O JUÍZO

Existe algo particularmente doloroso em se colidir com tanta frequência com as opiniões comumente aceitas na Igreja professa. Parece presunção querer contradizer, em tantos aspectos, todos os grandes padrões e credos da cristandade. Mas o que fazer? Se realmente fosse apenas uma questão de opinião humana poderia parecer uma pretensão injustificada alguém se colocar em direta oposição à fé arraigada por toda a Igreja professa — uma fé que há séculos exerce sua influência na mente de milhões de pessoas.

Mas gostaríamos de continuar insistindo com nossos leitores no fato de que não se trata, de modo algum, de uma questão de opinião humana ou de uma diferença de interpretação entre até mesmo os homens mais capazes. Trata-se, na verdade, de uma questão do ensino e autoridade das Sagradas Escrituras. Têm existido, existem e existirão escolas de doutrina, variedades de opiniões e manifestações de ideias, mas o claro dever de todo filho de Deus e de todo servo de Cristo é se submeter, em santa reverência, e dar ouvidos à voz de Deus nas Escrituras. Se fosse meramente uma questão de autoridade humana, sua importância não seria tão grande. Todavia, se por outro lado a questão for de autoridade divina, então toda discussão é encerrada e nosso lugar — o lugar de todos nós — é nos submetermos e crermos.

Assim, na seção anterior fomos guiados a ver que não há nas Escrituras algo como uma ressurreição geral — uma mesma ressurreição de todos simultaneamente. Assim como fizeram os varões de Bereia na antiguidade, cremos que nossos leitores examinaram as Escrituras a este respeito, e que estão agora preparados para nos acompanhar enquanto examinamos a Palavra de Deus quanto à questão do juízo.

A grande questão que logo surge é esta: Será que as Escrituras ensinam a doutrina de um juízo geral? Isto é o que professa a cristandade, mas será que as Escrituras ensinam o mesmo? Vejamos.

Em primeiro lugar, no que diz respeito ao cristão individualmente, e à Igreja de Deus coletivamente, o Novo Testamento apresenta a preciosa verdade de que não existe qualquer juízo. No que diz respeito ao crente, o juízo já aconteceu e a questão está resolvida. A densa nuvem de juízo precipitou-se sobre a cabeça de nosso divino Substituto. Ele bebeu até o fim, em nosso lugar, o cálice da ira e do juízo, e nos transportou para a nova posição de ressurreição, onde o juízo não pode, de maneira alguma, ser aplicado. É tão impossível que um membro do corpo de Cristo venha a passar pelo juízo quanto é impossível que isto aconteça com a própria Cabeça. Esta parece ser uma afirmação muito séria, mas será que é verdadeira? Se for, sua força está em sua glória e valor moral.

Para quê, perguntamos, Jesus recebeu o juízo na cruz? Pelo Seu povo. Ele foi feito pecado por nós. Ele nos representou ali. Ele tomou o nosso lugar. Ele recebeu tudo o que merecíamos. Nossa condição, em sua totalidade, com tudo o que lhe diz respeito, recebeu o devido tratamento na morte de Cristo e foi tratada ali de uma forma tal que é totalmente impossível que qualquer dúvida a respeito venha sequer a ser levantada. Será que Deus tem alguma coisa a resolver com Cristo, a Cabeça? É claro que não. Bem, então Ele não tem coisa alguma a resolver com Seus membros. Tudo foi definitiva e divinamente resolvido e, como prova disso, a Cabeça está coroada com honra e glória e Se assenta hoje à destra da majestade nas alturas.

Portanto, supor que os cristãos passarão pelo juízo, quando quer que seja, ou com base no que quer que seja, seja lá pela razão que for, é negar a própria verdade fundamental do cristianismo e contradizer as claras palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, que declarou expressamente, referindo-se a todos os que creem nEle, que não entrarão em juízo ou condenação (Jo 5:24).

na verdade, a ideia de cristãos sendo levados a juízo para provar se têm direito ao céu e estão preparados para ele é tão absurda quanto sem base nas Escrituras. Por exemplo, o que pensar de Paulo ou do ladrão arrependido esperando para serem julgados quanto ao seu direito de entrar no céu, depois de ficarem ali por cerca de dois mil anos? Todavia, assim deveria ser se existisse qualquer verdade na teoria de um juízo geral. Se a grande questão de nosso direito ao céu precisar ser resolvida no dia do juízo, então ela claramente não ficou resolvida na cruz; e se não ficou resolvida na cruz, então nós certamente estamos condenados, pois se formos julgados isto deve ser feito em relação às nossas obras, e o único resultado de um julgamento assim é o lago de fogo.

