tinha feito à igreja, confirmou-a com um juramento, e solenemente depositou a escritura da doação sobre a tumba do apóstolo. Após a conclusão das solenidades da Páscoa, despediu-se do pontífice e voltou ao seu exército. Seus braços foram vitoriosos em toda a parte, e ele não fez uma pausa sequer até que tivesse inteira e finalmente subvertido o império dos lombardos, e proclamou-se a si mesmo rei da Itália.
A Doação Territorial de Carlos Magno
A real extensão de sua doação é muito difícil de determinar. Mas parece ser da opinião geral dos historiadores que ela incluía não apenas o exarcado de Ravena, mas os ducados de Espoleto e Benevento, Veneza, Istria, e outros territórios no norte da Itália — em suma, quase toda a península com a ilha de Córsica. Todo Nabote foi roubado de sua vinha, e seu sangue derramado, para a gratificação da ambição de Jezabel, e para o estabelecimento de seu trono de iniquidade. Mas o marco da consumação e selo de toda a iniquidade foi o modo como o papa buscou reconciliar seu caráter de vicário de Cristo com sua nova posição. Como todos os homens estão sujeitos a Cristo, ele raciocinou, assim do mesmo modo eles são sujeitos ao Seu vicário e representante na terra em tudo o que pertence ao Seu reino. Mas este reino se estende sobre todos, portanto nada pertencente a este mundo ou seus assuntos podem estar acima ou além da jurisdição da cadeira de São Pedro. Nosso reino não é deste mundo; ele é, assim como Cristo, em todos, sobre todos e sobre tudo. De acordo com esta teoria, nenhum domínio secular deveria ser considerado inconsistente com a declaração do Salvador no que diz respeito ao Seu reino. É neste pressuposto ímpio, desde então, que os papas têm sempre agido. Daí sua interferência com o sacerdote e o povo, com o rei e o súdito, com a terra e o mar, sobre todo o mundo.
Carlos Magno visitou Roma novamente em 781, e uma terceira vez em 787, e em cada ocasião a igreja foi enriquecida por presentes, concedidos, como ele professava na linguagem da época, “para o bem de sua alma”. Submergido em gratidão e plenamente consciente de sua própria necessidade um defensor permanente, o papa coroou Carlos Magno na véspera do Natal do ano 800 com a coroa do império ocidental, e o proclamou César Augusto. Um príncipe franco, um teutão, foi assim declarado o sucessor dos Césares, e empunhou todo o poder do imperador do Ocidente. “O império de Carlos Magno”, diz Milman, “era quase compatível com a Cristandade latina; a Inglaterra foi o único grande território que reconhecia a supremacia de Roma e não se sujeitou ao novo império ocidental”15. Este evento deu início à grande época nos anais da Cristandade romana.
Devemos agora deixar o Ocidente por um tempo, e tornar nossa atenção para uma outra grande revolução religiosa que repentina e inesperadamente surgiu no Oriente — o maometismo.
N. do T.: Provavelmente a referência é a uma região da Irlanda chamada de Kilpatrick ou ao sobrenome irlandês Kilpatrick.↩
D’Aubigne, vol. 5, p. 25↩
Para detalhes interessantes, veja “The Church History of Scotland from the commencement of the Christian era to the present time”, de John Cunningham, ministro de Crieff A. and C. Black Edinburgh. 1859.↩
Faiths of the World (Crenças do Mundo), de Gardner, vol. 1, p. 150.↩
Cunningham, vol. 1, p. 52↩
J. C. Robertson, vol. 2, p. 62↩
D’Aubigne, vol. 5, p. 77. Cunningham, vol. 1, p. 90.↩
Cunningham, vol. 1, p. 94.↩
N. do T.: o autor vivia na Inglaterra↩
N. do T.: ou Germânia, como era conhecida a região na época romana↩
Para detalhes particulares veja Middle Ages, de Hardwicke; J. C. Robertson, vol. 2, p. 95↩
Mosheim, vol. 2, p. 29.↩
Veja especialmente a Cathedra Petri de Greenwood.↩
Para uma descrição mais ampla desse importante período, veja Cristianismo Latino, de Milman, vol. 2, p. 243.↩
Veja Milman, vol. 2. Greenwood, vol. 2.↩
Islamismo—Iconoclastia (569—741 d.C.)
Maomé, o Falso Profeta da Arábia
Foi com muito interesse que traçamos o constante progresso e poder subjugador do cristianismo em toda a Europa durante os séculos VII e VIII, embora em sua roupagem latina ou romana. O nome de Jesus foi disseminado mundo a fora, e Deus pôde usar o doce sabor desse nome para a bênção, apesar dos rígidos rituais de Roma que o cercavam de todos os lados. Mas todas essas conquistas do evangelho, por meio do gerenciamento do papa e da influência de seus missionários, tornaram-se as conquistas da Sé Romana. Quão longe tinha seu domínio espiritual se estendido, e quão grande seu poder podia ter se tornado se não tivesse encontrado formidáveis oposições, seria impossível imaginar. Mas Deus permitiu que um inimigo se erguesse, que não somente deteve o progresso do romanismo por todos os lados, como também mais de uma vez fez o próprio pontífice tremer por sua segurança, mesmo na cadeira de São Pedro. Esse foi Maomé, o impostor da Arábia.
O início do século VII — o momento em que esse notável homem apareceu — foi peculiarmente favorável para o cumprimento de seu grande objetivo. Quase o mundo inteiro estava contaminado por ídolos. A religião prevalecente de seu próprio país era grosseiramente idólatra. Havia 360 ídolos no templo de Meca, que era o número preciso de dias no ano árabe. O paganismo, com seus inúmeros falsos deuses, ainda cobria uma ampla porção da terra; e mesmo o cristianismo, infelizmente, tinha se tornado extensivamente idólatra, tanto nas igrejas gregas quanto romanas. Foi nesse momento que Maomé apareceu perante o mundo como um severo e austero monoteísta. Ele sentiu-se chamado a restaurar a doutrina fundamental da Unidade divina a sua devida proeminência na crença religiosa da humanidade. Mas as próprias ideias de encarnação, de redenção, de um Redentor, de um relacionamento e comunhão com Deus — as penetrantes influências de um santo amor — não têm lugar no sistema desse profeta. O abismo bocejante que separa Deus do pecador é deixado intransponível pela religião de Maomé. Mas, antes de falarmos sobre seu sistema, vamos olhar brevemente para sua família e juventude.
A Família e Juventude de Maomé
De acordo com a tradição árabe, ele era de uma família nobre chamada Coraixe. Essa tribo, os coraixitas, na época do nascimento de Maomé (que é geralmente datada por volta do ano 569), era um tipo de hierarquia que exercia a supremacia religiosa, e eram os guardiões reconhecidos da Caaba, a pedra sagrada de Meca, com seu templo. Seu pai morreu logo após seu nascimento, e sua mãe quando ele era muito novo, de modo que ele ficou órfão e destituído. Tendo outros membros masculinos de sua família também morrido, o governo de Meca e as chaves da Caaba passaram para as mãos de outro ramo da família. Pouco é conhecido sobre os primeiros 25 anos de sua vida, salvo que ele tenha se dedicado a atividades mercantis, e foi tão bem-sucedido e honrado em seus negócios que recebeu o título de Amin, ou fiel. Aos 28 anos casou-se com uma viúva de sua família, que possuía uma grande riqueza. Doze anos após seu casamento — quando tinha 40 anos — o profeta começou a ouvir as intimações de sua futura missão. Os infortúnios de sua família e como recuperar sua antiga dignidade e poder podem ter estado, no início, em sua mente. De acordo com o costume que era comum entre seus conterrâneos, ele se retirava todos os anos a uma caverna em uma montanha, e gastava algum tempo em solidão religiosa. Foi em uma dessas cavernas, de acordo com seu próprio relato, que ele recebeu sua primeira comunicação vinda do céu — ou melhor, como cremos, do abismo das trevas. Ele foi, no entanto, gradualmente levado a crer que era especialmente chamado por Deus para ser um instrumento para a destruição da idolatria e para a propagação da verdadeira fé. Seus oráculos, que ele professava receber diretamente do céu pelo anjo Gabriel, foram preservados no Alcorão, e considerados pelos fiéis como a palavra de Deus.
A Religião do Islã
Assim, a nova religião anunciada era o Islã — uma palavra que significa submissão ou resignação à vontade de Deus. Sua doutrina foi resumida em seu próprio aforismo: “Não há Deus se não o verdadeiro Deus, e Maomé é seu profeta”. Os seis principais artigos na fé teórica do Islam eram: (1) crença em Deus, (2) em Seus anjos, (3) em Suas escrituras, (4) em Seus profetas, (5) na ressurreição e no dia do juízo, e (6) na predestinação. A parte prática do credo do profeta era igualmente irrepreensível, de acordo com os pensamentos prevalentes da observância religiosa da época, e abrange quatro grandes preceitos: (1) orações e purificação; (2) esmolas; (3) jejum; e (4) a peregrinação a Meca, que era considerada tão essencial que qualquer um que morresse sem realizá-la poderia ser equivalente a ter morrido como um judeu ou um cristão.
O único artigo realmente novo e surpreendente na religião do Islã era a missão divina de Maomé como o apóstolo e profeta de Deus. Mas nessas aparências justas é mais manifesta a obra de Satanás. Tais princípios simples e elementares não fariam violência a ninguém, mas enganariam muitos. A história claramente prova que suas opiniões mudaram com seu sucesso, e que sua violência e intolerância aumentaram com seu poder, até ter se tornado uma religião da espada, da pilhagem e da sensualidade. “Ele foi um pregador gentil”, diz Milman, “até ter desembainhado a espada”. A espada, uma vez desembainhada, é o argumento impiedoso. Em certa época encontramos o amplo princípio da tolerância oriental explicitamente declarado: a diversidade de religiões é atribuída à ordenação direta de Deus, e todos compartilhavam o mesmo ideal. Mas o Alcorão gradualmente retrai todas essas sentenças mais suaves e assume a linguagem de superioridade insultante ou de aversão não disfarçada. Mas, embora o Alcorão tenha muitos pontos de semelhança tanto com o judaísmo quanto com o cristianismo, pensa-se que Maomé não conhecia o Antigo e o Novo Testamento — que ele, na verdade, tirou seu material de lendas talmúdicas, dos evangelhos espúrios e de outros escritos heréticos, misturados às velhas tradições da Arábia.
Os primeiros convertidos que Maomé ganhou para sua nova religião estavam entre seus amigos e relações próximas, mas a obra de conversões prosseguiu bem devagar. Ao final de três anos seus seguidores somavam somente quatorze. Não contente com seu progresso, ele resolveu fazer uma declaração pública de sua religião. Ele primeiro chamou sua própria família para que o reconhecessem como um profeta de Deus, e, tendo sido aceito como o profeta pela sua família, também aspirou ser profeta de sua tribo. Mas suas exigências foram recusadas pelos coraixitas, suas pretensões foram desacreditadas, e ele mesmo e seus seguidores foram perseguidos.
A Entrada Triunfante de Maomé em Medina
Até então ele se esforçara para difundir suas opiniões apenas pela persuasão, mas o povo era obstinado e supersticioso, e ameaçou o profeta com o martírio. Ele foi obrigado a fugir de sua cidade nativa, Meca, o ponto central do comércio e da religião da Arábia, e o esperado centro de seu novo império espiritual. Ele fugiu para Medina, onde foi recebido como um príncipe. Alguns de seus mais distintos cidadãos tinham abraçado sua causa; um partido já tinha se formado em seu favor. Sua fuga, em 622 d.C., é considerada a grande era na vida do profeta, e a fundação da cronologia maometana. Agora que estava possuído de uma força, ele foi encarregado, por uma nova revelação, de usá-la para a propagação da fé. O caráter de suas “revelações celestiais” então mudaram, tornando-se ferozes e sanguinárias. Sua boca se encheu, como os profetas de Acabe, com um espírito de mentira.
Em poucos anos, após alguns combates entre as cidades rivais e os seguidores das religiões rivais, a força do profeta aumentou tanto, que em 630 ele tomou posse de Meca. Ele limpou a Caaba de seus 360 ídolos, e erigiu no lugar o grande santuário do Islã. A partir de então Meca tornou-se o centro de seu sistema; toda a população jurou lealdade; todas as tribos da Arábia estavam então sob seu domínio e professando sua religião.
Meca, a Capital do Islã
Maomé tornou-se então o senhor de Meca. A unidade de Deus era proclamada, assim como sua própria missão profética, do mais alto pináculo da mesquita. Os ídolos foram quebrados em pedaços. O velho sistema da idolatria afundou perante o medo de seus braços e da simplicidade exterior de seu novo credo. O próximo passo importante na política do profeta foi assegurar a unidade religiosa absoluta de toda a Arábia. Por este meio, os velhos feudos hereditários das tribos e raças desapareceram, e todos se transformaram em um exército religioso unido contra os infiéis. A guera estava então declarada contra todas as formas de incredulidade, o que era especialmente uma declaração de guerra contra a Cristandade, e uma determinação expressa de propagar o maometismo pelo poder de sua espada.
Maomé torna-se então um soberano independente. A Arábia, liberta dos ídolos, abraça a religião do Islã. Mas, embora o profeta fosse então um príncipe secular e um guerreiro bem-sucedido, ele não negligenciou seus deveres de sacerdote. Ele constantemente conduzia as devoções de seus seguidores, fazia as orações públicas, e pregava nos festivais semanais às sextas-feiras. Ele blasfemamente assumiu ser profeta, sacerdote e rei. A mistura, a ilusão, é a inspiração do inferno; é como a obra-prima de Satanás enviada do reino das trevas. O fanatismo de seus seguidores foi impulsionado pelos incentivos à pilhagem e a gratificação de toda a paixão maligna. A apropriação de todas as mulheres cativas foi reconhecida como uma das leis da guerra, e a recompensa oferecida pela coragem. As máximas inculcadas em todos os fiéis eram tais como: “Uma gota de sangue derramada na causa de Deus, ou uma noite passada em armas, é de mais valia do que dois meses empregados ao jejum e oração. A qualquer que cai em combate, seus pecados são perdoados; no dia do juízo suas feridas serão resplandescentes como o escarlate e odoríferas como o almíscar: e a perda de seus membros serão recompensadas pelas asas de anjos e querubins”. O grito de guerra do intrépido Khaled era: “Lutem, lutem e não temam! O paraíso, o paraíso, está sob a sombra de suas espadas! O inferno com seu fogo está atrás daquele que foge da batalha, o paraíso está aberto àquele que cai em batalha”. Assim animados, os exércitos muçulmanos se acendiam com entusiasmo; e, sedentos pelos despojos de vitória aqui e pelo paraíso sensual que viria, eles corriam sem medo para a batalha.
A fundação do império árabe estava então estabelecida. Maomé convocou, não apenas os mesquinhos potentados dos reinos vizinhos, mas também os dois grandes poderes do mundo mais civilizado, o rei da Pérsia e o Imperador do Oriente, a se submeterem à sua supremacia religiosa. Conta-se que Heráclito receber a comunicação com respeito, mas Cosroes II, o persa, desdenhosamente rasgou a carta em pedaços: o profeta, ao ouvir sobre o ato, exclamou: “É assim que Deus vai rasgar o reino, e rejeitar as súplicas de Cosroes”. E assim aconteceu; o reino da Pérsia foi reduzido, em um curto período de tempo, pelos exércitos maometanos a apenas algumas comunidades dispersas. Mas embora o círculo do Islã estivesse se alargando, o seu centro estava morrendo. Tenho seguido seu filho mais velho até a sepultura com lágrimas e suspiros, o profeta fez sua peregrinação de despedida a Meca, e morreu no ano 632, aos 64 anos de idade. Ao que parece ele não tinha sido tocado nem um pouco pelo remorso em seu leito de morte, mas o sangue que ele derramou e as multidões que ele enganou o seguirão até o julgamento final.
A missão maligna do falso profeta foi cumprida. Ele tinha organizado a mais terrível confederação que o mundo já viu. No curto espaço de dez anos ele plantou no Oriente uma religião que se enraizou tão firmemente que, entre todas as revoluções e mudanças de doze séculos, ela ainda exerce uma poderosa influência controladora sobre as mentes e consciências de mais de 100 milhões de seres humanos.1
Os Sucessores de Maomé
Após a morte do profeta, a guerra foi declarada contra a humanidade por seus sucessores, os califas. Os principais destes foram Abu Bakr, o sábio; Omar, o fiel; Ali, o bravo; Khaled, a espada de Deus. Estes eram os companheiros e parentes mais velhos do profeta. Em poucos meses após sua morte esses generais foram seguidos por multidões do deserto e invadiram as planícies da Ásia. A história dessas guerras, embora tenham afetado profundamente o progresso do cristianismo, não se encontra no escopo deste livro. Mas, como muitas nações e multidões do povo do Senhor foram vítimas desse temível flagelo, merece uma breve consideração. Muitos creem que os gafanhotos sarracenos eram um cumprimento parcial de Apocalipse 9:1–12.
