O Início do Arianismo

O arianismo foi o crescimento natural das opiniões gnósticas, e Alexandria, o viveiro das questões metafísicas e distinções sutis, seu local de nascimento. Paulo de Samata e Sabélio da Líbia, no terceiro século, ensinavam falsas doutrinas similares à de Ário no quarto século. As seitas gnósticas em suas diferentes variedades, e a maniqueísta, que era a religião persa com uma mistura de cristianismo, podem ser consideradas religiões rivais, mas como facções cristãs, no entanto, todas elas fizeram sua obra má entre os cristãos quanto à doutrina da Trindade. Quase todas essas heresias, como são comumente chamadas, tinham caído sob o descontentamento real, e seus seguidores eram sujeitos a regulamentos penais. Os montanistas, paulitas, novacianos, marcionitas e valentinianos estavam entre as seitas proscritas e perseguidas. Mas havia uma outra heresia, uma mais profunda e tenebrosa, e muito mais influente do que qualquer outra que já tinha aparecido, que estava para estourar a partir do próprio seio da assim chamada “santa igreja católica”. A seguir temos um relato do que aconteceu.

Alexandre, o bispo de Alexandria, em uma reunião com seus presbíteros, parece ter se expressado livremente sobre o assunto da Trindade, quando Ário, um dos presbíteros, questionou a verdade das posições de Alexandre, alegando que estavam aliadas aos erros sabelianos, que tinham sido condenados pela igreja. Essa disputa levou Ário a declarar suas próprias visões sobre a Trindade, que eram, em essência, a negação da divindade do Salvador – que Ele seria apenas o primeiro e mais nobre dos seres criados, formado a partir do nada por Deus Pai – que, embora imensuravelmente superior em poder e em glória aos mais elevados seres criados, Ele seria inferior ao Pai. Ele também defendia que, embora inferior ao Pai em natureza e em dignidade, Ele é a imagem do Pai e o representante do poder divino pelo qual Ele criou os mundos. Quais eram suas visões sobre o Espírito Santo não são tão claramente expostas.8

O arianismo não apenas é inconsistente com o lugar dado ao Filho do começo ao fim das Escrituras, como também com a obra infinita de reconciliação e nova criação, e é distintamente refutada de antemão por muitas passagens das Sagradas Escrituras. Pode ser interessante citar algumas delas aqui. Aquele que, quando nascido de mulher, foi chamado Jesus, o Espírito de Deus declara (João 1:1–3) ser, no princípio, o Verbo que estava com Deus e era Deus. “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez”. É impossível conceber um testemunho mais poderoso de Sua subsistência não criada, de Sua personalidade distinta quando Ele estava com Deus antes da criação, e de Sua natureza divina. Ele é aqui mencionado como o Verbo, cujo correlato não é o Pai, mas Deus (e assim deixando espaço para o Espírito Santo); mas, para que Sua própria consubstancialidade fosse enfatizada, Ele é cuidadosa e definitivamente declarado Deus9. Voltando para além do tempo e da criatura, tão longe quanto alguém possa pensar, “no princípio era o Verbo”. A linguagem é muito precisa: Ele estava no princípio com Deus, não no sentido de vir a ser ou chegar a ser, mas “Ele estava” em Seu próprio absoluto ser. Todas as coisas “vieram à existência” através dEle. Ele foi o Criador tão completamente que o apóstolo João acrescenta: “sem ele nada do que foi feito se fez”. Por outro lado, quando a encarnação é afirmada no versículo 14, a linguagem é: “E o Verbo se fez carne”, não no sentido de ser absoluto, mas no sentido de vir a ser. Além disso, quando Ele veio entre os homens, Ele é descrito como “o Filho unigênito, ’que está’ [não apenas que estava ou esteve] no seio do Pai” (João 1:18) – uma linguagem ininteligível e confusa a menos que se considere como demonstração de que Sua humanidade de modo algum diminui Sua divindade, e que a proximidade infinita do Filho com o Pai sempre subsiste.

Novamente, Romanos 9:5 é uma rica e precisa expressão da imutável e suprema Divindade de Cristo igualmente com o Pai e o Espírito. Cristo veio, “o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém”. Os esforços dos críticos heterodoxos dão testemunho de toda a importância da verdade que eles em vão procuram abalar por esforços artificiais que somente fazem transparecer a insatisfação de seus autores. Não há mais enfática afirmação da suprema divindade em toda a Bíblia; porque a humilhação do Filho na encarnação e na morte de cruz a torna a mais cabal prova da divina supremacia que pode ser usada a favor dEle.

Em seguida, o apóstolo diz de Cristo: “O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele.” (Colossenses 1:15–17). Os devaneios dos gnósticos são aqui antecipadamente cortados fora, pois demonstra que Cristo foi o chefe de toda a criação porque Ele foi o Criador, tanto dos seres invisíveis mais elevados quanto dos visíveis: todas as coisas são ditas terem sido criadas para Ele assim como por Ele; e como Ele é antes de tudo, assim tudo subsiste juntamente em virtude dEle.

A única outra passagem que preciso agora referenciar é Hebreus 1, onde o apóstolo ilustra a plenitude da Pessoa de Cristo entre outras escrituras do Antigo Testamento como o Salmos 45 e 102. No primeiro Ele é tratado como Deus e ungido como homem; no outro Ele é reconhecido como Jeová, o Criador, após Ele ser ouvido derramando Sua aflição como o rejeitado Messias.

É impossível, então, aceitar a Bíblia sem rejeitar o arianismo como um libelo hediondo contra Cristo e a verdade, pois não existe maior certeza de que Ele tenha se tornado um homem do que Ele ser Deus antes da criação, sendo Ele Próprio o Criador, o Filho e Jeová.

Alexandre, indignado com as objeções de Ário contra ele, e por causa de suas opiniões, o acusou de blasfêmia. “O ímpio Ário”, exclamou, “o precursor do Anticristo se atreveu a proferir suas blasfêmias contra o divino Redentor”. Ele foi julgado por dois concílios reunidos em Alexandria, e expulso da igreja. Ele se retirou para a Palestina, mas de modo nenhum desencorajado por sua desgraça. Muitos simpatizavam com ele, dentre eles dois clérigos chamados de Eusébio: um da Cesareia, o historiador eclesiástico, e outro, bispo da Nicomédia, um homem de imensa influência. Ário manteve uma correspondência animada com seus amigos, ocultando suas opiniões mais ofensivas, e Alexandre emitiu avisos contra ele, e recusou todas as intercessões de seus amigos que o queriam restaurado. Mas Ário era um antagonista astuto. Ele é descrito na história como uma pessoa alta e graciosa, calmo, pálido e de aparência branda; de discurso popular, mas com argumentação afiada; de vida rigorosa e irrepreensível, e de modos agradáveis; mas assim, sob um exterior humilde e mortificado, ele ocultou os mais fortes sentimentos de vaidade e ambição. O adversário tinha habilmente selecionado seu instrumento. A aparente posse de tantas virtudes o tornou adequado para o propósito do inimigo. Sem essas aparências de justo ele não teria poder algum para enganar.