Todavia, se alguém afirmar que os cristãos passarão pelo juízo apenas para deixar claro que estão limpos por meio da morte de Cristo, isto seria transformar o dia do juízo em uma mera formalidade, algo que só de pensar já causa aversão a qualquer pessoa sensata e piedosa.

Mas a verdade é que não há necessidade de se discutir esta questão. Uma sentença apenas das Escrituras é muito melhor do que dez mil dos mais convincentes argumentos humanos. Nosso Senhor Jesus Cristo declarou, nos termos mais claros e enfáticos, que os crentes "não entrarão em condenação [juízo]". Isto já basta. O crente foi julgado há mais de mil e oitocentos anos na Pessoa de sua Cabeça, e levá-lo outra vez a juízo seria ignorar completamente a cruz de Cristo no que diz respeito à sua eficácia expiatória e, com certeza, Deus não iria e nem poderia fazer isso. O mais fraco cristão pode afirmar, em triunfo e gratidão: "Naquilo que me diz respeito, tudo o que precisava ser julgado já foi julgado. Toda questão que precisava ser resolvida já foi resolvida. O juízo é passado e jamais se repetirá. Sei que minhas obras devem ser provadas e meu serviço avaliado, mas naquilo que diz respeito à minha pessoa, minha posição, meu direito, tudo já está divinamente resolvido. O Homem que Se colocou no meu lugar na cruz está agora no trono, coroado, e a coroa que Ele traz é a prova de que não resta juízo algum para mim. Aguardo pela ressurreição da vida". Esta, e nada menos, é a linguagem adequada ao cristão. É simplesmente graças à obra da cruz que o crente pode se sentir e expressar desta maneira. Para o crente, aguardar pelo dia do juízo para resolver a questão de seu destino eterno é desonrar seu Senhor e negar a eficácia de Seu sacrifício expiatório. Ficar em dúvida pode soar como humildade e aparência de piedade, mas devemos descansar assegurados de que todos os que alimentam a dúvida, todos os que vivem em um estado de incerteza, todos aqueles que aguardam pelo dia do juízo para a solução final de suas questões — todos os que assim fazem — estão mais ocupados consigo mesmos do que com Cristo. Ainda não entenderam a aplicação da cruz aos seus pecados e à sua natureza. Estão duvidando da Palavra de Deus e da obra de Cristo, e isto não é cristianismo. Não há — nem pode haver — qualquer juízo para aqueles que, abrigados pela cruz, colocaram os pés firmemente em um novo e eterno terreno de ressurreição. Para estes o juízo se foi para sempre, e nada resta senão uma perspectiva de nítida glória e de bênção eterna na presença de Deus e do Cordeiro. Todavia, não é de todo improvável que enquanto dizemos isto o pensamento do leitor esteja voltando a Mateus 25:31-46 como uma passagem que estaria, de forma direta, comprovando a teoria de um juízo geral. Por isso sentimos ser nosso sagrado dever acompanhá-lo por um momento àquela importante e muito solene passagem, enquanto lembramos que nenhuma passagem das Escrituras pode entrar em conflito com outra e, portanto, se lemos em João 5:24 que os crentes não entrarão em juízo, não poderíamos ler em Mateus 25 que eles entrarão. Trata-se de um princípio fixo e invulnerável — uma regra geral para a qual não há, e nem pode haver, exceção. Mesmo assim, vamos abrir em Mateus 25.

"Quando o Filho do homem vier em Sua glória, e todos os santos anjos com Ele, então se assentará no trono da Sua glória; e todas as nações serão reunidas diante dEle, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas". Ora, é extremamente necessário prestar muita atenção aos termos exatos usados nesta passagem das Escrituras. Devemos evitar toda negligência de pensamento, toda aquela pressa, descuido e imperfeição que tem causado sérios estragos ao ensino desta importante passagem, e lançado tantos dentre o povo do Senhor na mais completa confusão a este respeito.