Os pagãos perseguidos, como Cosroes II, o rei infiel e desafiante da Pérsia, e os cristãos meramente nominais, foram igualmente castigados por Deus por meio dos sucessores de Maomé; mas os orgulhosos bispos e padres foram os objetivos especiais de sua vingança. “Não destruam as árvores de fruto nem os campos férteis em seu caminho”, disseram os califas, “sejam justos, e poupem os sentimentos dos vencidos. Respeitem todas as pessoas religiosas que vivem como ermitões ou em conventos, e poupem seus edifícios. Mas se encontrarem com uma classe de incrédulos de um tipo diferente, que andam por aí com coroas raspadas e pertencem à sinagoga de Satanás, certifiquem-se de racharem seus crânios, a menos que abracem a verdadeira fé ou rendam tributo”. E assim a poderosa horda seguiu com um entusiasmo que nada podia deter. “A Síria caiu; a Pérsia e o Egito caíram; e muitos outros países se renderam ao poder deles”. Muitas grandes cidades, tais como Jerusalém, Bosra, Antioquia, Damasco, Alexandria, Cirene e Cartago caíram nas mãos deles. Eles também invadiram a Índia, atacaram a Europa e a Espanha, e alcançaram até mesmo às margens do Loire; mas ali foram derrotados e expulsos por Carlos Martel no ano 732. Vamos tomar nota mais a fundo apenas do tratamento deles sobre os vencidos no caso de Jerusalém.
No ano 637 Jerusalém caiu nas mãos do califa Omar, que construiu uma mesquita no local do templo. Todo o povo daquela cidade culpada foi reduzido a uma casta desprezível e marcada pelo arrogante conquistador. Em todo lugar eles deviam honrar os muçulmanos, e dar lugar à sua frente. O cristianismo foi submetido à ignomínia da tolerância; a cruz não era mais exibida do lado de fora das igrejas, e os sinos deviam ficar silenciosos; os cristãos eram deixados a lamentar suas mortes em segredo; a vista do muçulmano devoto não devia ser ofendida pelos símbolos do cristianismo de modo nenhum; e sua pessoa devia ser considerada sagrada, de modo que era um crime que um cristão esbarrasse em um muçulmano.
Tal era a condição a que os cristãos habitantes de Jerusalém caíram de vez, e na qual permaneceram, sem que seus algozes fossem perturbados por nenhum tipo sério de agressão até o tempo das cruzadas. Quase os mesmos termos, cremos, foram forçados a todos os cristãos na Síria. Assim Deus, em Sua santa providência, lidou com muitas nações, tanto no Oriente quanto no Ocidente, que eram densamente povoadas por judeus e cristãos, e condenou milhões a uma longa noite de servidão sob o maometismo, que continua até os dias de hoje. 2
Reflexões sobre o Islamismo e o Romanismo
Tendo chegado a nossa história, tanto civil quanto eclesiástica, ao final do século VIII, podemos fazer uma breve pausa e refletir sobre o que vimos, onde estamos, e o que esperar. Temos visto o crescimento da Sé Romana no Ocidente, e como ela alcançou o cume de sua ambição. Vimos também o surgimento do grande poder antagonista no Oriente, inferior apenas na extensão de sua influência religiosa e social ao próprio cristianismo de modo geral. O primeiro se espalhou gradualmente no próprio centro da Cristandade iluminada, e o último surgiu de repente em um obscuro distrito de um deserto selvagem. Mas qual — pode-se perguntar — é a lição moral a ser tomada do caráter e dos resultados desses dois grandes poderes? Ambos foram permitidos por Deus e, se julgamos corretamente, foram permitidos por Ele como um juízo divino sobre a Cristandade por sua apostasia, e sobre os pagãos por sua idolatria. Por um lado, o grito de guerra foi erguido contra todos os que recusavam a fé ou o tributo ao credo e aos exércitos dos califas; por outro lado, um grito de guerra mais implacável foi erguido contra quem se recusasse a crer na Virgem e nos santos, suas visões e milagres, suas relíquias e imagens, de acordo com as exigência intolerantes da idólatra Roma. As igrejas orientais tinham se enfraquecido e se perdido desde os dias de Orígenes por uma filosofia platônica, na forma de uma teologia metafísica, o que causou contínuas dissensões. No Ocidente as controvérsias tinham sido grandemente evitadas: o poder era o objetivo ali. Roma tinha aspirado, por séculos, o domínio da Cristandade — e do mundo. Ambos foram tratados judicialmente por Deus no dilúvio de fogo vindo da Arábia; mas o islamismo permanece como o poderoso flagelo de Deus no Oriente, e o romanismo no Ocidente.
Monotelismo e Iconoclastia
Enquanto os árabes sob Abu Bakr e Omar estavam invadindo os países gregos, e arrancando província após província do império, o imperador contentou-se em enviar exércitos para repeli-los e permaneceu em sua capital para a discussão de questões teológicas. Desde a conclusão de suas guerras bem-sucedidas contra a Pérsia, a religião tinha se tornado quase o objetivo exclusivo de sua solicitude. Duas grandes controvérsias estavam, no momento, agitando todo o mundo cristão. A primeira dessas, a assim chamada controvérsia monotelista, pode ser descrita, em geral, como um reavivamento, sob uma forma um pouco diferente, da velha heresia monofisita, ou de Eutiques. Sob o nome geral dos monofisitas estão compreendidos os quatro principais ramos de separatistas da igreja oriental: os jacobitas sírios, os coptas, os abissinianos e os armênios. O originador dessa numerosa e poderosa comunidade cristã foi Eutiques, abade de um convento de monges em Constantinopla, no século V. Os monofisitas negavam a distinção das duas naturezas em Cristo; os monotelitas, por outro lado, negavam a distinção da vontade, divina e humana, no bendito Senhor. Uma tentativa bem-intencionada, porém frustrada, do imperador Heráclito, foi reconciliar os monofisitas à igreja grega. Mas, como o som da controvérsia é raramente ouvido dentre os sectários orientais após esse período, e como um relato detalhado de suas disputas não seria de nenhum interesse aos nossos leitores, deixamos isto para as páginas da história eclesiástica.3
A iconoclastia, ou o surto de destruição de imagens, merece uma consideração mais detalhada. Ela penetrou no coração da Cristandade como nenhuma outra controvérsia tinha feito até então, e forma uma importante época na história da Sé Romana. Jezabel agora aparece em suas verdadeiras cores, e, deste momento em diante, seu caráter maligno é indelevelmente estampado no papado. Os papas que então preenchiam a cadeira de São Pedro defendiam e justificavam abertamente a adoração a imagens. Este foi, certamente, o início do papado — a maturidade do sistema de desonra a Deus. Os fundamentos do papado foram descobertos, e assim tornou-se evidente que a perseguição e a idolatria eram os dois pilares sobre os quais seu domínio arrogante repousava.
O Primeiro Objeto Visível de Veneração Cristã
Por mais de trezentos anos após a primeira publicação do evangelho há boas razões para crer que nem imagens nem qualquer outros objetos visíveis de reverência religiosa eram admitidos no serviço público das igrejas, ou adotados nos exercícios de devoção privada. Provavelmente tal coisa nunca tinha sido pensada pelos cristãos antes dos dias de Constantino; e podemos apenas considerá-la como um dos primeiros frutos da união da igreja com o Estado. Até esse período o grande protesto dos cristãos era contra a idolatria dos pagãos: e por isto eles sofreram até a morte. E não é pouco notável que a imperatriz Helena, a mãe de Constantino, foi a primeira a excitar a mente cristã a esta degradante superstição. Conta-se que ela, em seu zelo por lugares religiosos, tenha descoberto e desenterrado a madeira da “verdadeira cruz”. Isto foi o suficiente para o propósito do inimigo. A predileção da natureza humana por objetos de veneração se acendeu; a chama se espalhou rapidamente; e seguiu-se a usual consequência — a idolatria.
Memoriais similares do Salvador, da Virgem Maria, dos Apóstolos inspirados, e dos “Pais da Igreja”, foram também “encontrados”. As relíquias mais sagradas que estavam escondidas por séculos eram então descobertas por visões. Tão grande e tão bem-sucedida foi a ilusão do inimigo que toda a igreja caiu na armadilha. Da época de Constantino até a época da invasão árabe, a veneração por imagens, pinturas e relíquias gradualmente aumentou. A reverência pelas relíquias era mais característica dos ocidentais, e a reverência por imagens das igrejas orientais. Mas, a partir da época de Gregório, o Grande, o sentimento do Ocidente se tornou mais favorável às imagens. Em consequência da decadência quase total da literatura, tanto entre o clero quanto entre os leigos, o uso de imagens tornou-se uma imensa fonte de poder para o sacerdócio. Pinturas, estátuas e representações visíveis de objetos sagrados tornaram-se o modo mais fácil de dar instruções, encorajar a devoção e fortalecer os sentimentos religiosos nas mentes do povo. Os mais intelectuais ou iluminados dentre o clero podiam se esforçar em manter a distinção entre o respeito por imagens com um meios e não como objetos de adoração. Mas a devoção indiscriminada do vulgar desconsidera totalmente essas sutilezas. O apologista pode estabelecer distinções muito sutis entre imagens como objetos de reverência e como objetos de adoração, mas não pode haver dúvida que, com mentes ignorantes e supersticiosas, o uso, a reverência, a adoração de imagens, seja em pinturas ou estátuas, invariavelmente se degenera em idolatria.
Antes do final do século VI a idolatria estava firmemente estabelecida na igreja oriental, e durante o século VII fez um progresso gradual e muito geral no Ocidente, onde já tinha anteriormente ganhado algum terreno. Tornou-se comum cair prostrado perante imagens, rezar para elas, beijá-las, adorná-las com gemas e metais preciosos, colocar as mãos sobre elas em juramento, e até mesmo empregá-las como madrinhas e padrinhos de batismo.
As Tentativas de Leão de Abolir a Adoração de Imagens (por volta de 726 d.C.)
O imperador Leão III, de sobrenome Isáurico, um príncipe de grandes habilidades, teve a ousadia de empreender, em face de tantas dificuldades, a purificação da igreja de seus detestáveis ídolos. Como os escritos do partido vencido foram cuidadosamente suprimidos ou destruídos, a história é silente quanto aos motivos do imperador: mas estamos dispostos a acreditar que o novo credo e o sucesso de Maomé influenciaram muito Leão. Além disso, havia um sentimento bastante generalizado entre os cristãos no Oriente de que a crescente idolatria da igreja era o que tinha trazido sobre eles o castigo de Deus pela invasão maometana. Os cristãos constantemente ouviam tanto dos judeus quanto dos islâmicos o odioso nome dos idólatras. A grande controvérsia evidentemente surgiu a partir dessas circunstâncias.
Leão subiu ao trono do Oriente no ano 717 e, após assegurar o império contra os inimigos estrangeiros, começou a se preocupar com os assuntos religiosos. Ele em vão pensou que podia mudar e melhorar a religião de seus súditos por seu próprio comando imperial. Por volta do ano 726, ele emitiu um decreto contra o uso supersticioso de imagens — não sua destruição. Não podemos supôr que Isáurico estava agindo por temor ao verdadeiro Deus, mas sim que seus motivos eram puramente egoístas. Sendo chefe do império e ainda ostensivamente o chefe da igreja, ele sem dúvidas pensou que por seus decretos poderia cumprir a abolição total e simultânea da idolatria por todo o império, e estabelecer uma autocracia eclesiástica. Mas Leão superestimou demais seu poder secular nos assuntos espirituais. Havia passado o tempo de decretos imperiais mudarem a religião do império. Ele ainda tinha que aprender, para sua profunda mortificação, o desdenhoso, insolente e arrogante orgulho e poder dos pontífices, e o apego religioso do povo a suas imagens.
O primeiro decreto meramente interditou a adoração de imagens, e ordenou que fossem removidos a tal ponto que não poderiam ser tocados ou beijados. Mas o momento que a ímpia mão do imperador tocou nos ídolos, a excitação foi imensa e universal. A proibição afetou todas as classes: instruídos e não instruídos, sacerdotes e camponeses, monges e soldados, clérigos e leigos, homens, mulheres, e até crianças, se envolveram nessa nova agitação. O efeito do decreto imediatamente ocasionou uma guerra civil tanto no Oriente quanto no Ocidente. A influência dos monges foi especialmente forte. Eles arranjaram um novo pretendente ao trono, armaram a multidão e apareceram em uma frota mal equipada perante Constantinopla. Mas o fogo grego desbaratou os assaltantes desordenados; os líderes foram presos e condenados à morte. Leão, provocado pela resistência que seu decreto tinha encontrado, emitiu um segundo e mais rigoroso decreto. Ele agora ordenava a destruição de todas as imagens, e o branqueamento de todas as paredes nas quais tais coisas tinham sido pintadas.
O Segundo Decreto é Publicado
O segundo decreto era tão avassalador que os oficiais do império, conta-se, foram até mesmo além de suas ordens. As mais sacras estátuas e imagens foram, em todo lugar, impiedosamente quebradas, rasgadas em pedaços, ou publicamente lançadas nas chamas debaixo dos olhos dos enfurecidos adoradores. “Correndo risco de morte”, diz Greenwood, “homens, mulheres e até crianças correram para a defesa dos objetos como se fossem tão queridos para eles como a própria vida. Eles atacavam e matavam os oficiais do império envolvidos na obra de destruição; estes, apoiados pelas tropas regulares, retaliavam com igual ferocidade; e as ruas da metrópole exibiam tal cena de indignação e abate como só pode ser proveniente de paixões religiosas envenenadas. Os líderes do tumulto foram, a maior parte, condenados à morte no local; as prisões se encheram totalmente; e multidões, após sofrerem várias punições corporais, foram transportadas a lugares de exílio”.4
O populacho ficou então excitado à fúria; mesmo a presença do imperador não os intimidava. Os oficiais do império tinham ordens de destruir uma estátua do Salvador que ficava sobre o Portão de Bronze do palácio imperial, e que era conhecida pelo nome de Segurança. Esta imagem era famosa por seus milagres, e recebia grande veneração do povo. Multidões de mulheres de reuniram em torno do lugar e ansiosamente suplicaram ao soldado que poupasse sua imagem favorita. Mas ele subiu na escada, e com seu machado atingiu o rosto que elas tão frequentemente contemplavam, e que, pensavam elas, benignamente olhava para elas. Os céus não interferiram, como esperavam; mas as mulheres tomaram a escada, derrubaram o ímpio oficial, e o cortaram em pedaços. O imperador enviou uma guarda armada para suprimir o tumulto; a multidão se uniu às mulheres e um assustador massacre se sucedeu. “A Segurança” tinha sido derrubada, e seu lugar foi preenchido com uma inscrição na qual o imperador dava vazão a sua inimizade contra as imagens.5
A execução das ordens imperiais foram rejeitadas em todos os lugares, tanto na capital quanto nas províncias; o entusiasmo popular era tão grande que só poderia ser debelada pelos mais fortes esforços do poder civil e militar. Paixões se acendiam dos dois lados, que naturalmente resultaram na mais ousada rebelião e na mais violenta perseguição.
O Papa Rejeita os Decretos de Leão
A inteligência do primeiro assalto de Leão III contra as imagens de Constantinopla encheu os italianos de dor e indignação; mas quando as ordens chegaram para forçar esses decretos fatais dentro das dependências italianas do império, todos levantaram seus braços contra isso, desde os maiores até os menores. O papa se recusou a obedecer as ordens e desafiou o imperador; e todo o povo jurou viver e morrer em defesa do papa e das imagens sagradas. Mas a complicação política dos assuntos naquele momento tornou impossível para o imperador forçar seus decretos nos domínios papais. Gregório se dirigiu ao imperador com grande tensão; o tom de sua resposta ao manifesto imperial respira um espírito do mais sedicioso desafio. Os monges, que viam seu ofício em perigo — a superstição à qual deviam sua riqueza e influência — pregavam contra o imperador como a um apóstata abandonado. Ele foi pintado por esses escravos da idolatria como alguém que combinava em sua pessoa todas as heresias que já haviam poluído a fé cristã e que ameaçavam as almas dos homens. Mas, exibindo o verdadeiro espírito do papado, tanto na defesa de sua querida superstição e idolatria, quanto em seu desafio ao poder secular, transcreveremos partes das epístolas originais do segundo e terceiro Gregório, deixando ao leitor que examine o quadro.
O papa Gregório II disse ao imperador: “Durante dez puros e afortunados anos temos provado os confortos anuais de tuas cartas reais, assinadas em tinta púrpura por tua própria mão, nas quais pudemos ver as sagradas promessas de teu apego ao credo ortodoxo de teus pais. Que deplorável mudança! Que tremendo escândalo! Tu agora acusas os católicos de idolatria; e pela acusação, trais tua própria impiedade e ignorância. A esta ignorância somos obrigados a adaptar a descortesia de nosso estilo e argumentos: os primeiros elementos das cartas sagradas são suficientes para tua confusão; e, se o imperador entrasse em uma escola de gramática e se declarasse o inimigo de nossa adoração, as simples e piedosas crianças lançariam suas tábuas de escrever em tua cabeça.”
Após essa desleal e ofensiva saudação, o papa tenta, como de costume, defender a adoração de imagens. Ele se esforça para provar a Leão a vasta diferença entre imagens cristãs e ídolos da antiguidade. Os últimos eram a representação fantasiosa de demônios, e as primeiras seriam a semelhança genuína de Cristo, de Sua mãe e de Seus santos. Ele então apela para as decorações no templo judaico — o propiciatório, os querubins e os vários ornamentos feitos por Bezalel para a glória de Deus — a fim de justificar o culto às imagens. Apenas os ídolos dos gentios, afirma ele, eram proibidos pela lei judaica. Ele nega que os católicos adoravam a madeira e a pedra: estes seriam apenas memoriais destinados a despertar sentimentos de piedade.
Ao falar de sua própria edificação ao contemplar as pinturas e imagens nas igrejas6, temos uma passagem de grande interesse histórico que mostra os temas habituais dessas pinturas: “O retrato miraculoso de Cristo enviado por Abgaro, rei de Edessa; as pinturas dos milagres do Senhor; a virgem mãe com o menino Jesus em seu colo, cercada por coros de anjos; a última ceia; a ressurreição de Lázaro; o milagre que deu vista ao cego; a cura do paralítico e do leproso; a alimentação das multidões no deserto; a transfiguração; a crucificação, sepultamento, ressurreição e ascensão de Cristo; o dom do Espírito Santo; e o sacrifício de Isaque.”7
Gregório aborda longamente os argumentos comuns em defesa das imagens, e reprova o imperador pela violação dos mais solenes compromissos, e então irrompe em um tom desdenhoso, tal como: “Tu exiges um concílio: revogue teus decretos, cesse a destruição de imagens; um concílio não será necessário. Tu nos atacas, ó tirano, com um grupo carnal e militar: desarmado e nu só podes implorar a Cristo, o príncipe das hostes celestiais, pois Ele enviará a ti um demônio para a destruição de teu corpo e salvação de tua alma. Tu declaras, com tola arrogância: ’Despacharei minhas ordens a Roma, quebrarei em pedaços a imagem de São Pedro; e Gregório, como seu predecessor Martinho, será transportado em correntes, e em exílio, aos pés do trono imperial’. Quisera Deus que me fosse permitido pisar as pegadas do santo Martinho; mas que o destino de Constâncio possa servir de alerta aos perseguidores da igreja. Mas é nosso dever viver para a edificação e apoio ao povo fiel; e também não iremos arriscar nossa segurança no evento de um combate. Incapaz como és de defender teus súditos romanos, a situação marítima da cidade pode talvez expô-la a tuas depredações; mas só temos de nos retirar à primeira fortaleza dos lombardos, e então poderás, do mesmo modo, perseguir os ventos. Ignora tu que os papas são o vínculo de união, os mediadores da paz entre o Oriente e o Ocidente? Os olhos das nações estão fixados em nossa humildade; e elas reverenciam, como um Deus sobre a terra, o apóstolo São Pedro, cuja imagem tu ameaças destruir.”
A conclusão da carta do papa evidentemente se refere a seus novos aliados além dos Alpes. Os francos tinham escutado obedientemente à recomendação papal de Bonifácio, o “apóstolo” da Alemanha. Negociações secretas já tinham começado para garantir a ajuda deles. A história e os resultados disso já examinamos em um capítulo anterior. Por isso o papa assegurou ao seu correspondente real que “os reinos remotos e interiores do Ocidente apresentam sua homenagem a Cristo e a Seu vice-gerente: e agora nos preparamos para visitar um dos mais poderosos monarcas, que deseja receber de nossas mãos o sacramento do batismo. Os bárbaros se submeteram ao jugo do evangelho, enquanto tu, sozinho, estás surdo à voz do Pastor. Esses piedosos bárbaros se acendem de raiva, têm sede de vingar as perseguições do Oriente. Abandona tua empreitada precipitada e fatal; reflita, trema e arrepende-te. Se persistires, somos inocentes do sangue que será derramado nessa disputa; que ele caia sobre tua cabeça.”8
Um Espírito de Mentira na Boca do Papado
Após lermos cuidadosamente essas antigas epístolas (ver seção anterior), é impossível acreditar que Gregório podia ser tão ignorante a ponto de afirmar tantas coisas a Leão em favor da adoração de imagens que eram certamente falsas: somos mais inclinados a acreditar que ele sabia que eram falsas, mas que apostou na ignorância do imperador. “Dizes”, continuou Gregório, “que somos proibidos de venerar coisas feitas pelos mãos dos homens. Mas és uma pessoa iletrada, e deveria, portanto, ter perguntado aos seus eruditos prelados o verdadeiro significado do mandamento. Se não fosses obstinado e intencionalmente ignorante teria aprendido deles que teus Atos estão em direta contradição com o testemunho unânime de todos os pais e doutores da igreja, e em particular repugnante à autoridade dos seus concílios gerais”. Tão flagrantemente falsas são essas afirmações que podemos apenas nos perguntar como qualquer pessoa poderia ter coragem de escrevê-las como se fossem verdade, especialmente o mais elevado eclesiástico da Cristandade. Mas isto prova que houve, desde o início, um espírito de mentira na boca do papado, assim como houve nos profetas de Baal (1 Reis 22:23). Até mesmo Greenwood 9 diz: “Em nenhum dos concílios gerais uma palavra sequer sobre adoração de imagens ocorre. A afirmação quanto ao testemunho unânime dos pais é igualmente falha. Com a exceção das obras de Gregório, o Grande, não encontrei nenhuma menção à prática da adoração de imagens nos pais dos seis primeiros séculos da era cristã.”10
Mas o espírito de mentira continua dizendo que a aparência visível de Cristo na carne causou tal impressão nas mentes dos discípulos que “assim que eles lançaram os olhos sobre Ele, apressaram-se em fazer retratos dEle, e os carregavam consigo, exibindo-os por todo o mundo, para que ao vê-los os homens pudessem ser convertidos da adoração de Satanás para o serviço de Cristo — porém só poderiam adorar as imagens, não com adoração absoluta, mas apenas com uma veneração relativa”. Do mesmo modo, o papa assegurou a Leão que “pinturas e imagens tinham sido tomadas de Tiago, o irmão do Senhor, de Estêvão, e de outros santos notáveis. E tendo assim feito, ele os dispersou por cada parte da terra para o aumento manifesto da causa do evangelho.”
Por uma estranha perversão ou confusão quanto aos fatos bíblicos, o papa compara o imperador ao “ímpio Uzias que”, diz ele, “sacrilegamente removeu a serpente de bronze que Moisés tinha erguido, e a quebrou em pedaços”. Aqui podemos dar ao papa o benefício da ignorância. Era menos provável que ele conhecesse sua Bíblia do que os seis concílios gerais. Ele parece ter tido alguma lembrança confusa sobre a história de Uzá, a quem o Senhor feriu por ter estendido a mão para segurar a arca quando os bois tropeçaram, e do ato de Ezequias, que quebrou em pedaços a serpente de bronze expressamente para prevenir que o povo pagasse homenagem divina (i.e. idolatrassem) a ela (1 Crônicas 13:9; 2 Reis 18:4). “Uzias”, diz ele, embora fosse na verdade Ezequias — “Uzias verdadeiramente era teu irmão, obstinado e, como tu, ousava fazer violência aos sacerdotes de Deus”. Pode-se então perguntar: o que as crianças de nossas escolas diriam ao papa que confundiu o bom rei Ezequias por um rei perverso, e seu ato de destruição da serpente de bronze por um ato de impiedade? Do mesmo modo podemos esperar que jogassem suas tábuas de escrever na cabeça de Gregório, assim como na de Leão (veja a seção anterior). Mas foi dito o suficiente sobre esse ponto para mostrar ao leitor qual era o espírito e caráter do papado desde sua própria fundação. Sempre foi um sistema descarado, mentiroso e idólatra, embora incontáveis números de santos de Deus tivessem estado nele durante seus mais tenebrosos períodos. O Nome salvador de Jesus sempre manteve-se em meio aos mais grosseiros absurdos e idolatrias, e qualquer que crê nesse Nome certamente será salvo. O dedo da fé que toca mesmo que somente a bainha de Sua veste, mesmo pressionado em meio a uma multidão de idólatras, abre as fontes eternas de todas as virtudes curadoras, e a própria fonte da doença é imediatamente extinta. E qualquer que seja a pressão ou trono Ele olhará ao redor para ver aquele que tocou nEle pela fé, e comunicará paz à alma atribulada (Marcos 5:25–34).
O Fim da Iconoclastia
Gregório II não sobreviveu muito tempo após ter escrito suas epístolas. No ano seguinte ele foi sucedido por um terceiro papa de mesmo nome. Gregório III também era zeloso na causa das imagens, e trabalhava para aumentar a popular veneração por elas. Em Roma, ele estabeleceu o exemplo de adoração de imagens na mais esplêndida escala. Um concílio solene foi convocado, consistindo de todos os bispos dos territórios lombardos e bizantinos ao norte da Itália, totalizando 93 bispos. A assembleia foi realizada na presença real das relíquias sagradas do apóstolo Pedro e teve a participação de todo o corpo do clero da cidade, dos cônsules e de uma grande multidão. Ali um decreto foi formulado, unanimemente adotado e assinado por todos os presente, com o efeito que: “Se qualquer pessoa, a partir de agora, desprezando os costumes antigos e fiéis de todos os cristãos e da igreja apostólica em particular, aparecer como um destruidor, difamador ou blasfemador das imagens sagradas de nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, e de Sua mãe, a imaculada Virgem Maria, dos apóstolos benditos, e de todos os santos, seja ele excluído do corpo e do sangue do Senhor, e da comunhão da universal igreja”11.
Leão, indignado pela audácia do papa, prendeu seus mensageiros e resolveu montar uma numerosa frota e exército para reduzir a Itália a uma melhor sujeição. Mas a armada grega encontrou uma terrível tempestade no Adriático, deixando a frota incapacitada, e assim Leão foi obrigado a postergar seus desígnios de forçar a execução de seus decretos contra imagens nas dependências italianas do império. Ele se indenizou, no entanto, confiscando as receitas papais na Sicília, Calábria e outras partes de seus domínios, e transferindo a Grécia e o Ilírico do patriarcado romano para o de Constantinopla. Mas aqui, com ambos, a cena se fecha, mas não a disputa. Ambos Gregório e Leão morreram em 741. O imperador foi sucedido por seu filho Constantino, cujo reino se estendeu pelo incomum período de 34 anos. Gregório foi sucedido por Zacarias, um homem de grande capacidade e profundamente imbuído do espírito do papado. Ao final de seu reinado, Constantino era implacável em sua inimizade contra os adoradores de imagens. Ele é culpado por grande crueldade contra os monges, mas ele foi, sem dúvidas, provocado até o último grau pelo comportamento violento e fanático deles.
Irene, esposa do filho e herdeiro de Constantino, uma princesa ambiciosa, intrigante e altiva, apoderou-se do governo na morte de seu fraco marido, em nome de seu filho, que tinha apenas dez anos de idade. Ela escondeu por um tempo seus desígnios pela restauração das imagens. A política e a idolatria, juntas, tomaram lugar em seu coração. Ela era ciumenta, astuta e cruel. Sua história é o registro do ódio interior e da traição com aparência exterior de cortesia. Mas estamos interessados apenas na parte religiosa de seu reinado.
O Segundo Concílio de Niceia
Decretos foram emitidos para um concílio a ser realizado em Niceia — uma cidade santificada pelas sessões do primeiro grande concílio da Cristandade — para decidir a questão da adoração de imagens. O número de eclesiásticos presentes eram cerca de 350. Seus homens escolhidos tomaram a liderança; tudo era, sem dúvida, pré-arranjado. Entre os Atos preliminares do concílio, foi debatido a que classe de hereges os iconoclastas deviam ser incluídos. Tarásio, presidente da assembleia, afirmou que era pior que a pior heresia, sendo uma negação absoluta de Cristo. Todo o procedimento do concílio foi caracterizado pelo mesmo tom condenatório para com os adversários da adoração de imagens. Após assentirem aos decretos dos seis primeiros concílios e às anátemas contra os hereges neles denunciados, eles passaram — agindo, como declaravam, sob a direção do Espírito Santo — ao seguinte cânon:
“Com a venerável e vivificante cruz serão colocadas as veneráveis e santas imagens, seja em cores, em obra mosaica, ou qualquer outro material, dentro das igrejas consagradas de Deus, nos vasos sagrados e vestimentas, nas paredes e tábuas, nas casas e estradas. As imagens de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, da imaculada mãe de Deus; dos anjos honrados; de todos os santos — essas imagens devem ser tratadas como memoriais sagrados, adoradas, beijadas, apenas sem aquela adoração peculiar que é reservada para o Invisível e Incompreensível Deus. Todos os que violarem esta, como se afirma, tradição imemorial da igreja, e esforçar-se, forçadamente ou por artifício, em remover qualquer imagem: se eclesiásticos, devem ser depostos e excomungados; se monges ou leigos, devem ser excomungados.”
O concílio não se contentou com esse abaixo-assinado formal e solene. Com uma voz eles irromperam em uma longa aclamação. “Todos cremos, todos afirmamos, todos assinamos. Esta é a fé dos apóstolos, esta é a fé da igreja, está é a fé do ortodoxo, esta é a fé de todo o mundo. Nós que adoramos a Trindade adoramos imagens. Qualquer que não seja assim, anátema sobre eles! Anátema sobre todos que chamam as imagens de ídolos! Anátema sobre todos que comunicam com aquele que não adoram imagens…Glória eterna aos romanos ortodoxos, a João de Damasco! A Gregório de Roma, glória eterna! Glória eterna a todos os pregadores da verdade!”
Helena e Irene
Assim terminou a questão mais crítica que já tinha se erguido desde que o cristianismo tornou-se a religião do mundo romano. Pelo sétimo concílio geral a idolatria foi formal e veementemente estabelecida como a adoração do grande sistema papal, e anátemas foram denunciadas contra todos os que ousassem afastar-se disto. Daí a perseguição implacável aos assim chamados separatistas. Mas é digno de nota, de acordo com nossa visão do caráter de Jezabel, que uma mulher foi a primeira a mover-se em relação ao culto de imagens, e uma mulher foi a restauradora das imagens quando foram derrubadas. Helena, a mãe de Constantino, o Grande, foi uma mulher irrepreensível e devota, mas foi usada pelo inimigo para introduzir relíquias emocionantes e memoriais sagrados que mudaram o cristianismo de uma adoração espiritual pura para aquela forma paganizante de religião que cresceu com tanta rapidez nos séculos seguintes. A esperta Irene foi também usada por Satanás para restaurar e reestabelecer a adoração de imagens. Daquele dia até hoje ambas igrejas grega e latina aderiram a essa forma de culto, e mantiveram a santidade de suas imagens e pinturas.
Os resultados políticos da controvérsia iconoclástica foram igualmente grandes e importantes. Roma então rompeu os laços de sua conexão com o Oriente, separando-se para sempre do Império Bizantino; e o cristianismo grego, a partir de então, tornou-se uma religião separada, e o império um Estado separado. O Ocidente, recebendo uma grande adesão de poder através dessa revolução, finalmente criou seu próprio império, formou alianças com os reis francos, e colocou a coroa do império ocidental na cabeça de Carlos Magno, como já vimos anteriormente.
N. do T.: este livro foi escrito no século XIX, portanto os números hoje em dia provavelmente são ainda maiores.↩
Veja Cristianismo Latino, de Milman, vol. 2, p. 4–52; e Dezoito Séculos Cristãos, de James White, p. 143↩
Para maiores detalhes sobre as diferentes seitas, veja Dicionário das Igrejas Cristãs e Seitas, de Marsden, e Crenças do Mundo, de Gardner.↩
Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 474↩
J. C. Robertson, vol. 2, p. 83; Milman, vol. 2, p. 156.↩
N. do T.: aqui no sentido de edifícios onde cristãos se reuniam, e não no sentido bíblico do corpo de Cristo, composto por todos os verdadeiros crentes em Jesus, ou de uma assembleia reunida somente ao nome do Senhor.↩
Cristianismo Latino, de Milman, vol. 2, p. 160.↩
Veja Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3.↩
N. do T.: o historiador↩
Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 476.↩
Cathedra Petri, de Greenwood, vol. 3, p. 480.↩
Europa (653 d.C.—855 d.C.)