Vejamos, antes de qualquer coisa, quem são as partes levadas a juízo. "Todas as nações serão reunidas diante dEle". Isto é muito claro. São nações vivas. Não é uma questão de indivíduos, mas de nações — todos os gentios. Israel não está aqui, pois lemos em Números 23:9 que "este povo habitará só, e entre as nações não será contado". Se Israel fosse incluído nesta cena de juízo, então Mateus 25 estaria em evidente contradição com Números 23, o que está totalmente fora de questão. Israel nunca é contado com os gentios, seja lá qual for o assunto ou a base para isso. Do ponto de vista divino, Israel permanece só. O povo pode, por causa de seus pecados e sob as ações governamentais de Deus, ser disperso entre as nações, mas a Palavra de Deus declara que não será contado com elas. Para nós isto deve ser suficiente.

Então, se for verdade que Israel não está incluído no juízo de Mateus 25, então, sem precisarmos avançar um passo sequer, a ideia de aquele ser um juízo geral deve ser abandonada. Não pode ser geral se não estiverem todos incluídos, e Israel nunca é incluído sob o termo "gentios". As Escrituras falam de três classes distintas, a saber, "judeus... gregos [gentios]... Igreja de Deus" (1 Coríntios 10:32), e estas três nunca são confundidas. Além disso, devemos assinalar que a Igreja de Deus não está incluída no juízo que aparece em Mateus 25. Tampouco esta afirmação é baseada apenas no fato que já mencionamos, da necessária exclusão da Igreja do juízo, mas também na grande verdade de que a Igreja é tomada das nações, como Pedro declarou no concílio de Jerusalém. "Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o Seu nome" (Atos 15:14). Portanto, se a Igreja é tirada das nações, ela não pode ser contada entre elas e, por conseguinte, temos uma evidência adicional contra a teoria de um suposto juízo geral em Mateus 25. O judeu não está ali, a Igreja não está ali e, portanto, a ideia de um juízo geral deve ser abandonada como totalmente infundada.

Então quem são os que aparecem no juízo de Mateus 25? A própria passagem fornece a resposta para a mente simples. Ela diz que "todas as nações serão reunidas diante dEle". Claro e preciso. Não se trata de um julgamento de indivíduos, mas de nações como tal. Além disso, podemos acrescentar que nenhum dos que são indicados aqui terão experimentado a morte. Esta cena está em claro contraste com a de Apocalipse 20:11-15, na qual não haverá um que não tenha morrido. Em suma, em Mateus 25 temos o juízo dos vivos e em Apocalipse 20 o juízo dos mortos. Ambos são mencionados em 2 Timóteo 4:1: "Conjuro-te, pois, diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, na Sua vinda e no Seu reino". Nosso Senhor Jesus Cristo julgará as nações vivas em Sua aparição, e julgará "os mortos, grandes e pequenos" no final de Seu reino milenial. Mas vamos dar uma olhada, por um instante, no modo como as partes são organizadas no juízo de Mateus 25: "E porá as ovelhas à Sua direita, mas os bodes à esquerda". Ora, a crença quase universal da Igreja professa é que as "ovelhas" representam todo o povo de Deus, do início ao fim dos tempos, e os "bodes", por sua vez, representam todos os maus, do primeiro ao último. Todavia, se fosse assim, o que faremos com o terceiro grupo citado aqui como "meus irmãos"? O Rei se refere tanto às ovelhas como aos bodes ao falar desta terceira classe. na verdade, o próprio motivo do juízo é o tratamento dado aos irmãos do Rei. Seria um total absurdo dizer que as ovelhas seriam o próprio grupo que está sendo mencionado. Se fosse assim, a linguagem seria completamente diferente e, em lugar de dizer "em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos", teríamos o Rei dizendo "em verdade vos digo que quando o fizestes uns para com os outros" ou "para convosco".