A Linha Prateada da Graça Soberana
A monarquia papal está agora estabelecida. A corte da França e o papado estão unidos. Roma está agora separada do Oriente, e se torna o centro de influência sobre todo o Ocidente. Mas tendo traçado as tenebrosas linhas da apostasia no cristianismo latino desde o início do século IV até o início do século IX, voltemo-nos um pouco e esforcemo-nos em traçar a linha prateada da soberana graça de Deus naqueles que se separaram da comunhão da igreja latina durante o mesmo período. Se Satanás estava ativo em corromper a igreja no sentido exterior, Deus estava ativo na coleta dos Seus em meio a massa corrupta, e em fortalecê-los como Suas próprias testemunhas especiais. Desde os dias de Agostinho [de Hipona], a nobre testemunha de Sua graça contra o pelagianismo na Cristandade ocidental, até a Reforma, pode ser traçada uma linhagem de testemunhas fiéis que testificaram contra a idolatria e tirania de Roma, e que pregavam a salvação por meio da fé em Cristo Jesus sem obras de mérito1. Além de multidões que se alimentavam às escondidas, tanto em conventos quanto em famílias, da simples verdade do evangelho, observamos brevemente alguns dos mais proeminentes que formam um importante elo na grande cadeia de testemunhas, especialmente ligados à história da igreja na Europa.
Os Nestorianos e os Paulicianos
A ascensão dos nestorianos no século V e seu grande zelo missionário já foram mencionados. Em sua chefia havia um bispo, conhecido pelo título de Patriarca da Babilônia. Sua residência era originalmente na Selêucia. Desde a Pérsia, conta-se, eles levaram o evangelho para o Norte, para o Oriente e para o Sul. No século VI eles pregaram o evangelho com grande sucesso aos hunos, aos indianos, aos medos e aos elamitas: na costa de Malabar e nas ilhas do oceano grandes números se converteram. Seguindo o curso do comércio, os missionários tomaram o caminho da Índia à China, e penetraram pelos desertos até sua fronteira setentrional [mais ao norte]. Em 1625 uma pedra foi descoberta, pelos jesuítas, próximo a Singapura, que leva uma longa inscrição, parte em siríaco e parte em chinês, gravando os nomes dos missionários que tinham trabalhado na China, e a história do cristianismo naquele país desde o ano 636 a 781. Mas a propagação do cristianismo, pensa-se, despertou o ciúme do Estado e, após testemunharem o sucesso do evangelho e experimentarem perseguição, eles provavelmente foram exterminados, ou fugiram, por volta do fim do século VIII. Os nestorianos foram patrocinados por alguns dos reis persas, e sob o reinado dos califas eles foram protegidos e prosperaram grandemente. Eles assumiram a designação de cristãos caldeus, ou assírios, e ainda existem sob esse nome.2
As doutrinas, o caráter e a história dos paulicianos têm sido assuntos de grande controvérsia; mas não lhes foi permitido falar por eles mesmos para a posteridade. Seus escritos foram cuidadosamente destruídos pelos católicos, e eles nos são conhecidos apenas através de relatos de inimigos amargos que os rotulam como hereges, e como os ancestrais dos reformadores protestantes. Por outro lado, alguns escritores protestantes aceitam o pedigree, e afirmam que eles foram os mantenedores de um cristianismo puramente bíblico, que pode ter parecido herético pelo papado. Esta última circunstância, pelo que já demonstramos, é facilmente crível. As mais dolorosas corrupções, tanto na doutrina quanto na adoração da igreja católica, tinham sido não apenas admiradas, como forçadas, muito antes do surgimento dos paulicianos. Nem o espírito nem a simplicidade do evangelho permaneceram; portanto, o cristianismo bíblico deve ter parecido aos adoradores de imagens como uma heresia.
Passando por cima de muitos nomes individuais desde a época de Santo Agostinho, que foram testemunhas dignas da verdade, vamos falar diretamente da origem dos paulicianos.
A Origem dos Paulicianos (653 d.C.)
Os gnósticos, que tinham sido tão numerosos e poderosos durante os primeiros dias do cristianismo, eram então um obscuro remanescente, principalmente confinados às aldeias ao longo das margens do Eufrates. Eles tinham sido expulsos pelos todo-poderosos católicos das capitais do Oriente e do Ocidente, e o restante de suas diferentes seitas passaram sob o genérico e odioso nome dos maniqueístas.
Nessa região, na aldeia dos Mananalis, próximo à Samata, viveu por volta do ano 653 um homem chamado Constantino, que é descrito pelos escritores romanos como descendente de uma família maniqueísta. Logo após a conquista dos sarracenos da Síria, um diácono armênio, que retornava do cativeiro entre os sarracenos, tornou-se hóspede de Constantino. Em reconhecimento de sua hospitalidade o diácono presenteou-o com um manuscrito contendo os quatro Evangelhos e as quatorze Epístolas de São Paulo. Este era, de fato, um presente raro, uma vez que as Escrituras já eram escondidas dos leigos. O estudo desses livros sagrados produziu uma revolução completa em seus princípios religiosos, e em todo o curso subsequente de sua vida. Alguns dizem que ele tinha sido treinado no gnosticismo, outros, que ele era um membro da igreja grega estabelecida; mas, seja como possa ter sido, aqueles livros tornaram-se então seu único estudo e a regra de sua fé e prática.
Constantino pensou então em formar uma nova seita, ou melhor, em restaurar o cristianismo apostólico. Ele renunciou e jogou fora seus livros maniqueístas, como dizem seus inimigos; abjurou ao maniqueísmo e tornou uma lei para seus seguidores que não lessem qualquer outro livro além dos Evangelhos e das Epístolas do Novo Testamento. Isto pode ter dado aos seus inimigos o pretexto para acusá-los de rejeitarem o Antigo Testamento e as duas epístolas de São Pedro. Mas é mais que provável que eles não possuíssem essas porções da Palavra de Deus. É de se temer, no entanto, a partir de seu apego e devoção peculiar aos escritos e ao caráter de São Paulo, que outras Escrituras foram negligenciadas.
É geralmente aceito que a palavra pauliciano foi cunhada a partir do nome do grande apóstolo dos gentios. Seus cooperadores, Silvano, Timóteo, Tito e Tíquico eram representados por Constantino e seus discípulos; e suas congregações, como se espalharam por diferentes lugares, eram chamadas segundos os nomes das igrejas apostólicas. É difícil perceber como nesta assim chamada “inocente alegoria” os católicos poderiam ter sido tão gravemente ofendidos com os paulicianos, ou nisto encontrado um pretexto para caçá-los com fogo e espada. E mesmo assim o fizeram, como veremos a seguir. Seu “pecado imperdoável” era sua separação da igreja do Estado, seu testemunho contra a superstição e apostasia, e seu reavivamento de uma memória de um cristianismo primitivo puro.
Silvano em Cibossa
Constantino [de Mananalis], que se denominou Silvano, dirigiu seus primeiros apelos aos habitantes de um lugar chamado Cibossa, na Armênia, a quem ele chamou de macedônios. “Eu sou Silvano”, disse ele, “vós sois macedônios”. Ali ele fixou sua residência e trabalhou com energia incansável por quase trinta anos; por meio dele muitos foram convertidos, tanto da Igreja Católica quanto do zoroastrismo. Com o tempo, tendo a seita se tornado suficientemente considerável para atrair atenção, a questão foi reportada ao imperador e um decreto foi emitido em 684 contra Constantino e as congregações paulicianas. A execução do decreto foi confiada a um oficial da corte imperial chamado Simeão. Ele tinha ordens de executar o mestre e de distribuir seus seguidores entre o clero e em monastérios, com vista à recuperação deles. O governo, sem dúvida, agiu conforme a direção da Igreja [Católica]; como no caso de Acabe, “porque Jezabel, sua mulher, o incitava.” (1 Reis 21:25). Mas o Senhor está acima de tudo, e Ele pode tornar a ira do homem em louvor para Si.
Simeão colocou Constantino — o principal objeto de vingança dos padres — perante um grande número de companheiros, e ordenou-lhes que o apedrejassem. Eles se recusaram e, em vez de obedecer, todos largaram as pedras com as quais tinham se armado, com exceção de um rapaz; e assim Constantino foi morto por uma pedra da mão daquele jovem sem coração — seu próprio filho adotivo Justus. Este ingrato apóstata foi exaltado pelos inimigos dos paulicianos como um outro Davi que, com uma pedra, derrubou um outro Golias — o gigante da heresia. Mas do apedrejamento de Constantino, assim como do apedrejamento de Estêvão, um novo líder se ergueu na pessoa do seu assassino imperial. O que Simeão tinha visto e ouvido causou impressões em sua mente que ele não podia ignorar. Ele começou a conversar com alguns dos sectários, e o resultado foi que ele se tornou um de seus convertidos. Ele retornou à corte imperial, mas após passar três anos em Constantinopla com grande inquietação, ele fugiu, deixando todas as suas propriedades para trás, e assumiu sua residência em Cibossa onde, sob o nome de Tito, tornou-se o sucessor de Constantino Silvano.
Cerca de cinco anos após o martírio de Constantino o mesmo renegado Justus traiu os paulicianos. Ele conhecia, como traidor de outrora, os hábitos e movimentos da comunidade, e também onde ele seria recompensado por sua traição. Ele foi ter com o bispo de Colônia e reportou o reavivamento e disseminação da assim chamada heresia. O bispo comunicou essa informação ao Imperador Justiniano II e, em consequência, Simeão e uma grande quantidade de seus seguidores foram queimados até a morte em uma grande pira funerária. O cruel Justiniano em vão pensou ter extinguido o nome e a memória dos paulicianos em uma única conflagração, mas o sangue dos mártires pareceu apenas ter multiplicado seu número e sua força. Uma sucessão de mestres e congregações surgiram de suas cinzas. A nova seita se espalhou por todas as regiões adjacentes, Ásia Menor, Ponto, as fronteiras da Armênia e a oeste do Eufrates. Eles suportaram, durante muitos reinos sucessivos, com paciência cristã, a ira intolerante dos governadores através da instigação dos padres. Mas o preço pela crueldade, como observaremos, deve, sem dúvida, ser recompensado pela devoção sanguinária de Teodora, que restaurou as imagens na igreja oriental.
Uma Nova Jezabel no Poder (842 d.C.)
Após a morte do imperador Teófilo, Teodora, sua viúva, governou como regente durante o período de minoridade de seu filho. Seu apego dissimulado à idolatria era bem conhecido do sacerdócio, e não muito tempo após a morte de Teófilo ela se dedicou ao completo cumprimento de seu grande objetivo. Quando o caminho ficou limpo, um festival solene foi marcado para a restauração das imagens. “Todo o clero de Constantinopla, e todos os que podiam se reunir dos arredores, se encontraram diante do palácio do arcebispo e marcharam em procissão com cruzes, tochas e incenso à igreja de Santa Sofia. Ali eles se encontraram com a imperatriz e seu pequeno filho Michael. Eles fizeram o circuito da igreja, com suas tochas ardendo, prestando homenagem a cada estátua e pintura, que foram cuidadosamente restauradas, para nunca mais serem apagadas até tempos depois por iconoclastas ainda mais terríveis, os turcos otomanos.”3
Após um restabelecimento tão triunfante das imagens, o partido vitorioso sem dúvida pensou que havia chegado o tempo de propôr e tentar assegurar outro triunfo; eles agora instavam a imperatriz a empreender a total supressão dos paulicianos. Eles tinham pregado contra imagens, relíquias e a madeira podre da cruz. Eles não podiam continuar vivendo, e os católicos atingiram esse objetivo! Um decreto foi emitido sob a regência de Teodora, que decretou que os paulicianos deveriam ser exterminados por fogo e espada, ou trazidos de volta à igreja grega. Mas eles recusaram todas as tentativas que foram feitas para ganhá-los, e assim o feroz demônio da perseguição foi solto entre eles. Seus inquisidores exploraram as cidades e montanhas da Ásia menor e executaram sua comissão da maneira mais cruel possível. Os números da seita, e a severidade da perseguição, podem ser julgados pelas multidões que foram mortas pela espada, decapitadas, afogadas ou consumidas nas chamas. Afirma-se, tanto pelos historiadores civis quanto eclesiásticos, que, em um curto reinado, cem mil paulicianos foram condenados à morte. Houve alguma vez uma filha mais genuína de Jezabel do que esta? Ela nem mesmo tinha um Acabe para fazer este trabalho cruel por ela, mas com suas próprias mãos, por assim dizer — infelizmente, as mãos de uma mulher — por seu próprio decreto, ela assassinou cem mil santos de Deus4, restabeleceu a adoração aos ídolos, e nutriu com favor real os padres idólatras de Roma.
A história da iconoclastia foi notável pela influência feminina. Helena foi a primeira a sugerir e encorajar a veneração por relíquias; Irene foi a restauradora da adoração de imagens quando ameaçada de destruição; e agora Teodora não apenas restabelece a idolatria que seu marido tinha se esforçado para suprimir, como também persegue os verdadeiros adoradores. Certamente a mulher Jezabel — símbolo da igreja dominante na Idade das Trevas — tem seu antítipo nessas três mulheres, especialmente as duas últimas. A semelhança é marcante demais para ser questionada. Mas todo o sistema do catolicismo respira esse terrível espírito, e é caracterizado pelas tenebrosas características do caráter de Jezabel. A palavra do Senhor não pode ser quebrada. “Ninguém fora como Acabe, que se vendera para fazer o que era mau aos olhos do Senhor; porque Jezabel, sua mulher, o incitava”. Este é o tipo (figura). O antítipo é: “Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu.” (1 Reis 21:25, Apocalipse 2:20,21)
A Admiração de Roma pela Conduta de Teodora
Nicolau I, que se tornou papa de Roma em 858, elogiou muitíssimo, por carta, a conduta da supersticiosa e cruel Teodora. Ele admira e aprova especialmente sua implícita obediência à Sé Romana. “Ela resolveu”, diz ele, “trazer os paulicianos à verdadeira fé, ou cortá-los todos pela raiz e pelos ramos. Em conformidade com essa resolução, ela enviou homens nobres e magistrados a diferentes províncias do império; e por eles alguns daqueles infelizes desgraçados foram crucificados, alguns mortos pela espada, e alguns lançados ao mar e afogados”. Nicolau, ao mesmo tempo, observa que os hereges, experimentando nela toda a resolução e vigor de um homem, mal podiam acreditar que ela fosse uma mulher. De fato, o poder cegante de uma idolatria supersticiosa tinha realizado em Teodora (como fez, mais tarde, na rainha da Inglaterra, a “Maria Sangrenta”) a transformação do coração terno e compassivo de uma mulher no de uma tirana impiedosa e sedenta de sangue. Pelas próprias palavras do papa, é perfeitamente evidente que a Sé Romana tinha participação principal na matança dos paulicianos. Depois de dizer a ela que os hereges a temiam, e, ao mesmo tempo admiravam sua resolução e firmeza em manter a pureza da fé católica, o papa acrescenta: “e por que fizeste isso, a não ser porque seguiste as direções da Sé Apostólica?”5
É difícil acreditar que o professo vigário de Cristo e pastor de Suas ovelhas pudesse jamais ter deixado em seus registros tais dizeres. Mas assim ele se permitiu, e assim eles vêm até nós como o verdadeiro testemunho da tirania anticristã de Roma no século IX.
Os Paulicianos de Rebelam Contra o Governo
Do mesmo modo que alguns dos albigenses, hussitas da Boêmia e calvinistas da França, os paulicianos da Armênia e das províncias adjacentes determinaram-se a uma resistência mais decidida aos seus perseguidores. Esta foi a triste falha deles, e o triste fruto de dar ouvidos às sugestões de Satanás. Por quase duzentos anos eles tinham sofrido como cristãos, adornando o evangelho por uma vida de fé e paciência. Até onde podemos julgar, eles parecem ter mantido a verdade através de um longo curso de sofrimento, no nobre, embora passivo, espírito de conformidade a Cristo. Mas a fé e a paciência falharam com o tempo, e eles se rebelaram abertamente contra o governo. Aconteceu assim:
Carbeas, um oficial do alto escalão no serviço imperial, ao ouvir que seu pai tinha sido empalado pelos inquisidores católicos, renunciou a sua lealdade ao império, e com cinco mil companheiros, buscou um refúgio entre os sarracenos. O califa acolheu com prazer os desertores, e deu-lhes permissão para se estabelecerem dentro de seu território. Carbeas construiu e fortificou a cidade de Tefrique, que se tornou a sede dos paulicianos. Eles naturalmente se afluíram para esse novo lar, buscando um refúgio contra as leis imperiais. Eles logo se tornaram uma poderosa comunidade. Sob as ordens de Carbeas, a guerra foi travada contra o império, e mantida com vários êxitos por mais de trinta anos; mas como os detalhes seriam mais deprimentes do que interessantes, preferimos nos abster deles.
Os Paulicianos na Europa
Por volta da metade do século VIII, o imperador Constantino V, também conhecido como Coprônimo, seja como um favor ou como um castigo, transferiu um grande número de paulicianos para a Trácia, um posto avançado do império, e ali eles agiram como uma missão religiosa. Por essa emigração suas doutrinas foram introduzidas e difundidas na Europa. Eles parecem ter trabalhado com grande sucesso entre os búlgaros. Foi de modo a guardar a jovem igreja da Bulgária que Pedro da Sicília, por volta do ano 870, escreveu ao arcebispo dos búlgaros um tratado alertando-o contra a infecção dos paulicianos. Este documento é a principal fonte de informação quanto à seita. No século X o imperador João Tzimisces conduziu uma nova grande migração dos paulicianos aos vales do monte Haemus. A história deles após esse período se passa na Europa. Eles foram favorecidos com uma livre tolerância na terra de seu exílio, o que muito suavizou a condição deles e fortaleceu sua comunidade. A partir desses assentamentos búlgaros o caminho deles se abriu para a Europa Ocidental. Muitos búlgaros nativos se associaram a eles; daí o nome dos búlgaros, de uma forma pejorativa, ter se tornado uma denominação de ódio vinculada aos paulicianos em todas as regiões.
Quanto à história religiosa subsequente desse interessante povo, os historiadores são bastante divididos. Não se sabe deles senão pelos escritos de seus inimigos; portanto, na justiça comum, somos obrigados a suspender nossa fé em suas declarações. Uma coisa, no entanto, é certa: eles protestavam contra a adoração a santos e imagens dos católicos, e contra a legitimidade do sacerdócio pelo qual a idolatria era defendida. Eles também protestavam contra muitas coisas nas doutrinas, na disciplina e na assumida autoridade da igreja de Roma. Os escritores católicos geralmente falam deles como maniqueístas, o tipo mais odioso de hereges. Mas há alguns escritores protestantes, que examinaram com grande cuidado tudo o que pode lançar luz sobre a história deles, que chegaram à conclusão de que eles eram inocentes das heresias que lhes foram imputadas, e afirmam que eles foram as testemunhas fiéis e verdadeiras de Cristo e de Sua verdade durante um período muito obscuro da Idade Média.6
Voltemos agora a nossa história geral.
As Guerras Religiosas de Carlos Magno (por volta de 771–814)
A assim chamada história eclesiástica, desde a época de Pepino, está tão entrelaçada com a história dos reis francos e com as vergonhosas intrigas dos papas que devemos ir mais além, embora brevemente, em traçar o curso dos eventos que tem importante influência no caráter do papado e na história da igreja.
O poder crescente de Carlos Magno, o filho mais novo de Pepino, foi assistido pelos ocupantes da cadeira de São Pedro com o maior interesse possível, e habilmente usado por eles para o cumprimento de seus ambiciosos desígnios. O papa Adriano I e Leão III, ambos homens talentosos, sentaram-se no trono papal durante o longo reinado de Carlos, e foram bem-sucedidos em engrandecer muito, através do que é chamado suas guerras religiosas, a Sé Romana.
Uma disputa entre Desidério, rei dos lombardos, e o papa Adriano, levou a uma guerra com a França que acabou na completa derrota do reino lombardo na Itália. Este foi o resultado do grande esquema do papado, e provocado pela política sem princípios e traiçoeira do pontífice. Carlos era genro de Desidério, mas depois de um ano de casamento ele se divorciou de Hermingard, a filha do lombardo, e imediatamente se casou com Hildegard, uma senhora de uma nobre casa da Suábia. O insultado pai, ao receber de volta sua filha repudiada, naturalmente buscou por reparação por meio do papa, o chefe da igreja, de quem Carlos era um filho tão obediente. Mas embora a igreja, adequando-se a seus próprios propósitos, tivesse afirmado em termos fortes a santidade do vínculo matrimonial, a violação aberta no exemplo de Carlos foi ignorada; o papa se recusou a interferir.
Roma reconhecia o bom serviço do grande Carlos e não podia arriscar seu desagrado. Nem uma palavra foi dita contra a conduta do dissoluto monarca. Desidério, por fim, ressentiu-se pelo amargo insulto de Carlos e pela ímpia conivência de Adriano. Ele apareceu à frente de suas tropas na Itália papal, e sitiou, invadiu e espalhou a devastação por toda a parte, e ameaçou o papa em sua capital.
Adriano Envia Carlos Magno
O papa então enviou mensagens com a maior pressa pedindo a ajuda imediata de Carlos, e ao mesmo tempo diligentemente supervisionava, em pessoa, os preparativos militares para a defesa da cidade e a segurança de seus tesouros. E, de acordo com uma velha estratégia de Roma, [o papa] Adriano enviou três bispos para intimidar o rei e ameaçá-lo de excomunhão se ele ousasse violar a propriedade da igreja. O papa, deste modo, ganhou tempo, e Carlos, com sua usual rapidez, reuniu suas forças, cruzou os Alpes e sitiou Pavia. Durante o cerco, que continuou por vários meses, Carlos fez uma visita ao papa com grande pompa, e foi recebido com toda a honra. Ele foi aclamado pelos nobres, senadores e cidadãos como patrício de Roma e o filho obediente da igreja, que tinha obedecido tão rapidamente a convocação de seu pai espiritual e veio libertá-los dos odiosos e temidos lombardos. Quando as festividades sacras terminaram, Carlos e seus oficiais retornaram ao exército.
Pavia, com o tempo, caiu. Desidério, sucessor do grande e sábio Luitprando, foi destronado, e tomou refúgio em um monastério — o habitual asilo dos reis destronados; seu valente filho Adalgis fugiu para Constantinopla; e assim expirou o reino dos lombardos, os inimigos mortais dos italianos, e o grande obstáculo para a agressividade papal. O caminho estava então limpo para que o conquistador desse ao papa um reino, não apenas no papel, como fez seu pai Pepino, mas em cidades, províncias e rendimentos públicos. E assim ele fez, e assim ratificou o magnânimo presente de seu pai. Como senhor pela conquista, Carlos Magno presenteou aos sucessores de São Pedro, por uma concessão absoluta e perpétua, o reino da Lombardia; e, como dizem alguns, de toda a Itália. Ao mesmo tempo Carlos reivindicou o título real, e exerceu um tipo de soberania sobre toda a Itália e até mesmo sobre a própria Roma. Mas o papa, estando então seguro na posse do território, podia bem dispôr-se a permitir todas as honras reais ao seu grande benfeitor.
A Soberania dos Pontífices Romanos (775 d.C.)
O papa tornou-se então um príncipe secular. O dia a tanto tempo esperado tinha chegado; o sonho afeiçoado de séculos tinha se realizado. Os sucessores de São Pedro são proclamados soberanos pontífices e os senhores da cidade e dos territórios de Roma. O último elo da sombria vassalidade e subserviência ao Império Grego [ou Império Oriental] está quebrado para sempre, e Roma tornou-se novamente a reconhecida capital do Ocidente.
O grande papa Adriano assumiu imediatamente os privilégios do poder e a linguagem de um soberano secular a quem é devida fidelidade. Murmúrios vindos de Ravena e do Oriente foram rapidamente silenciados, e Roma reinou suprema. A linguagem do papa, até mesmo para com Carlos Magno, era a de um igual: “Como os vossos homens”, diz ele, “não estão autorizados a vir a Roma sem vossa permissão e carta especial, do mesmo modo meus homens não estão autorizados a aparecer perante a corte da França sem as mesmas credencias vindas de mim”. Ele reivindicou a mesma fidelidade dos italianos que os súditos de Carlos Magno deviam a ele. “A administração da justiça estava no nome do papa; não apenas os assuntos eclesiásticos e nas rendas das propriedades que formavam parte do patrimônio de São Pedro, como também as receitas civis entraram em seu tesouro…Adriano, com o poder, assumiu a magnificência de um grande potentado…Roma, com o aumento das receitas papais, começou a retomar mais de seu antigo esplendor.”
A Grande Época nos Anais do Papado
Como o império de Carlos Magno possui, de um modo peculiar, conexão com a história da igreja, e forma uma grande época nos anais da Sé Romana, ele exige uma consideração mais completa. O catolicismo romano quase devia tanto ao grande príncipe quanto o islamismo devia ao grande profeta árabe (Maomé) e seus sucessores. “As guerras saxônicas de Carlos Magno”, diz Milman, “que acrescentou quase toda a Germânia (atual Alemanha) aos seus domínios, eram declaradamente guerras religiosas. Se Bonifácio era o ”apóstolo“ cristão, Carlos Magno era o ”apóstolo“ maometano [N. do T.: no sentido de que agia como Maomé na conquista dos povos pela violência] do evangelho. O objetivo declarado de suas invasões era a extinção do paganismo, a sujeição à fé cristã, ou o extermínio. O batismo era o sinal de subjugação e fidelidade, e os saxões o aceitavam ou rejeitavam, de acordo com o estado de submissão ou revolta em que se encontravam. Essas guerras eram inevitáveis; eram nada mais que a continuação da grande luta travada, por séculos, entre os bárbaros do Norte e do Oriente contra os civilizados do Sul e do Ocidente. A diferença é que, agora, a população romana e cristã, revigorada pela grande infusão de sangue teutônico, em vez de esperar pela agressão, tinha se tornado a agressora. A maré de conquista se invertia; os súditos dos reinos ocidentais, do império ocidental, em vez de esperarem para ver suas casas invadidas por hordas de invasores ferozes, agora ousadamente marchavam ao coração do país de seus inimigos, penetravam em suas florestas, cruzavam seus pântanos, e plantavam suas cortes feudais de justiça, suas igrejas e seus monastérios nas regiões mais remotas e selvagens, desde o Elba até as margens do Báltico.”
Os saxões estavam divididos em três tribos principais: os ostefalianos, os vestefalianos e os angarianos. Cada clã, de acordo com o antigo uso teutônico, consistia em nobres, homens livres e escravos; mas, às vezes, a nação inteira se encontrava em uma grande convenção armada. Os saxões desprezavam e detestavam os francos romanizados, e os francos consideravam os saxões bárbaros e pagãos. Durante 33 anos, o poderoso Carlos empenhou-se em subjugar essas hordas selvagens de saxões. “A área do país habitada por essas tribos”, diz Greenwood, “compreendia a totalidade do que é conhecido como o círculo moderno da Vestfália, e a maior porção da Baixa Saxônia, estendida do rio Lippe até o Weser e o Elba; limitada ao norte pelas tribos aparentadas, os jutos, os anglos e os danos; e ao leste de origem eslava, que tinha gradualmente avançado sobre as mais antigas raças teutônicas da Germânia Oriental”. Mas devemos nos limitar principalmente ao aspecto religioso dessas guerras; ainda assim, é interessante, neste momento, estudar esses registros antigos, uma vez que acabamos de testemunhar a conclusão da grande guerra franco prussiana de 1870–71 7 entre os descendentes dos francos e dos germanos da antiguidade.
A Espada de Carlos Magno ou o Batismo
O objetivo professo de Carlos Magno era estabelecer o cristianismo nas partes remotas da Germânia, mas deve-se sempre lembrar que ele usou de meios muito violentos para cumprir seu fim. Milhares foram forçados às águas do batismo para escapar de uma morte cruel. “A espada ou o batismo” eram os termos usados pelo conquistador. Foi promulgada uma lei que estabelecia a pena de morte contra a recusa do batismo. Ele não podia oferecer condições de paz, nem entrar em qualquer tratado, no qual o batismo não fosse a principal condição. A conversão ou o extermínio foi a palavra de ordem dos francos. E, embora a antiga religião pudesse não estar tão arraigada na consciência do saxão, ele não podia ver nada melhor na nova; pois, para sua mente, o batismo estava identificado à escravidão e o cristianismo à submissão a um jugo estrangeiro. Submeter-se ao batismo era renunciar, não apenas à sua antiga religião, mas à sua liberdade pessoal.
Com tais sentimentos anticristãos e desumanos, a guerra seguiu em frente, como já mencionamos, por 33 anos. À frente de seus exércitos superiores, Carlos Magno oprimiu as tribos selvagens, que eram incapazes de confederar-se para sua segurança comum; conta-se que ele nem mesmo encontrou um adversário igual em números, em disciplina ou em armas. Mas, após uma luta de derramamento de sangue incalculável, e de quase sem igual obstinação e duração, os números, a disciplina e o valor dos francos prevaleceu com o tempo sobre os indisciplinados e desconsiderados esforços dos saxões. “O remanescente de trinta campanhas de indistinta matança”, diz Greenwood, “e generalizada expatriação aceitou o batismo e tornou-se permanentemente incorporado ao império dos francos e ao cristianismo. Abadias, monastérios e casas religiosas de todos os tipos se espalharam por toda as partes do território conquistado, e as novas igrejas8 eram supridas por ministros da escola de Bonifácio — uma escola que não admitia qualquer distinção entre a lei de Cristo e a lei de Roma.”
O batismo era a única segurança e garantia de paz que os francos aceitariam pela submissão dos saxões. E assim foi — e quão triste e humilhante é essa relação! — quando a conquista foi concluída, e finda a carnificina, que os padres entraram em campo. O ofício deles era batizar os vencidos. Milhares dos bárbaros foram, assim, forçados, na ponta da espada, ao que os padres chamavam de águas regeneradoras do batismo. Mas, para os saxões, o batismo significava nem mais nem menos do que a renúncia à sua religião e sua liberdade. A consequência foi que, assim que os exércitos de Carlos se retiraram, os infatigáveis saxões voltaram a se erguer, atravessando os imponentes limites do império e devastando tudo por onde passavam. Em sua fúria ardente e amarga vingança eles cortaram cruzes, queimaram “igrejas”, destruíram monastérios, mataram seus prisioneiros, sem respeitar idade nem sexo, até que todo o país pareceu estar envolvido em chamas e inundado de sangue. Dizem que tais revoltas eram muitas vezes provocadas pela linguagem insolente, e ainda mais pelo comportamento ofensivo dos monges missionários, e pela severa avareza com a qual exigiam seus dízimos. Mas tais explosões da parte dos saxões eram seguidas por uma nova invasão e matança implacável pelos francos, até que tribo após tribo cedeu aos braços conquistadores de Carlos Magno. Em uma ocasião, após uma severa revolta, Carlos massacrou, a sangue frio, 4500 guerreiros valentes que tinham se rendido. Esse cruel e covarde abuso de poder deixou uma mancha escura e indelével em sua história, que nenhuma desculpa pode jamais remover. Mesmo o historiador cético alude a ela de forma muito verdadeira e tocante. “Em um dia de igual retribuição”, diz ele, “os filhos de seu irmão Carlomano, o príncipe merovíngio de Aquitânia, e os 4500 saxões que foram decapitados no mesmo local, terão algo a alegar contra a justiça e humanidade de Carlos Magno. Seu tratamento para com os vencidos saxões foi um abuso do direito de conquista”.
A Influência Maligna dos Missionários do Papa
É triste refletir sobre a terrível matança dos saxões, e o batismo forçado do indefeso remanescente; mas nossa tristeza é infinitamente aumentada quando descobrimos que os professos mensageiros da misericórdia foram os grandes impulsionadores dessas longas e exterminadoras guerras. No lugar de serem missionários do evangelho da paz, eles eram, na realidade, os cruéis emissários do papado — do poder das trevas: Carlos Magno era, sem dúvida, em grande parte enganado e instigado pelos padres.
Sob o objetivo declarado de cimentar a união entre a igreja e o Estado, para o benefício secular e espiritual da humanidade, e para a força duradoura do governo imperial, os astutos sacerdotes viram o caminho se abrindo para sua própria grandeza secular e para a mais absoluta soberania de Roma. E assim aconteceu, como toda a história afirma. Eles logo ganharam uma posição de grandeza mundana sobre o povo conquistado e suas terras. Uma mudança completa acontece, precisamente nesse momento, na condição externa do clero, e, de fato, na sociedade em geral. A história antiga desaparece, como nos é contado, na morte de Pepino, e tem início a vida medieval. Uma nova condição de sociedade é inaugurada por seu filho — o último dos reis bárbaros e o primeiro dos monarcas feudais. Mas é na história eclesiástica que estamos interessados, e aqui, novamente, preferimos fornecer alguns extratos do decano Milman — a quem tantas vezes nos referimos — que não pode ser acusado de severidade desnecessária, mas cujo testemunho é da mais alta integridade.
"A subjugação da terra pareceu estar completa antes que Carlos Magno fundasse, sucessivamente, suas grandes colônias religiosas, os oito bispados de Minden, Seligenstadt, Verden, Bremen, Munster, Hildesheim, Osnaburg e Paderborn. Estes, como muitos monastérios ricamente dotados como Hersfuld, tornaram-se os centros separados dos quais o cristianismo e a civilização se espalhou em círculos cada vez maiores. Mas, embora fossem assentamentos militares assim como religiosos, os eclesiásticos eram os únicos estrangeiros. Os mais fiéis e confiáveis chefes saxões, que deram a segurança de aparente sincera conversão ao cristianismo, foram promovidos a condes: assim, a profissão do cristianismo era o único teste de fidelidade…
"Carlos Magno, na história cristã, tem um papel ainda mais importante do que apenas na subjugação da Germânia ao evangelho, por causa de sua completa organização, se não fundação, da alta hierarquia feudal em grande parte da Europa. Por todo o império ocidental, pode-se dizer, foi constitucionalmente estabelecida essa dupla aristocracia, eclesiástica e civil. Em todos os lugares, o alto clero e os nobres, e através das diferentes gradações da sociedade, mesmo os da mesma classe, estavam sujeitos aos mesmos deveres, e eram iguais, em alguns casos de coordenação, em autoridade. Cada distrito tinha seu bispo e seu conde; as dioceses e os condados possuíam, na maioria das vezes, a mesma extensão…
"O próprio Carlos Magno era não menos pródigo (liberal) do que os reis mais fracos no que diz respeito a imunidades e concessões dadas às igrejas e monastérios. Com sua rainha Hildegard, ele doou, à igreja de São Martinho, em Tours, terras na Itália. Suas concessões a São Denis, a Lorch, a Fulda, a Prum, mais particularmente a Hersfuld, e a muitas abadias italianas, aparecem entre os Atos de seu reinado.