Rogamos uma atenção especial do leitor para este ponto. Consideramos que se não existisse qualquer outro argumento e qualquer outra passagem sobre o assunto, bastaria este ponto para provar a falácia da teoria de um juízo geral. É impossível não enxergar estes três grupos na cena, a saber, as "ovelhas", os "bodes" e "meus pequeninos irmãos". E se existem três grupos não poderia haver um juízo geral, ainda mais considerando que os "meus pequeninos irmãos" não fazem parte nem do grupo das ovelhas, nem dos bodes. Não, querido leitor, aqui não se trata, de modo algum, de um juízo geral, mas de um julgamento bem específico e parcial. Trata-se de um julgamento das nações vivas, precedendo o início do reino milenial. As Escrituras nos ensinam que, após a Igreja deixar a terra, surgirá um testemunho para as nações; o evangelho do reino será levado, por mensageiros judeus, por toda a extensão da terra, até para as regiões hoje envoltas pelas trevas do paganismo. As nações que receberem os mensageiros e os tratarem bem ficarão à direita do Rei. Aquelas, ao contrário, que os rejeitarem e os tratarem mal, ficarão à Sua esquerda. os "meus pequeninos irmãos" são judeus — os irmãos do Messias.

O tratamento dado aos judeus é a base sobre a qual as nações eventualmente serão julgadas, e este é outro argumento contra um juízo geral. Sabemos bem que todos os que viveram e morreram em rejeição ao evangelho de Cristo terão uma razão a mais para terem tratado mal os irmãos do Rei. E, por outro lado, aqueles que se encontrarão ao redor do Cordeiro em glória celestial estarão ali graças a algo muito diferente daquilo que suas obras poderiam proporcionar.

Em suma, não existe sequer um detalhe na cena, um fato na história, um ponto na narrativa, que não seja contrário à noção de um juízo geral. E não apenas isto, mas quanto mais estudamos as Escrituras, mais conhecemos o modo de agir de Deus; mais conhecemos Sua natureza, Seu caráter, Seus propósitos, Seus conselhos, Seus pensamentos; mais conhecemos a Cristo, Sua Pessoa, Sua obra, Sua glória; mais conhecemos a Igreja, seu lugar diante de Deus em Cristo, sua plenitude, sua perfeita aceitação em Cristo. Quanto mais detalhadamente estudamos as Escrituras — quanto mais profundamente meditamos nela — mais ficamos convencidos de que não existe nela algo como um juízo geral.

Quem é que, mesmo sem conhecer coisa alguma de Deus, poderia supor que Ele iria justificar hoje aqueles que são Seus, apenas para levá-los a juízo amanhã — que Ele iria apagar suas transgressões hoje e julgá-los conforme suas obras amanhã? Quem é que, mesmo sem conhecer coisa alguma de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo, poderia supor que Ele seria capaz de colocar Sua Igreja, Seu corpo, Sua noiva, diante do trono do juízo junto com aqueles que morreram em seus pecados? Seria possível Ele entrar em juízo contra Seu povo pelas iniquidades e pecados dos quais Ele próprio disse: "Jamais Me lembrarei"?

Isto é suficiente. Confiamos totalmente que o leitor agora esteja, de si mesmo, plenamente convencido de que não existe, e nem poderia existir, algo como uma ressurreição geral — ou algo como um juízo geral.

Não podemos agora, no que diz respeito ao juízo em Apocalipse 20:11-15, ir muito além do que dizer que se trata de uma cena pós milenial que incluirá todos os ímpios mortos desde os dias de Caim até o último apóstata da glória milenial. Ali não haverá um sequer que não tenha passado pela morte, alguém cujo nome esteja no livro da vida, que não deva ser julgado por suas próprias obras e que não venha a passar da pavorosa realidade do grande trono branco para os horrores e tormentos eternos do lago que queima com fogo e enxofre. Quão horroroso! Quão terrível! Quão pavoroso!

Oh, leitor! O que você diz acerca destas coisas? Você é um verdadeiro crente em Jesus? Você está limpo por Seu precioso sangue? Você tem nEle o abrigo contra o juízo vindouro? Se não, deixe-me suplicar a você agora, com toda ternura e sinceridade, que fuja agora mesmo da ira vindoura! Volte-se para Jesus, que está esperando para receber você para Si mesmo, para apresentá-lo a Deus na plenitude do valor de Sua obra expiatória e na plenitude do crédito que tem o Seu nome incomparável.