"Essas propriedades nem sempre eram obtidas do rei ou dos nobres. Os servos dos pobres eram, muitas vezes, os saqueadores dos pobres. Mesmo sob Carlos Magno há reclamações contra a usurpação de propriedades pelos bispos e abades, assim como contra condes e leigos. Eles obrigavam o homem livre pobre a vender sua propriedade, ou o forçava a servir no exército em permanente dever, para, assim, deixar suas terras sem dono, com todas as chances de que não pudesse retornar, ou entregues à custódia daqueles que permaneceram em casa em silêncio; dessa forma, os sacerdotes aproveitavam cada oportunidade para tomar posse delas. Nenhuma vinha de Nabote escapava da vigilante avareza deles.
“Em seus feudos, o bispo ou abade exercia todos os direitos de um chefe feudal…Assim, a hierarquia, então uma instituição feudal, paralela e coordenada com a aristocracia secular feudal, aspirava desfrutar, e já a algum tempo desfrutava, da dignidade, riqueza e poder dos senhores suseranos. Bispos e abades tinham a independência e os privilégios sobre os feudos inalienáveis; e, ao mesmo tempo, começaram, quer hostilmente contestar, quer arrogantemente recusar, os pagamentos ou reconhecimentos da vassalagem, que muitas vezes pesavam sobre outras terras. Durante o reinado de Carlos Magno essa teoria da imunidade espiritual adormeceu, ou melhor, não tinha ainda tomado vida. No entanto, no conflito com seu filho, Luís, o Piedoso, ela foi corajosamente anunciada e seu crescimento foi rápido. Foi, então, afirmado pela hierarquia, que toda propriedade dada à igreja, aos pobres, aos santos, e ao Próprio Deus — tais eram as frases especiosas — era dada absoluta e irrevogavelmente, sem reservas. O rei podia ter poder sobre os honorários dos cavaleiros; mas sobre a igreja, ele não tinha poder nenhum. Tais reivindicações seriam consideradas ímpias, sacrílegas, e implicavam na perda da vida eterna. O clero e suas propriedades pertenciam a outro reino, a outra comunidade. Eles eram inteira e absolutamente independentes do poder civil.”9
O Sistema Hierárquico Feudal
Por séculos, o clamor papal para cada monarca sucessor foi: “Dê, dê; doe, doe; e o bendito Pedro certamente te enviará vitória sobre teus inimigos, prosperidade neste mundo, e um lugar perto dele mesmo no céu”. Esse clamor foi, em grande medida, respondido no início do século IX. Os extratos acima dão ao leitor alguma ideia dos espólios que o clero recebia das vitórias de Carlos na Alemanha. Foi principalmente a partir desses 33 anos de guerra sanguinolenta que o grande sistema hierárquico feudal surgiu. Inúmeros milhares foram mortos para dar espaço aos bispos e abades — uma aristocracia eclesiástica. Ergueram-se palácios principescos para esses grandes eclesiásticos sobre toda a terra conquistada: mas seus fundamentos foram colocados sobre a crueldade, a injustiça e o sangue.
Embora mais de mil anos terem passado desde que o grande patrono da igreja morreu, os palácios ainda existem e são abundantes por toda a Europa. Mas o coração adoece ao pensar sobre a origem desses assim declarados “palácios da paz”, especialmente se tivermos em mente o verdadeiro caráter do evangelho, e que os ministros de Cristo devem sempre buscar manifestar o espírito do manso e humilde Jesus. As almas dos homens, e não as propriedades, deveriam ser o objetivo. “Não busco o que é vosso, mas sim a vós” (2 Coríntios 12:14), este deveria ser o lema deles; indo adiante, “nada tomando dos gentios” (3 João 1:7). Mas o exemplo de Cristo já tinha sido, há muito tempo, esquecido. A igreja afundou a um nível e um espírito do mundo quando foi unida por Constantino ao Estado. Essa foi sua grande queda, da qual flui sua dolorosa inconsistência. O amor ao mundo, ao poder absoluto, ao domínio universal, tomou, então, posse de todo o seu ser. Enganada por Satanás, em cujo trono (Apocalipse 2) ela se assenta, a iniquidade desavergonhada de seu curso só pode ser explicada por causa de seu poder cegante. Todos os meios, à sua vista, tinham como justificativa seu objetivo de avanço da Sé Romana.
Reflexões sobre o Cuidado do Senhor para com os Seus
O Senhor tinha, sem dúvida, muitos que eram Seus, ocultos aos olhos da história, mesmo nos tempos mais sombrios, como em Tiatira: "Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. Mas o que tendes, retende-o até que eu venha" (Apocalipse 2:24–25). Uma coisa, e apenas uma, deveria ocupar os fiéis depois que a apostasia se estabelecesse — o Salvador exaltado, o Homem na glória. E a todos esses a doce promessa é: “E dar-lhe-ei a estrela da manhã” (Apocalipse 2:28). Mas a igreja meramente professa, como aliada do Estado, foi corrompida até o cerne, e afundou, e cegou-se, e endureceu na mais incansável perversidade, de modo que a concentração de toda a forma de mal podia ser encontrada na cadeira de São Pedro. Mesmo em relação às guerras religiosas, o próprio Carlos Magno parece inocente comparado ao papa Adriano.
Devemos nos lembrar que Carlos era um rei bárbaro, apesar de ser, talvez, o maior da história europeia, com a exceção de Alexandre e César, e assim podemos entender seu objetivo em buscar unir e consolidar um grande império. Mas ele era ignorante e supersticioso quanto às coisas divinas, embora o elemento religioso fosse forte em sua mente. Aproveitando-se disso, o papa agiu e levou-o a crer que uma igreja forte e rica faria um Estado forte e rico, e que para que agradasse aos céus e ganhasse a vida eterna, a harmoniosa união da igreja com o Estado deveria ser a base de todos os seus esquemas governamentais. Ele, pessoalmente, amava Adriano, prontamente obedecia ao seu chamado, cedia a seus conselhos, e chorou quando ouviu de sua morte, que aconteceu em 26 de dezembro de 795, após o incomum longo pontificado de mais de 23 anos. Ele podia, às vezes, enxergar o verdadeiro objetivo do papa sob seus grandes artifícios, mas, convicto de seu próprio poder autossuficiente, ele conseguia permitir que tais coisas passassem sem aqueles sentimentos de desconfiança e ciúme que teriam se engendrado em uma mente mais fraca. Não dado a mudanças, ele fez um bom amigo.
A Falsificação Papal
Mas a bondade de Carlos Magno apenas excitou a avareza e inveja dos gananciosos padres. Não contentes com suas propriedades e dízimos, eles aspiravam por uma posição muito superior à dos senhores leigos, e até mesmo superior à do próprio monarca. Estimulados por sucessos passados, eles então tentaram, por uma ousada falsificação, alcançar o objetivo de sua ambição secular. Um título de propriedade de poder quase imperial é então, pela primeira vez, após um período de 450 anos, trazido à luz. Por esse ato original de doação foi descoberto que tudo o que Pepino ou Carlos Magno tinham conferido à igreja de Roma não passava de uma parte da doação real para a cadeira de São Pedro feita pelo “piedoso imperador Constantino”.
Como nosso principal objetivo através desse período da história da igreja é apresentar o verdadeiro caráter do sistema papal, os meios pelos quais ele alcançou sua incrível influência e poder, e os efeitos secularizantes da aliança da igreja com o Estado, copiamos, de Greenwood, a própria carta do papa. O leitor, sem dúvida, ficará surpreso em ver que qualquer homem com a menor pretensão possível de respeitabilidade — ainda mais o “chefe da igreja” — pudesse jamais ter fabricado tal documento, e isso somente para ganhar mais território e poder. Mas devemos nos lembrar que Tiatira era caracterizada pelas “profundezas de Satanás” (Apocalipse 2:24), e assim tem sido o papado desde seu primeiro fôlego, e assim deve ser até que dê o seu último suspiro. Apocalipse 17 e 18 descrevem seu caráter e seu fim.
“Considerando”, diz o papa Adriano, “que nos dias do bendito pontífice Silvestre, aquele tão piedoso imperador [Constantino], por sua doação, exaltou e ampliou a santa igreja católica e apostólica de Roma, dando a ela seu supremo poder sobre toda a região do Ocidente, assim agora vos suplicamos que, neste nosso mesmo feliz dia, a mesma santa igreja possa brotar e exultar, e ser cada vez mais e mais exaltada, de modo que todos os povos que dela ouvirem exclamem: ’Deus salve o rei, e nos ouça no dia em que te invocarmos!’. Pois eis que naqueles dias ergueu-se Constantino, o imperador cristão, por quem Deus concedeu todas as coisas a Sua santíssima igreja, a igreja do bendito Pedro, príncipe dos apóstolos. Tudo isso, e muitos outros territórios que imperadores, patrícios e outras pessoas tementes a Deus deram ao bendito Pedro e à santa igreja de Deus apostólica de Roma, para o benefício de suas almas e para o perdão de seus pecados, nas regiões da Toscana, Espoleto, Benevento, Córsega e Savona — territórios que foram tomados e mantidos pelas ímpias nações dos lombardos — que tudo isso nos seja restaurado nestes nossos dias, de acordo com o teor de tuas várias escrituras de doação depositadas em nossos arquivos, em Latrão. Com este fim, ordenamos a nossos enviados para que te mostrem tais escrituras, para tua satisfação, e em virtude delas, agora te rogamos que ordenes a restituição ininterrupta desse patrimônio de São Pedro que está em tuas mãos; que para tua conformidade nisto com a santa igreja de Deus, possa ser colocada em plena posse e gozo de seu inteiro direito; de modo que o próprio príncipe dos apóstolos possa interceder perante o trono do Todo-Poderoso por uma longa vida para ti, e prosperidade em todas as tuas obras.”
A Ignorância e Credulidade da Época
Tão profunda era a ignorância e credulidade daqueles tempos que as mais absurdas fábulas eram recebidas com grande reverência por todas as classes. Os astutos padres sabiam como vestir suas fraudes religiosas com a mais especiosa piedade, e como cegar tanto o rei como o povo. De acordo com a lenda, Constantino foi curado da lepra pelo papa Silvestre; e assim, o imperador, repleto de gratidão, renunciou, em favor do papa, a livre e perpétua soberania de Roma, da Itália, e das províncias do Ocidente; e resolver fundar uma nova capital para si mesmo no Oriente [Constantinopla].
O objetivo de Adriano em forjar tal escritura, e em escrever tal carta, foi, sem dúvida, influenciar Carlos Magno para que imitasse a alegada liberalidade de seu grande predecessor. Se ele meramente desse ao papa a posse da dita doação de Constantino, ele estaria apenas agindo como o executor da escritura; se ele aspirasse ser um benfeitor espontâneo da igreja, ele deveria ir além dos limites da escritura de doação original. Mas ainda não sondamos as profundezas dessa falsificação. Ela serviu para provar que: (1) os imperadores gregos, por todos esses séculos, eram culpados de usurpação e de roubar o patrimônio de São Pedro; (2) que era justificável que os papas se apropriassem de seu território e se rebelassem contra a autoridade imperial; (3) que as doações de Pepino e Carlos Magno eram nada mais que a restituição de uma pequena porção dos justos e legítimos domínios originalmente concedidos à cadeira de São Pedro; e (4) que ele, Carlos Magno, deveria considerar-se como devedor de Deus e de Sua igreja enquanto um único item dessa dívida inalienável permanecesse sem ser paga.
Tais eram alguns dos convenientes efeitos do documento para os propósitos de Adriano na época; mas, embora possa ter sido produtivo de grandes vantagens ao papado, tanto então como depois, a falsificação há muito foi exposta. Com a restauração das cartas e da liberdade, a escritura fictícia foi condenada, assim como seus Falsos Decretos — a mais audaciosa e elaborada de todas as fraudes religiosas. Falando nos Decretos, Milman observa: “Eles são então abandonados por todos; nenhuma voz é erguida em seu favor; o máximo que é feito por aqueles que não podem suprimir todos os lamentos por sua exposição é aliviar a culpa do falsificador, questionar ou enfraquecer a influência que eles tiveram em seus próprios dias e por toda a história posterior do cristianismo.”10
Os Fundamentos e o Edifício do Papado
Tais, infelizmente, foram os fundamentos do grande edifício papal. E não estamos errados em sofrer vendo eles serem estabelecidos. Se fôssemos caracterizar as pedras de fundação separadamente, poderíamos nos referir a elas como as mais extravagantes pretensões, a mais insultante arrogância, as mais descaradas falsificações, o mais abertamente confessado — e até mesmo desafiador da morte — amor à idolatria, a mais inescrupulosa apropriação de território roubado, o mais implacável espírito de perseguição, e, o que pode ser dito como a pedra (assim como a fundação) mais elevada: o mais desordenado amor pela soberania secular. Mas se olharmos dentro da casa, o que encontramos ali? É cheia de blasfêmias, os piores tipos de corrupções, e concentração de todas as atrações para a carne (Apocalipse 18:12,13). As próprias essências do cristianismo — tais como o sacrifício, o ministério e o sacerdócio — ou foram corrompidas ou rejeitadas. A obra consumada de Cristo foi substituída pela missa; o ministério do Espírito de Deus pelo ensino dogmático da igreja; e o comum sacerdócio de todos os crentes, e sim, até mesmo o sacerdócio do Próprio Cristo, foi substituído pelo grande sistema eclesiástico do sacerdócio, ou melhor, pelo poder sacerdotal.
A Ceia do Senhor foi gradualmente modificada, da simples lembrança de Seu amor e anúncio de Sua morte para a ideia de um sacrifício. Muitas superstições foram praticadas com o pão consagrado, ou melhor, as hóstias11 . Supunha-se que esse “sacrifício” servia tanto para os vivos quanto para os mortos; daí a prática de dar a hóstia aos mortos e enterrá-la com eles. A destrutiva doutrina do purgatório, que tinha sido sancionada por Gregório, o Grande, então se espalhou por toda a parte. Parece ter criado raízes especialmente na igreja inglesa antes do século IX. Mas o engano é manifesto, pois não há purgatório senão o sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus; como disse o apóstolo João: “O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado” (1 João 1:7). Graças a Deus, não há limite para o poder purificador 12 do sangue de Jesus, Seu Filho. Todos os que têm fé nesse sangue são mais alvos que a neve — perfeitamente preparados para a presença de Deus. Mas a doutrina do purgatório atinge a própria raiz dessa verdade fundamental, e tornou-se um poderoso instrumento nas mãos dos padres para extorquir dinheiro dos moribundos, e para assegurar grandes legados à igreja; mas quase tudo era, então, feito em subordinação a esses objetivos básicos. A verdade de Deus, a obra de Cristo, o caráter da igreja, as almas e corpos dos homens, foi tudo prontamente sacrificado para o engrandecimento da Sé de Roma, e para o engrandecimento do clero em subordinação ao sistema papal.
As vidas ímpias daqueles a quem foi confiado o governo da igreja e o cuidado pelas almas são também questões de amarga queixa de todos os historiadores honestos, tanto daqueles tempos como dos atuais. Mas aqui pode ser interessante introduzir um historiador que é bom em relatos — Mosheim — como uma testemunha e confirmação do que temos dito sobre esse período.
O Resumo de Mosheim
"No Oriente, desígnios sinistros, rancores, contendas e conflitos eram, em todos os lugares, predominantes. Em Constantinopla, ou Nova Roma, eram elevados à cadeira patriarcal aqueles que eram favoráveis à corte; e ao perderem esse favor, um decreto do imperador tirou-lhes de suas posições elevadas. No Ocidente, os bispos rodeavam as cortes dos príncipes, e se entregavam a toda espécie de voluptuosidade: enquanto o clero inferior e os monges eram sensuais e, pelos vícios mais grosseiros, corrompiam o povo a quem se destinavam a reformar. A ignorância do clero, em muitos lugares, era tão grande que poucos deles podiam ler ou escrever. Assim, sempre que uma carta devia ser escrita, or qualquer coisa de importância tivesse de ser firmada por escrito, recorria-se, geralmente, a algum indivíduo cuja fama lhe investia com uma certa destreza em tais assuntos…
"Os bispos e os chefes de monastérios detinham muitos bens imobiliários ou propriedade fundiária pela posse feudal; pelo que, quando uma guerra irrompia, eles eram convocados pessoalmente para o acampamento militar, atendidos por um número de soldados que eram obrigados a se apresentarem aos seus soberanos. Reis e príncipes, além de poderem recompensar seus servos e soldados por seus serviços, muitas vezes se apoderavam de propriedade consagrada, dando-as a seus dependentes; em consequência, os padres e monges, antes apoiados por eles, buscavam alívio para suas necessidades de cometer qualquer tipo de crimes e embustes inimagináveis.
"Poucos daqueles que foram elevados, nessa época, às mais altas posições na igreja, podem ser elogiados por sua sabedoria, erudição, virtude e outros dons adequados a um bispo. A maior parte deles, por seus numerosos vícios, e todos eles, por sua arrogância e cobiça de poder, ocasionaram desgraças às suas próprias memórias. Entre Leão IV, que morreu em 855 d.C., e Bento III, uma mulher que escondeu seu sexo e assumiu o nome de João, conta-se, abriu seu caminho ao trono pontifício por sua própria esperteza e engenhosidade, e governou a igreja por um tempo. Ela é comumente chamada de Papisa Joana. Durante os cinco séculos subsequentes as testemunhas desse evento extraordinário são inúmeras, mas nenhuma, antes da Reforma de Lutero, considerou isso como algo inacreditável ou vergonhoso para a igreja.
"Todos concordam que nesses dias sombrios o estado do cristianismo era, em todos os lugares, muito deplorável; não apenas pela incrível ignorância, a mãe da superstição e degradação moral, como também por outras causas…A ordem sagrada, tanto no Oriente quanto no Ocidente, era composta principalmente por homens analfabetos, estúpidos, ignorantes de tudo concernente à religião…O que os pontífices gregos eram é demonstrado pelo único exemplo de Teofilato que, como testificam historiadores confiáveis, fazia tráfico de tudo o que era sacro, e não ligava para nada que não fosse seus cachorros e cavalos. Mas, embora os patriarcas gregos fossem homens muito indignos, ainda assim possuíam mais dignidade e virtude do que os pontífices romanos. Um fato reconhecido por todos os melhores escritores, sem exceção até mesmo daqueles que advogam a autoridade papal, é que a história dos bispos romanos nesse século é uma história, não de homens, mas de monstros, uma história das mais atrozes vilanias e crimes.
“A essência da religião foi pensada, tanto pelos gregos como pelos latinos, de modo a consistir na adoração de imagens, em honrar os santos que partiram, em buscar por e preservar relíquias e em enriquecer padres e monges. Dificilmente um indivíduo se aventurava a se aproximar de Deus antes do assunto de interesse ter sido devidamente buscado por meio de imagens e santos. Todo o mundo estava insanamente ocupado em juntar relíquias e procurá-las.”13
Nada mais, pensamos, precisa ser dito, no momento, quanto à natureza — raiz e ramos — do sistema papal. Pela boca de pelo menos três testemunhas competentes, tudo o que foi dito de Roma, desde o início do período de Tiatira, foi confirmado. E não foi dito nem metade, especialmente sobre o assunto da imoralidade. Não poderíamos transferir para nossas páginas a devassidão dos padres e monges. Alguns pensam que o papado caiu no ponto mais profundo de degradação nos séculos IX e X. Por muitos anos a mitra papal foi usada livremente pela infame Teodora e suas duas filhas, Marózia e Teodora. Tal era seu poder e sua influência maligna, por meio de suas vidas licenciosas, que colocavam na cadeira de São Pedro quem elas queriam — homens ímpios como elas próprias. Nossas páginas seriam contaminadas por um relato de suas abertas e descaradas imoralidades. Tal foi a sucessão papal. Certamente Jezabel foi realmente representada por essas mulheres, e na influência que obtiveram sobre os papas e sobre a cidade de Roma. Mas, infelizmente, Jezabel, com todas as suas associações, corrupções, tiranias, idolatrias e usos da espada civil, foi muito fielmente representada pelo papado desde sua própria fundação.
Veja Hora Apocalyptica, de E. B. Elliot, vol. 2, p. 219.↩
Veja Crenças do Mundo (Faiths of the World), vol. 2, p. 527; e J.C. Robertson, vol. 2, p. 163.↩
Cristianismo Latino, vol. 2, p. 202.↩
Não pretendemos afirmar que todos os que foram mortos por Teodora eram cristãos verdadeiros. Não podemos julgar o coração; mas eles professavam ser e voluntariamente morreram como mártires.↩
Milner, vol. 2, p. 498↩
Para detalhes e uma pesquisa mais cuidadosa, veja Hora Apocalyptica, vol. 2, 249–344, 5ª edição.↩
N. do T., este livro foi escrito no século XIX↩
N. do T.: Aqui no sentido de edifícios religiosos, e não no sentido bíblico do corpo de Cristo ou de uma assembleia reunida somente ao nome de Cristo.↩
Cristianismo Latino, vol. 2, p. 286↩
Milman, vol. 2, p. 375; Greenwood, livro 6, capítulo 3, p. 82.↩
N. do T.: hóstia significa “vítima expiatória”, e traz a ideia de que Cristo é sacrificado novamente em cada missa, anulando a consumada obra expiatória de Cristo, “feita uma vez” (Hebreus 10:10).↩
N. do T.: “purgatório” significa “purificador”↩
História, de Mosheim, vol. 2, p. 184 272.↩
Europa (814 d.C.—1000 d.C.)
A Propagação do Cristianismo (Século IX)
É realmente um grande alívio para a mente, tanto do escritor quanto do leitor, afastar-se das regiões sombrias e poluídas de Roma, e traçar, por um momento, a linha prateada da graça salvadora de Deus na disseminação do evangelho e na devoção de muitos de Seus servos. Ao mesmo tempo, não podemos esperar muito de Cristo, ou do que é chamado de um evangelho puro, no testemunho dos missionários nesse período. O estado da Europa em geral no século IX, comparado ao século XIX 1, deve ser considerado se quisermos que nossos corações se elevem a Deus em gratidão pelo dia das coisas pequenas.
A preferência dada aos escritos humanos sobre as Escrituras era, então, um hábito, pelo menos onde a influência de Roma prevalecia. Os paulicianos, provavelmente, e outros que estavam separados da comunhão de Roma, mantinham a autoridade da Palavra de Deus. Mas os missionários romanos eram instruídos e obrigados a cumprir as decisões dos pais [Apostólicos]. Apelava-se constantemente aos cânones dos concílios e aos escritos dos grandes doutores, de modo que o volume sagrado (as Escrituras) fosse completamente esquecido. Muito antes desse período, a Palavra de Deus já vinha sendo tratada como obscura, confusa e inadequada para a leitura geral. E assim tem sido considerada pelos católicos desde aqueles dias até hoje. Ainda assim, Deus estava, e está, acima de tudo, subjugando tudo isso para Sua própria glória, para a disseminação do cristianismo, e para a salvação dos pecadores. “Todo o que o Pai me dá”, disse Jesus, “virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”, não importa o país, o período, a educação, ou a condição. (João 6:37)
O Despertar da Educação
Embora a ambição sanguinária e a vida dissoluta de Carlos Magno nos impeçam de pensar que ele era possuidor de qualquer princípio cristão, no entanto, é justo reconhecermos que ele foi usado por Deus para o avanço da educação em casa, e para a disseminação do cristianismo em outros países. Escolas foram erguidas, universidades foram fundadas, homens eruditos foram procurados na Itália, Inglaterra e Irlanda, visando elevar seus súditos a um nível moral, religioso e intelectual mais elevado. Próximo ao fim de seu longo reinado, ele estava cercado, em sua residência real em Aix-la-Chapelle, por homens letrados de todas as nações. Os estudiosos, gramáticos e filósofos da época eram recebidos no grande Sala de Audiência. Mas o principal entre esses era o monge anglo-saxão Alcuíno, um nativo da Nortúmbria, e tutor da família imperial.
Alcuíno foi o mais importante, tanto por sua erudição quanto pela extensão de seus trabalhos como um mestre entre os francos. Mas o que é ainda mais importante, ele parece ter tido alguns pensamentos corretos sobre o cristianismo. Ele frequentemente protestava com o imperador contra a imposição dos dízimos aos saxões recém-convertidos, e contra a administração compulsória e indiscriminada do batismo. “A instrução”, diz ele, “sobre os grandes pontos da doutrina e prática cristã deve ser primeiramente dada, e então devem seguir-se os sacramentos. O batismo pode ser forçado aos homens, mas não a fé. O batismo recebido sem fé ou entendimento por uma pessoa capaz de raciocinar não passa de um lavagem do corpo sem proveito algum.”2
Que refrigério para o espírito, e quão verdadeiramente gratos estamos em encontrar tais Atos simples e honestos do grande imperador. Isto nos mostra que o Senhor tinha Suas testemunhas em todos os tempos e em todos os lugares. Tenhamos esperança de que ele possa ter sido usado pelo Senhor para a disseminação da verdade e para a benção de almas naqueles círculos superiores.
O fim do grande Carlos se aproximava. Embora ele tivesse se cercado com literatura, música e tudo o que pudesse agradar e gratificar todos os seus gostos e paixões; e embora — dizem — suas antecâmaras estivessem cheias com os monarcas caídos de territórios conquistados, aguardando para suplicar seu favor, ou buscando restauração de seus legítimos domínios; apesar de tudo isso, ele teve de ceder ao golpe do qual ninguém pode desviar. Ele morreu em 28 de janeiro de 814, na idade avançada de 72 anos, e após um longo reinado de 43 anos. Ele nomeou seu filho, Luís, como seu sucessor.
Luís, o Piedoso
Não há dúvida de que Luís, apelidado de Piedoso, foi um cristão sincero e humilde. Mas nunca houve um homem em uma posição tão falsa como o manso e gentil Luís quando o império caiu em suas mãos. Ele viveu até o ano 840. Mas sua vida é uma das mais tocantes, trágicas e lamentáveis nos anais dos reis. Houve algo parecido com uma rebelião universal quando os princípios de seu governo se tornaram conhecidos. Ele era gentil e escrupuloso demais para seus soldados; piedoso demais para seu clero. Os bispos foram impedidos de usar a espada e armas, ou de andarem com esporas brilhantes em seus calcanhares. Os monges e freiras encontraram nele um segundo São Bento. A permissividade da corte de seu pai rapidamente desapareceu dos recintos sagrados de seu palácio; mas ele pegava muito leve na disciplina de seus filhos. Tal piedade verdadeira, como pode-se facilmente imaginar, acabou sendo considerada ridícula, e não poderia ser suportada por muito tempo. Ele foi abandonado por seus soldados, cujas riquezas deviam aos inimigos saqueados; seus filhos, Pepino, Luís e Lotário ficaram, mais de uma vez, contra ele. O clero, que deveria estar cercando o monarca caído com sua simpatia no dia da adversidade, apenas tomou ocasião para mostrar seu poder degradando-o às profundezas de um claustro; e, para dar uma aparência justa à injustiça deles, ele foi forçado pelos padres a confessar pecados dos quais ele era inteiramente inocente. Eles, juntamente ao seu filho rebelde, Lotário, um homem cruel, que temia sancionar a execução de seu pai, determinaram-se a incapacitar o rei por meio da degradação civil e eclesiástica para o exercício de sua autoridade real. Ele foi obrigado a fazer penitência pública pelos supostos crimes, e foi forçado a deitar sua armadura real e seu vestuário imperial no altar de São Sebastião, e a vestir um manto escuro de luto.3
Mas o orgulho de seus nobres foi insultado por essa exibição da presunção eclesiástica, e a nação chorou pelo destino do bom e gentil imperador. Uma reação foi inevitável. Indignados pelo seu tratamento, o povo exigiu sua restauração. Ele foi tirado do monastério, re-vestido e restaurado, mas apenas para experimentar uma humilhação ainda mais profunda. Ele foi, com o tempo, resgatado, pela mão da misericórdia divina, da conduta estranha de seus filhos e da impiedosa perseguição do clero, que se importava apenas em exibir e estabelecer seu próprio poder. Pressionando um crucifixo sobre seu peito, seus olhos se ergueram para o céu, e respirando perdão ao seu filho Luís — que estava, então, contra ele — ele partiu desta vida para estar com Cristo, o que é muito melhor (Filipenses 1:23).
A Conversão das Nações do Norte
A disseminação do evangelho em direção às extremidades ao norte da Europa, durante os séculos IX e X, tem sido tão detalhada nas histórias gerais que faremos pouco mais do que nomear os principais lugares e os principais atores em conexão com a boa obra. Mas nos regozijamos em traçar os passos daqueles missionários abnegados, no próprio coração do reino [ou trono] de Satanás, onde por séculos ele já tinha reinado imperturbável. Já vimos que a espada de Carlos Magno tinha aberto o caminho para os frísios, os saxões, os hunos, e outras tribos.
Na primeira parte do reinado de seu filho Luís, o evangelho foi introduzido entre os dinamarqueses e suecos. Disputas quanto ao trono da Dinamarca entre Haroldo e Godofredo levaram Haroldo a buscar a proteção de Luís. O piedoso imperador pensou que isso poderia ser uma oportunidade conveniente para a introduzir o cristianismo entre os dinamarqueses. Ele, portanto, prometeu ajuda a Haroldo na condição de que ele próprio abraçasse o cristianismo e admitisse pregadores do evangelho em seu país. O rei aceitou os termos e foi batizado em Mentz, no ano 826 d.C., junto a sua rainha e uma numerosa comitiva de súditos. Luís apadrinhou Haroldo, a imperatriz apadrinhou sua rainha, e Lotário o seu filho; e padrinhos de classes adequados foram encontrados para os membros de sua comitiva. Assim cristianizados, como pensava-se naqueles dias, ele voltou para casa, levando consigo dois mestres do cristianismo. E, embora Haroldo não tenha conseguido recuperar seu reino, Luís designou-lhe um território na Frísia.
Ansgarius e Aubert, os dois monges franceses que o acompanharam, trabalharam com grande zelo e sucesso; mas Aubert, um monge de nobre nascimento, morreu dois anos depois entre os trabalhos de missionário.
O infatigável Ansgarius, na morte de seu companheiro, foi para a Suécia. Ele foi igualmente feliz e bem-sucedido em sua obra lá. Em 831, Luís recompensou seus grandes labores tornando-o arcebispo de Hamburgo e de todo o norte. Ele frequentemente encontrou grande oposição, mas comumente desarmava seus perseguidores pela bondade de suas intenções e pela retidão de sua conduta. Ele viveu até o ano 865, e trabalhou principalmente entre os dinamarqueses, os cimbrianos e os suecos.
Os Eslavônios Recebem o Evangelho
Por volta desse tempo, alguns esforços foram feitos para a conversão dos russos, húngaros, etc., mas a obra do evangelho parece ter feito pouco progresso nessas regiões até a conquista da Boêmia por Oto, no ano 950, ou talvez até o casamento de Vladimir, príncipe dos russos, com Ana, irmã de Basílio, o imperador grego. Ele abraçou a fé de sua rainha, viveu até uma idade bem avançada, e foi seguido em sua fé pelos seus súditos. A conversão do Duque da Polônia é também atribuída à influência de uma rainha cristã. Naqueles dias a crença do príncipe se tornava a regra de seu povo, tanto na fé como na prática, e a fé da rainha, geralmente falando, tornava-se a regra do rei. Daí a influência da esposa para o bem ou para o mal. Isto podemos já ter notado, especialmente nos dias de Clotilda e Clóvis. “Há uma estranha uniformidade”, diz Milman, “nos instrumentos usados na conversão dos súditos bárbaros. Uma mulher de classe e influência, um monge zeloso, alguma terrível calamidade nacional; logo que esses três coincidem, então a terra pagã abre-se ao cristianismo.”
Bulgária. A introdução do cristianismo entres os búlgaros foi referenciada em nossas notas sobre os paulicianos. Eles eram um povo bárbaro e selvagem. Depois dos hunos, os búlgaros eram os mais odiosos e mais terríveis para os europeus invadidos. A irmã de Bóris, seu rei, tendo sido levada cativa pelos gregos em sua infância, tinha sido educada em Constantinopla na fé cristã. Após sua redenção e retorno ao lar, ela se sentiu muito incomodada pelos hábitos idólatras de seu irmão e de seu povo. Ela parece ter sido uma cristã fervorosa, mas todos os seus apelos em favor do cristianismo foram pouco atendidos, até que uma fome e uma praga devastaram a Bulgária. O rei foi finalmente persuadido a orar ao Deus dos cristãos. O Senhor, em grande misericórdia, fez cessar a praga. Bóris reconheceu a bondade e poder do Deus cristão e concordou que aos missionários fossem permitido pregar o evangelho ao seu povo.
Metódio e Cirilo, dois monges gregos, distintos por seu zelo e erudição, instruíram os búlgaros nas verdades e bênçãos do evangelho de Cristo. O rei foi batizado, e seu povo gradualmente seguiu seu exemplo. Conta-se que 106 perguntas foram enviadas pelo rei ao papa Nicolau I, abrangendo cada ponto da disciplina eclesiástica, da observância cerimonial e dos costumes. As respostas, conta-se, foram sábias e discretas, e adequadas para mitigar a ferocidade de uma nação selvagem.
A partir da Bulgária os zelosos missionários visitaram muitas das tribos eslavônias, e penetraram em regiões de genuíno barbarismo. O dialeto deles ainda não tinha escrita. Mas esses homens devotos dominaram a língua do país e pregaram o evangelho ao povo em sua língua nativa. Isso era algo completamente novo naqueles dias, mas o cristianismo celestial traz em sua comitiva muitos dons preciosos. A prática comum da época era pregar e ensinar nas línguas eclesiásticas — o grego e o latim; de fato, reclamações foram feitas ao papa sobre a novidade da adoração em uma língua bárbara, mas os escrúpulos do pontífice foram superados pelos argumentos dos missionários, embora a controvérsia tenha sido renovada em dias póstumos, uma vez que alguns tolamente pensaram que seria uma profanação que os serviços da igreja fossem celebrados em uma língua bárbara. Conta-se que Cirilo inventou um alfabeto, ensinou o povo rude a usar as letras, e traduziu a liturgia e certos livros da Bíblia para o dialeto dos morávios. Quem pode dizer que efeito a obra de Cirilo pôde ter até o presente dia? O rei da Morávia foi batizado e, como de costume naqueles tempos, seus súditos seguiram seu exemplo. A província da Dalmácia, e muitas outras, até então em densas trevas, receberam o evangelho durante os séculos IX e X!
O Fluxo do Rio da Vida
Como é bom o Senhor, o grande Cabeça [Chefe] da igreja, que envia a muitas terras distantes as águas vivas do santuário, quando Roma, o centro da Cristandade, estava estagnada e corrompida. Nessa mesma época, Barônio, o famoso analista da igreja romana, e cuja parcialidade quanto à Sé Romana é notória, clama: “Quão deformada e assustadora era a face da igreja de Roma! A santa Sé caiu sob a tirania de duas mulheres relaxadas e desregradas, que colocavam e tiravam bispos ao seu bel-prazer, e (o que tremo ao pensar e falar) colocaram seus galantes na cadeira de São Pedro”, etc. Referindo-se ao mesmo período, Arnoldo, bispo de Orleans, exclama: “Ó miserável Roma! Tu que antigamente apresentavas tantas grandes e gloriosas luminárias aos nossos ancestrais, em que prodigiosa escuridão não caíste, o que te tornará infame a todos os séculos posteriores.”4
Enquanto tal era o estado de Roma, a capital da corrupta Jezabel, o fluxo vital de vida eterna do exaltado Salvador fluía livremente nas extremidades do império. Muitas nações, tribos e línguas tinham recebido o evangelho com as muitas bênçãos que ele lhes trazia. Sem dúvida, ele estava saturado com muitas superstições; mas a Palavra de Deus, até então, e o nome de Jesus, tinham sido introduzidos entre eles; e o Espírito de Deus pode obrar maravilhas com esse tão bendito nome e com essa tão bendita Palavra. O Salvador era pregado; o amor de Deus e a obra de Cristo parecem ter sido ensinados com uma unção divina carregada de convicção aos rudes bárbaros. Era a obra do próprio Deus e o cumprimento de Seus próprios propósitos. Em tal caso, não diria Paulo: “nisto me regozijo, sim, e me regozijarei”? (Filipenses 1:18)
Inglaterra, Escócia e Irlanda
Antes de encerrarmos nosso breve relato sobre as ações do Senhor nessa época, tomemos nota de alguns nomes que indicam o estado das coisas na Grã-Bretanha.
Da glória do reinado de Alfredo é desnecessário dizer muito. Para alguns historiadores ele chega à concepção de um soberano perfeito. Seja como for, podemos dizer que ele foi um verdadeiro rei cristão, e foi feito uma bênção tanto para a igreja quanto para o mundo. Sua bem-sucedida guerra contra os dinamarqueses; seu resgate da Inglaterra de um retorno à barbárie; seu encorajamento à educação e aos homens eruditos; seus próprios abundantes labores; sua fé e devoção cristã; tais coisas são bem conhecidas a todos familiarizados com a história da Inglaterra. Ele sucedeu seu pai em 871 com 21 anos de idade, e reinou por 30 anos. Assim o século IX, que se abriu com os grandes dias de Carlos Magno, encerrou com os ainda mais gloriosos dias de Alfredo, provavelmente o nome mais honrável na história medieval.
Clemente, um piedoso eclesiástico da igreja escocesa, apareceu no centro da Europa por volta da metade do século VIII como um pregador das doutrinas evangélicas5. A história fala dele como um defensor ousado e destemido da autoridade da Palavra de Deus, em oposição a Bonifácio, o paladino da tradição e das decisões dos concílios. Luz pode ser lançada sobre a condição da Cristandade e da história da igreja ao vermos esses dois missionários como representantes de dois sistemas: a grande organização humana de Roma; e o remanescente do cristianismo bíblico da Escócia.
Alarmado pela coragem de Clemente, Bonifácio, então arcebispo das igrejas germânicas, comprometeu-se a opor-se a ele. Ele confrontou o escocês com as leis da igreja romana, com as decisões dos vários concílios, e com os escritos dos mais ilustres pais da igreja latina. Clemente replicou que nenhuma lei da igreja, nenhuma decisão de concílios, ou escritos dos "pais, que fossem contrários às Sagradas Escrituras, tinham qualquer autoridade sobre os cristãos. Bonifácio apelou para a invencível unidade da igreja católica com seu papa, bispos, padres, etc., mas seu oponente sustentou que somente onde o Espírito Santo habita pode ser encontrada a esposa de Jesus Cristo.
Bonifácio ficou frustrado. Meios justos tinham falhado, então a punição devia ser aplicada. Clemente foi condenado como herege por um concílio reunido em Soissons em março de 744. Ele, mais tarde, pediu que fosse enviado a Roma sob uma guarda segura. O resto da história de Clemente é desconhecida, mas é fácil conjecturar qual deve ter sido seu fim.
Alguns dizem que Clemente mantinha noções estranhas quanto à descida do Senhor ao hades, quanto ao assunto do casamento, e quanto à predestinação, mas pouca confiança deve ser posta sobre as afirmações de seus inimigos. Bonifácio apareceu na corte como seu adversário, acusador e juiz. Esperemos que tenha sido um verdadeiro representante da antiga fé de seu país. Mas não devemos supôr que Clemente tenha sido o único que aparece em disputa com os missionários romanos nesse período da história. De tempos em tempos encontramos tais testemunhas da verdade testificando abertamente contra as pretensões de Roma. Alguns escoceses, que se chamavam de bispos, foram condenados em um concílio em Châlons, no ano 813. Vemos então que, por causa das formas clericais que tomavam o lugar da Palavra de Deus, homens iluminados e fiéis foram condenados como hereges.
João Escoto Erígena, um nativo da Irlanda que residia principalmente na França e na corte de Carlos, o Calvo, foi, segundo Hallam, o homem mais notável da Idade das Trevas, em um sentido literário e filosófico. Mas ele foi mais um filósofo do que um teólogo, embora tenha escrito largamente sobre assuntos religiosos, e parece ter pertencido a alguma ordem do clero. Ele tinha estudado os primeiros “pais” e a filosofia platônica, e era também inclinado a favorecer a razão humana, até mesmo em relação à recepção da verdade divina. Mas, de acordo com D’Aubigne, parece ter havido verdadeira piedade em seu coração. “Ó Senhor Jesus”, ele exclamou, “não Te peço outra felicidade além de entender, sem a mistura de teorias engenhosas, a palavra que Tu inspiraste pelo Teu Santo Espírito. Mostra-Te àqueles que procuram a Ti somente”. Supõe-se que ele tenha morrido por volta do ano 852.
Os teólogos irlandeses no século VIII tiveram um caráter tão elevado pela erudição que os homens literários convidados por Carlos Magno a sua corte eram principalmente da Irlanda. Até o tempo de Henrique II, rei da Inglaterra, a igreja da Irlanda continuou a afirmar sua independência de Roma, e a manter sua posição como ramo ativo e vivo da igreja de Cristo, sem possuir um chefe terreno. Mas a partir desse período, a igreja da Irlanda original, com sua grande reputação, desaparece completamente.
Os Nórdicos
Se não acreditássemos que esses poderosos inimigos do cristianismo — os nórdicos, ou piratas das regiões do Norte — fossem instrumentos nas mãos de Deus para a punição da apóstata igreja de Roma, não estaria em nossos planos apresentá-los. Mas como eles aparecem como nada mais do que o juízo de Deus contra o completo mundanismo de todas as ordens do sacerdócio católico, vamos tomar uma breve nota.
Originalmente, eles vieram das margens do Báltico, na Dinamarca, Noruega e Suécia. Provavelmente eles era uma mistura dos godos, dinamarqueses, noruegos, suecos e frísios. Mas, embora compostos de tantas diferentes tribos, todos concordavam quanto ao mesmo objetivo principal — saquear e matar. Seus pequenos reis e chefes eram piratas experientes, e os mais ousados que já infestaram os mares ou as margens da Cristandade Ocidental. Eles empurravam seus barcos leves rio acima até onde podiam ir, queimando, matando e saqueando onde quer que chegassem.
“Das margens do Báltico”, diz Milman, “das ilhas escandinavas, dos golfos e lagos, suas frotas velejavam para onde a maré ou a tempestade os levassem. Eles pareciam desafiar, em suas embarcações mal formadas, o mais selvagem clima, a fim de poderem desembarcar nas margens mais inacessíveis, a fim de encontrar seu caminho até os riachos mais estreitos e os rios mais rasos. Nada estava seguro, nem mesmo no coração do país, da repentina aparição desses selvagens implacáveis”. Eles foram chamados de “os árabes do mar”, mas, diferente dos muçulmanos, eles não lutavam uma guerra religiosa. Eles eram pagãos ferozes, e seus deuses, assim como eles próprios, eram guerreiros e piratas. O saque, e não a propagação da fé, era o objetivo deles. O castelo ou o monastério, o senhor nobre, o bispo ou o monge, eram todos iguais aos seus olhos, desde que se pudesse obter um rico montante. As propriedades religiosas, especialmente na França, foram as que mais sofreram. A riqueza e a posição indefesa dos monastérios os tornavam os principais objetivos de ataque.
Um dia de retribuição tinha chegado. A mão de Deus pesava sobre aqueles que chamavam a si mesmos de Seu povo. Sua ira parecia queimar. A igreja tinha agora de pagar caro por sua grandeza e glória mundana. Tinha sido sua ambição por séculos, e Carlos Magno tinha elevado o clero a grande riqueza e honra mundana. Mas, mal eles sentaram em seus palácios e a maré de invasão bárbara começou a assolar o império e a depredar os edifícios religiosos. Quanto mais rica a abadia, mais tentadora a presa, e mais implacável era a espada do bárbaro. Ignorantes das diferentes ordens do clero, eles massacravam indiscriminadamente. Fogo e espada eram as armas que usavam ao longo de suas carreiras. “A França estava coberta de bispos e monges que fugiam de seus claustros arruinados, seus monastérios incendiados, suas igrejas desoladas, levando consigo as preciosas relíquias dos seus santos, e assim aprofundando o pânico universal, e pregando o desespero por onde quer que fossem.”
A fim de obter paz com os normandos, que forçaram seu caminho até o rio Sena, e por dois anos sitiaram a cidade de Paris, Carlos, o Simples, da França, cedeu o ducado da Normandia ao líder deles, Rollo, em 905. Assim o pirata do Báltico abraçou a religião cristã, tornou-se o primeiro Duque da Normandia e um dos doze nobres associados da França. William, conquistador da Inglaterra em 1066, foi o sétimo Duque da Normandia.
A Inglaterra, assim como a França, foi muito assediada e desolada pelos nórdicos. A primeira descida, que foi severamente sentida, aconteceu por volta do ano 830. Desde aquele tempo essas invasões foram incessantes. E ali, assim como na França, encontraram o mais rico saqueio nos monastérios indefesos. Os santuários foram degradados com fogo e espada. Com o tempo, após a vitória conquistada por Alfredo sobre Guthrum em 878, um grande território foi cedido aos dinamarqueses no Leste da Inglaterra, sob a condição de que abraçassem o cristianismo e vivessem sob leis iguais com os habitantes nativos. Mas a paz assim obtida duraria apenas por um tempo.6
O Suposto Fim do Mundo
Nenhum período na história da igreja, ou talvez em toda a história, ou em qualquer país, apresenta uma figura mais tenebrosa do que a Europa cristã ao final do século X. A degradação do papado, o estado corrupto da igreja do lado de dentro, e o número e o poder de seus inimigos do lado de fora, ameaçavam sua completa destruição. Além dos incrédulos islâmicos no Oriente e dos nórdicos pagãos no Ocidente, um novo inimigo — os húngaros — apareceram de repente sobre a Cristandade. Na linguagem forte da história, eles pareciam hordas de selvagens, ou bestas selvagens, soltos sobre a humanidade. Sua origem era desconhecida, mas seu número parecia inesgotável. O massacre indiscriminado parecia ser a única lei deles: a civilização e o cristianismo se secaram diante de sua marcha desoladora, e toda a humanidade estava em pânico.
Além dessas terríveis calamidades, fomes prevaleciam e traziam pragas e pestilência consigo. Supostamente, os mais alarmantes sinais eram vistos no sol e na lua. A predição de nosso Senhor parecia ter se cumprido. “E haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; e sobre a terra haverá angústia das nações em perplexidade pelo bramido do mar e das ondas. Os homens desfalecerão de terror, e pela expectação das coisas que sobrevirão ao mundo; porquanto os poderes do céu serão abalados”. Mas, embora essas palavras descrevessem adequadamente o estado das coisas de então, a profecia estava longe de ser cumprida, como nosso Senhor imediatamente acrescenta: “Então verão vir o Filho do homem em uma nuvem, com poder e grande glória.” (Lucas 21:25–27)
Mas, se alguma vez o homem pudesse ser perdoado pela ilusão de acreditar que o fim do mundo tinha chegado, foi nessa época. O clero pregava isso, e o povo acreditava, e isso logo se espalhou por toda a Europa. Foi ousadamente promulgado que o mundo chegaria a um fim quando expirassem os 1000 anos desde o nascimento do Salvador. Por volta do ano 960 o pânico aumentou, mas o ano 999 era tido como o último que qualquer um jamais viveria. Essa ilusão generalizada, por meio do poder de Satanás, foi fundamentada em uma total falta de entendimento e falsa interpretação da profecia referente ao reino milenial dos santos com Cristo por 1000 anos. “Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele durante os mil anos.” (Apocalipse 20:6)
O Ano do Terror
(Continuação da seção anterior)
Os cuidados comuns e afazeres da vida foram deixados de lado. A terra para o cultivo foi abandonada; pois, por que arar, por que semear, se ninguém seria deixado para colher? Foi permitido que casas caíssem na deterioração; pois, por que construir, por que reparar, por que se incomodar com as propriedades, se daqui a alguns meses todas as coisas terrenas terão um fim? A história foi negligenciada; pois, para que relatar eventos, quando não se esperava que uma posteridade fosse ler os registros? O rico, o nobre, os príncipes, os bispos, abandonaram seus amigos e famílias e correram para as margens da Palestina, persuadidos de que o Monte Sião seria o trono de Cristo quando descesse para julgar o mundo. Grandes somas de dinheiro foram doadas às igrejas e monastérios, como se fossem assegurar uma sentença mais favorável do supremo Juiz. Reis e imperadores imploravam nas portas dos monastérios para serem admitidos como irmãos da ordem sagrada; multidões de pessoas comuns dormiam nas varandas dos edifícios sagrados, ou pelo menos sob suas sombras.
Mas, entretanto, as multidões deviam ser alimentadas. O último dia dos 1000 anos ainda não tinha chegado. Mas não havia comida, e o milho e o gado tinham se esgotado, e nenhuma provisão tinha sido feita para o futuro. As condições extremas mais terríveis foram suportadas, revoltantes demais para serem repetidas aqui. Mas o “dia da desgraça” se aproximava cada vez mais. A última noite dos 1000 anos chegou: uma noite sem sono em toda Europa! A imaginação é suficiente para pintar o doloroso quadro. Mas, em vez de alguma extraordinária convulsão, que todos esperavam trêmulos, a noite passou como todos as outras noites, e de manhã o sol lançou seus raios com a mesma tranquilidade de sempre. As multidões espantadas, mas então aliviadas, começaram a voltar para suas casas, a repararem seus edifícios, a arar, a semear e a continuar com suas ocupações anteriores.
Assim terminaram os primeiros mil anos da história da igreja; o dia mais sombrio no reinado de Jezabel e nos anais da Cristandade.
N. do T.: e também ao século XX e XXI↩
Robertson, vol. 2, p. 131.↩
Para detalhes, veja Cristianismo Latino, de Milman, vol. 2↩
Conforme dado por Du Pin, vol. 2, p. 156.↩
N. do T.: Aqui no sentido de doutrinas condizentes com o evangelho, e não às atuais denominações ditas “evangélicas”↩
Robertson, vol. 2, p. 360↩